domingo, 17 de fevereiro de 2013

Por tras da renúncia

A história secreta da renúncia de Bento XVI
Mais do que querelas teológicas, são o dinheiro e as contas sujas do banco do Vaticano os elementos que parecem compor a trama da inédita renúncia do papa. Um ninho de corvos pedófilos, articuladores de complôs reacionários e ladrões sedentos de poder, imunes e capazes de tudo para defender sua facção. A hierarquia católica deixou uma imagem terrível de seu processo de decomposição moral. O artigo é de Eduardo Febbro, direto de Paris.

Eduardo Febbro



Paris - Os especialistas em assuntos do Vaticano afirmam que o Papa Bento XVI decidiu renunciar em março passado, depois de regressar de sua viagem ao México e a Cuba. Naquele momento, o papa, que encarna o que o diretor da École Pratique des Hautes Études de Paris (Sorbonne), Philippe Portier, chama “uma continuidade pesada” de seu predecessor, João Paulo II, descobriu em um informe elaborado por um grupo de cardeais os abismos nada espirituais nos quais a igreja havia caído: corrupção, finanças obscuras, guerras fratricidas pelo poder, roubo massivo de documentos secretos, luta entre facções, lavagem de dinheiro. O Vaticano era um ninho de hienas enlouquecidas, um pugilato sem limites nem moral alguma onde a cúria faminta de poder fomentava delações, traições, artimanhas e operações de inteligência para manter suas prerrogativas e privilégios a frente das instituições religiosas.

Muito longe do céu e muito perto dos pecados terrestres, sob o mandato de Bento XVI o Vaticano foi um dos Estados mais obscuros do planeta. Joseph Ratzinger teve o mérito de expor o imenso buraco negro dos padres pedófilos, mas não o de modernizar a igreja ou as práticas vaticanas. Bento XVI foi, como assinala Philippe Portier, um continuador da obra de João Paulo II: “desde 1981 seguiu o reino de seu predecessor acompanhando vários textos importantes que redigiu: a condenação das teologias da libertação dos anos 1984-1986; o Evangelium vitae de 1995 a propósito da doutrina da igreja sobre os temas da vida; o Splendor veritas, um texto fundamental redigido a quatro mãos com Wojtyla”. Esses dois textos citados pelo especialista francês são um compêndio prático da visão reacionária da igreja sobre as questões políticas, sociais e científicas do mundo moderno.

O Monsenhor Georg Gänsweins, fiel secretário pessoal do papa desde 2003, tem em sua página web um lema muito paradoxal: junto ao escudo de um dragão que simboliza a lealdade o lema diz “dar testemunho da verdade”. Mas a verdade, no Vaticano, não é uma moeda corrente. Depois do escândalo provocado pelo vazamento da correspondência secreta do papa e das obscuras finanças do Vaticano, a cúria romana agiu como faria qualquer Estado. Buscou mudar sua imagem com métodos modernos. Para isso contratou o jornalista estadunidense Greg Burke, membro da Opus Dei e ex-integrante da agência Reuters, da revista Time e da cadeia Fox. Burke tinha por missão melhorar a deteriorada imagem da igreja. “Minha ideia é trazer luz”, disse Burke ao assumir o posto. Muito tarde. Não há nada de claro na cúpula da igreja católica.

A divulgação dos documentos secretos do Vaticano orquestrada pelo mordomo do papa, Paolo Gabriele, e muitas outras mãos invisíveis, foi uma operação sabiamente montada cujos detalhes seguem sendo misteriosos: operação contra o poderoso secretário de Estado, Tarcisio Bertone, conspiração para empurrar Bento XVI à renúncia e colocar em seu lugar um italiano na tentativa de frear a luta interna em curso e a avalanche de segredos, os vatileaks fizeram afundar a tarefa de limpeza confiada a Greg Burke. Um inferno de paredes pintadas com anjos não é fácil de redesenhar.

Bento XVI acabou enrolado pelas contradições que ele mesmo suscitou. Estas são tais que, uma vez tornada pública sua renúncia, os tradicionalistas da Fraternidade de São Pio X, fundada pelo Monsenhor Lefebvre, saudaram a figura do Papa. Não é para menos: uma das primeiras missões que Ratzinger empreendeu consistiu em suprimir as sanções canônicas adotadas contra os partidários fascistóides e ultrarreacionários do Mosenhor Levebvre e, por conseguinte, legitimar no seio da igreja essa corrente retrógada que, de Pinochet a Videla, apoiou quase todas as ditaduras de ultradireita do mundo.

Bento XVI não foi o sumo pontífice da luz que seus retratistas se empenham em pintar, mas sim o contrário. Philippe Portier assinala a respeito que o papa “se deixou engolir pela opacidade que se instalou sob seu reinado”. E a primeira delas não é doutrinária, mas sim financeira. O Vaticano é um tenebroso gestor de dinheiro e muitas das querelas que surgiram no último ano têm a ver com as finanças, as contas maquiadas e o dinheiro dissimulado. Esta é a herança financeira deixada por João Paulo II, que, para muitos especialistas, explica a crise atual.

Em setembro de 2009, Ratzinger nomeou o banqueiro Ettore Gotti Tedeschi para o posto de presidente do Instituto para as Obras de Religião (IOR), o banco do Vaticano. Próximo à Opus Deis, representante do Banco Santander na Itália desde 1992, Gotti Tedeschi participou da preparação da encíclica social e econômica Caritas in veritate, publicada pelo papa Bento XVI em julho passado. A encíclica exige mais justiça social e propõe regras mais transparentes para o sistema financeiro mundial. Tedeschi teve como objetivo ordenar as turvas águas das finanças do Vaticano. As contas da Santa Sé são um labirinto de corrupção e lavagem de dinheiro cujas origens mais conhecidas remontam ao final dos anos 80, quando a justiça italiana emitiu uma ordem de prisão contra o arcebispo norteamericano Paul Marcinkus, o chamado “banqueiro de Deus”, presidente do IOR e máximo responsável pelos investimentos do Vaticano na época.

João Paulo II usou o argumento da soberania territorial do Vaticano para evitar a prisão e salvá-lo da cadeia. Não é de se estranhar, pois devia muito a ele. Nos anos 70, Marcinkus havia passado dinheiro “não contabilizado” do IOR para as contas do sindicato polonês Solidariedade, algo que Karol Wojtyla não esqueceu jamais. Marcinkus terminou seus dias jogando golfe em Phoenix, em meio a um gigantesco buraco negro de perdas e investimentos mafiosos, além de vários cadáveres. No dia 18 de junho de 1982 apareceu um cadáver enforcado na ponte de Blackfriars, em Londres. O corpo era de Roberto Calvi, presidente do Banco Ambrosiano. Seu aparente suicídio expôs uma imensa trama de corrupção que incluía, além do Banco Ambrosiano, a loja maçônica Propaganda 2 (mais conhecida como P-2), dirigida por Licio Gelli e o próprio IOR de Marcinkus.

Ettore Gotti Tedeschi recebeu uma missão quase impossível e só permaneceu três anos a frente do IOR. Ele foi demitido de forma fulminante em 2012 por supostas “irregularidades” em sua gestão. Tedeschi saiu do banco poucas horas depois da detenção do mordomo do Papa, justamente no momento em que o Vaticano estava sendo investigado por suposta violação das normas contra a lavagem de dinheiro. Na verdade, a expulsão de Tedeschi constitui outro episódio da guerra entre facções no Vaticano. Quando assumiu seu posto, Tedeschi começou a elaborar um informe secreto onde registrou o que foi descobrindo: contas secretas onde se escondia dinheiro sujo de “políticos, intermediários, construtores e altos funcionários do Estado”. Até Matteo Messina Dernaro, o novo chefe da Cosa Nostra, tinha seu dinheiro depositado no IOR por meio de laranjas.

Aí começou o infortúnio de Tedeschi. Quem conhece bem o Vaticano diz que o banqueiro amigo do papa foi vítima de um complô armado por conselheiros do banco com o respaldo do secretário de Estado, Monsenhor Bertone, um inimigo pessoal de Tedeschi e responsável pela comissão de cardeais que fiscaliza o funcionamento do banco. Sua destituição veio acompanhada pela difusão de um “documento” que o vinculava ao vazamento de documentos roubados do papa.

Mais do que querelas teológicas, são o dinheiro e as contas sujas do banco do Vaticano os elementos que parecem compor a trama da inédita renúncia do papa. Um ninho de corvos pedófilos, articuladores de complôs reacionários e ladrões sedentos de poder, imunes e capazes de tudo para defender sua facção. A hierarquia católica deixou uma imagem terrível de seu processo de decomposição moral. Nada muito diferente do mundo no qual vivemos: corrupção, capitalismo suicida, proteção de privilegiados, circuitos de poder que se autoalimentam, o Vaticano não é mais do que um reflexo pontual e decadente da própria decadência do sistema.


Tradução: Katarina Peixoto
(Carta Maior)

Paris

- Din dão, berrou a campainha, com seu sotaque brasileiríssimo.

Fui abrir meio cabreiro, achando tratar-se do vizinho que, dias antes, saíra peladão no corredor para buscar seus jornais, bem na hora em que eu ia para o trabalho. Vai que era ele de novo, querendo, sei lá, um pouco de açúcar, metido em seus (não) trajes habituais.

Espiei cautelosamente pelo olho mágico e não vi ninguém. Voltei pro sofá. A campainha gritou de novo. Olhei e outra vez não visualizei quem teria apertado o botão. Fiquei esperando atrás da porta e a abri de supetão assim que a sineta soou pela terceira vez. Do outro lado, uma mocinha tímida, com um lenço no pescoço e cara de anjo.

- Bom dia, falei.
- Bonjour, respondeu em francês.
- Qui es-tu?
- Sou as suas lembranças parisienses.
- Minhas lembranças?
- Oui.
- E o que você está fazendo aqui?
- Foi você quem me chamou.
- Eu?
- Sim, você. Aliás, chamou a mim e àquele ali.
- Quem? Não estou vendo ninguém.
- Olha de novo, com atenção.
- Eita!, exclamei, surpreso com o súbito aparecimento de um velho ranzinza – E você, quem é?
- Tu ne me reconnais pas? Sou também as suas lembranças, putain!

Não estava entendendo mais nada. Convidei-os para entrar.

- Querem água, café?
- Não, obrigada, sorriu a menina.
- A água tá gelada? Porque eu só gosto de água gelada. E esse café? É arábico? De onde vem? Qual a máquina que você usa? É conservado na geladeira? Porque senão ele perde o gosto.

Depois de revirar a casa até encontrar mel para adoçar o café do velho, que não tomava nada com açúcar, exigi algumas explicações.

- Alors, que faites-vous là?
- Você não escutou a menina? Foi você quem chamou a gente!, gritou o idoso. Se quer que a gente vá embora, é só dizer.
- Calma, só quero entender o que vocês estão fazendo aqui.
- Você nunca notou, mas te acompanhamos desde que você deixou Paris, disse a mocinha num quase sussurro. Você nos trouxe para Brasília.
- Eu?
- É, assim são as lembranças, elas nos acompanham mesmo sem a gente querer. Eu, por exemplo, trago as recordações inocentes das suas primeiras experiências em Paris. A primeira baguete, o primeiro pedaço de comté, a primeira volta no marché d’Aligre, a primeira festa que você tocou como DJ, o primeiro encontro com a Edith, a primeira pelada com o Chico Buarque, o primeiro jantar que você preparou no restaurante associativo da rua, a primeira vez que você esteve em casa com a Louise...
- Só bons momentos.

Fiquei olhando para o nada por um longo instante, até ser interrompido.

- Bons momentos coisa nenhuma, retrucou o velho. Você acha que foram bons porque o tempo apagou as más impressões. Mas estou aqui para te lembrar que a vida não é uma propaganda de margarina.
- De manteiga, você quer dizer, estamos falando da França.
- Isso, a vida não é uma propaganda de manteiga ou de sabão em pó. Você deve se lembrar bem de quando chegou a Paris e as pessoas conversavam ao seu redor. Você não pescava nada.
- Lembro sim. Era duro. Eu ficava perdido...
- Não disse? Quer pior lembrança do que essa?
- Mas também foi ótimo perceber que a língua francesa aos poucos ia fazendo mais sentido para mim. E quando tive minha primeira conversa em francês? Cara, foi sensacional!
- Zut! E do primeiro inverno, lembra? Aquele frio de rachar. Você detesta o frio. Seu dedão congela, seu nariz escorre, sua orelha dói. Isso foi horrível, não foi?
- O frio é dose mesmo. Mas foi no primeiro inverno que eu descobri a neve. Fiquei hipnotizado como uma criança diante de um novo brinquedo. Uma lembrança inesquecível.
- Mais c’est pas possible. O mau humor francês, desse você se recorda bem, né? Tem coisa pior do que o nosso mau humor? Quantas vezes você não teve vontade de estrangular alguém?
- Estrangular nada, guilhotinar! De vez em quando eu queria fatiar um, começando por essa protuberância que vocês carregam no meio do rosto e chamam de nariz.
- Viu só? Nem tudo era flores.
- Mas depois de me irritar algumas vezes eu descobri que o mau humor de vocês não é pra ser levado tão a sério. Faz parte do folclore local, vocês adoram alimentá-lo. E ele ainda me rendeu várias crônicas.
- Mas que droga! Raios de brasileiro otimista! Viveu 5 anos na França e não aprendeu nada? Nem reclamar você reclama mais. Fica achando tudo lindo, fofo, colorido, doce, como se fosse sempre páscoa. Que coisa mais sem graça. Quer saber? Desisto. Fui. Je suis parti!

O velho abriu a porta da casa e desapareceu antes de chegar ao elevador.

- Eita, velho reclamão, disse a menina. Aposto que já foi perturbar outro com sua ranzinzice. Deixa eu ir lá cuidar dele

Abracei-a e ela me deu um beijo no rosto, despedindo-se. Devolvi o beijo e fechei a porta atrás dela. Ao virar-me, vi seu lenço no chão. No mesmo instante, a campainha tocou novamente. Só podia ser ela. Abri.

Era o vizinho, pelado, pedindo açúcar.
(Outras Palavras)

Pensamentando

Kawô Kabiesile! De Xangô a Joaquim Barbosa: a distância entre o rei e o escravo
Raul Longo

Escrito e enviado por Raul Longo
Ilustrações: redecastorphoto (colhidas na internet)

Estou terminando de revisar o seriado “ORIXÁS” e em breve o distribuo completo a todos meus correspondentes e outros também. Resolvi dar cabo do projeto de Édison Braga e por essa razão tenho deixado de produzir crônicas e considerações sugeridas pelos acontecimentos nacionais, internacionais ou regionais daqui desta Santa Catarina que adotei.

Vez por outra algo comove ou provoca a indignação e não há jeito de não me manifestar, mas tenho ocupado a maior parte do tempo me concentrando exclusivamente no cumprimento do compromisso assumido em memória do amigo.

Nem mesmo as manifestações do escandaloso desnível da balança da justiça brasileira têm me demovido desse objetivo. Pudera! Embora permaneça como motivo de grande indignação, entre nós esse desnível é tão vulgar que há muito já não comove mais ninguém. E esse é o grande perigo.


Uma nação onde ninguém reage à impunidade, promovida pela mais alta corte do país, de estelionatários como Naji Nahas, Salvatore Cacciola, Paulo Maluf, Nicolalau dos Santos Neto, Daniel Dantas e tantos outros. Estupradores em série como Roger Abdelmassih. Assassinos como Pimenta Neves que atirou em uma mulher desarmada pelas costas, ou os jovens delinquentes que queimaram vivo o índio Galdino, ou ainda aquele que matou a Irmã Dorothy; dificilmente será encarada como digna pela comunidade internacional.

Econômica e socialmente a imagem do Brasil perante o mundo nunca foi melhor, mas em termos de justiça continuamos sendo equiparados às terras de ninguém da África e do Oriente, para onde se evadem os piores bandidos e escroques do Hemisfério Norte.

Pois pior ainda ficará a imagem da justiça brasileira quando a imprensa internacional, que vem se informando a respeito, concluir quem foram alguns dos recentes condenados pelo nosso Supremo Tribunal Federal.

Uma amiga da Suécia, por exemplo, me escreveu espantada estranhando informações que lhe pareceram desencontradas. Conhece os preconceitos racistas de nossa sociedade e é sobejamente informada sobre os crimes de nossa ditadura militar de orientação inconfundivelmente nazifascista. Também sabe que José Genoíno e José Dirceu foram heroicos líderes da luta contra aquele regime e por isso me escreveu atônita e desconfiada dos elogios dessa sociedade acintosamente racista ao juiz negro que condenou destacados combatentes em prol da liberdade do povo brasileiro.

Tive de colher algumas informações para lhe explicar quem é Joaquim Barbosa. Orgulhosa de seus conhecimentos sobre o Brasil, que realmente são muitos, apenas me retornou a pergunta como se não encontrasse qualquer relevância no que lhe consegui passar: “Quem é Joaquim Barbosa?”

De fato! Hoje é o presidente do STF, mas do STF que garantiu a impunidade dos internacionalmente mais rumorosos crimes de corrupção e estelionato público e político aqui praticados. Aliás, os mesmos juízes que exigiram prisão imediata de Dirceu e Genoíno foram os que concederam habeas corpus facilitando a fuga ou mantiveram a impunidade todo aquele rol de comprovados criminosos acima citados.


A nossa mídia já não é considerada como fonte de informação confiável sobre o Brasil pelos seus próprios colegas do resto do mundo. Uma publicação inglesa chegou a apontar a principal revista tida de informações no Brasil como “one gossip magazine”, ou uma revista de fofocas. O que não dirão de nosso sistema judiciário quando se derem conta do que realmente foi o julgamento da AP 470 que condenou por literatura, indícios e “gossips” ou fofocas da desqualificada imprensa brasileira, a heróis da luta contra um regime nazifascista?

A coisa é tão vergonhosa e disparatada que prefiro concentrar meu tempo e atenção nos roteiros do seriado “ORIXÁS”, mas ao finalizar o último episódio em que trato de Xangô, o Orixá da Justiça, me veio à lembrança a pergunta da amiga da Suécia: “Quem é Joaquim Barbosa?”

Tardiamente concluo que ao invés de pescar informações pela internet e já que não há nada no histórico do juiz que o compare a grandeza do histórico de um Genoíno ou Dirceu, deveria ter respondido à amiga que afora ser o primeiro presidente negro do STF, não há nada mais de relevante a respeito desse personagem. E para despistar ou escamotear minha insuficiência ou a daqueles que apontam o relator da AP 470 como herói, poderia tergiversar sobre Xangô, que foi o rei de Oyó, principal centro da civilização ioruba. E contaria que também orixá da justiça, Xangô usava um machado de dois gumes para representar o equilíbrio de sua justiça que tanto poderia condenar os de um lado como, se fosse o caso, igualmente condenaria os do outro lado. Diferentemente da balança da justiça brasileira que só garante impunidade aos do prato das elites político/financeiras, como todos aqueles criminosos acima citados.

Ou alguém já ouviu falar de não criminosos que tenham sido beneficiados pela justiça brasileira?

Mas contaria para minha amiga da Suécia que o cabo do machado de Xangô era feito de galho de ayan, árvore da região de Xangô.

Ayan – árvore de tronco muito duro que não é derrubada com machado.
É consagrada à Xangô

Por fim contaria que por ter julgado mal ao seu povo, Xangô cumpriu com o significado de seu machado de dois gumes condenando-se a si mesmo. Condenou-se e foi seu próprio carrasco se enforcando num galho do ayan, árvore da foto que aí copio.

Pensava sobre isso tudo quando recebo a postagem do Antonio Fernando Araujo que também copio logo adiante, mas antes devo comentar que essa postagem e as inquirições da Suécia me fizeram avaliar as diferenças e semelhanças entre o orixá da Justiça do panteão dos cultos afro/brasileiros e o presidente do STF.

Reis como Xangô, mas lembrados por péssima reputação, existem muitos. Escravos que se tornaram lendários por seus feitos, também existem muitos. Esopo, o fabulista, foi um deles. Spartacus, que liderou o primeiro movimento de trabalhadores de que se tem notícia na história, foi outro.

Daqui a um século ou meio, quando se estudar os piores períodos da história do Brasil, sem dúvida se terá informações sobre os lideres dos que tiveram coragem e disposição para lutar contra a ditadura militar e sem dúvida se citará José Genoíno por sua luta nos interiores e José Dirceu por sua luta nos centros urbanos. Assim como hoje estudamos sobre Zumbi, o escravo que foi rei em Palmares no vergonhoso e longo período da escravidão.

Mas, e Joaquim Barbosa? Quem será Joaquim Barbosa? Quem é Joaquim Barbosa?

Depois de ler a postagem do Antonio Araújo, cheguei a conclusão de que a única semelhança entre o juiz Barbosa e Xangô, o orixá da Justiça, é que os dois são negros.

Não sei de quem é Joaquim Barbosa, mas na liberdade de Xangô eu acredito.
Postado por Castor Filho às 14:39:00
(Redecastor)

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Paris

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013
Mistral

Assim que desceu do TGV na Gare St Charles, Raimundô Batistá levou um baita susto, pois não estava acostumado com aquele vento todo. Que vendaval dos infernos é esse, perguntou a si mesmo, enquanto fechava o sobretudo e colocava as luvas de couro, o cachecol de lã e um boné do Senhor do Bonfim pra proteger as ideias, como diz sempre.

Ele não podia reclamar que não havia sido advertido. Raimundô, attention au Mistral, repetia o tempo todo seu colega Sophianne, originário de Marseille, prevenindo do vento que de tão famoso até nome próprio tinha. Brisa também tem em Salvador, desdenhava, sem no entanto fazer ideia da potência daquela ventania capaz até de arrancar os chifres de um boi, segundo famoso ditado local.

Sem se dar por rogado, anunciou vou passear na praia. Vai não, tentaram dissimulá-lo, não bastasse o Mistral forte, ainda estamos em pleno inverno, você vai virar picolé em dois minutos. Eu vou, insistiu, e quando ele colocava alguma coisa na cabeça era muito difícil tirar, e ainda vou levar a sunga, porque baiano quando vê o mar quer mais é se jogar.

Seus amigos ficaram apavorados, pois sabiam que ele era capaz de encarar a sensação térmica de quase zero grau só de birra. Um deles, ao imaginar a situação, começou a ter tonturas e saiu pedindo meus sais, meus sais. Precisou ser amparado pelos outros companheiros, que o sentaram no chão e deram água gasosa.

Baiano frouxo nasce morto, repetia Raimundô em seu francês carregado de um sotaque que podia ser percebido antes mesmo que ele abrisse a boca. Quem quiser que me siga, tô indo pra praia. Todo mundo seguiu, é claro, e um dos amigos achou melhor telefonar para os bombeiros, para preparar o salvamento.

Quem precisa de ajuda, perguntaram do outro lado da linha. Ninguém, por enquanto, mas vai precisar em breve, disse. Vá brincar com outro porque temos muito serviço por aqui, respondeu desaforado o sujeito, desligando na cara.

Ao chegar na Praia do Profeta, compreensivelmente vazia, Raimundô foi ao banheiro e voltou sem as três camadas de roupa, vestindo só a sunga tricolor do Esporte Clube Bahia. Alongou o pescoço, deu uma corrida de cem metros, fez meia dúzia de flexões e disse tô pronto, vou lá. Vai não, repetiram todos em um coro que de tão sincronizado parecia jogral de igreja. Vou sim, tô indo, já fui. E o pior é que foi mesmo, abrindo caminho contra o vento que quase o derrubava.

Acordou quatro dias depois, debaixo de dois cobertores e com uma bolsa de água quente sobre a testa. O que aconteceu, quis saber. Você é louco, entrou no mar em pleno inverno e com um Mistral daqueles, usando só um calção de banho surrado. Surrado coisa nenhuma, mais respeito com a sunga do glorioso Bahia, disse e virou pro lado pra tirar mais um cochilo, que aquela aventura tinha dado um sono da porra.

    Chers amis, o Chéri à Paris voltou por cinco semanas, cinco textos, o tempo das minhas férias na França. Esse é o primeiro deles. O próximo estará no ar na 6a feira que vem.

    Aproveitem para ler os outros dois textos sobre Raimundô Batistá, o baiano arretado que é motorista de táxi em Paris. Tem um aqui e outro aqui.

(Outras Palavras)

Pensamentando

De olhos bem abertos
By
Theotonio de Paiva


Aquele homem parecia um espelhamento, uma versão dolorosamente invertida de Mário. Imaginei-o perguntando, como o poeta: “Onde está o insofrido?”

Por Theotonio de Paiva*

Há muito não ia a São Paulo. Devia ter pelo menos uns quatro anos que não andava pelas ruas daquela cidade. Em outros tempos, geralmente ao chegar, ali pelo Tietê, embicando na rodoviária, me recordava dos versos famosos: “São Paulo! Comoção de minha vida…” e me deixava iluminar por dentro. E vinha um compasso trinado daquilo que a distante cidade significava em mim, desde a primeira visita com meu pai até resvalar nas idas constantes para as minhas pesquisas e alguns projetos.

Era uma sexta-feira e eu acabara de almoçar na Rua Augusta. Estava ali, num misto de trabalho, contatos e, sobretudo, interessado em realizar finalmente uma espécie de visita sentimental.

Uma chuva contínua dera o ar de sua graça lá pelo final da tarde do dia anterior. As calçadas molhadas pareciam insistir para que os meus sensores mais vagabundos ganhassem uma atenção redobrada. Nada poderia escapar daquela vigília realizada com os olhos bem abertos. Absolutamente nada.

Como ia dizendo, acabara de almoçar num restaurante com um jornalista amigo meu. Estávamos acompanhados de uma senhora encantadora, igualmente jornalista, que eu conhecera ali, naquela ocasião.

Na verdade, havia uma sutileza nesse encontro. Efetivamente, eu acabara de conhecer esse meu amigo, naquele exato momento. É claro que isso se explica com algumas poucas palavras. Muito embora nos correspondêssemos há uns três anos, embalados pelas facilidades do mundo virtual, e, nesses contatos, fosse fácil perceber uma certa intimidade, éramos, contudo, ainda distantes um para o outro. Por conta de um trabalho em comum, passamos a nos comunicar com certa frequência, através de emails e mensagens. A mulher, ao contrário, seria desde sempre uma presença real, linda nos seus movimentos e capacidade de perguntar o que ficara em construção pelo pensamento. E ambos me ajudavam a pensar São Paulo como uma cidade, cuja tradução “a berrar nos desertos da América”, se faz necessária emergir em novas equivalências nas suas sensíveis diferenças.

De todo modo, havia uma expressão de segurança, de velhos conhecidos, cujas antigas afinidades se deixavam acontecer. Com um pouco de ironia, dali a algum tempo, ao me afastar deles, esse estado de segurança iria desaparecer em mim, quase sem deixar vestígios.

Há alguns anos, sob um sol escaldante, estive na Barra Funda, antigamente considerada periferia da cidade, a fim de visitar a casa onde morou Mário de Andrade.”Era uma visita para a qual me preparara desde sempre. Começou quando, ainda adolescente, vi algumas fotos de uma São Paulo antiga que embalara a existência do escritor. E aquilo crescera comigo, em meus modestos estudos e num desejo de quem mitifica o mundo, e, nesse compasso, ambiciona trazer para dentro de si aquele mesmo quadrante que os olhos sonolentos abrigavam.

Esforço inútil. Era um sábado e o local, já na época transformado em centro de cultura, a Oficina da Palavra, não abria aos sábados. Fechava-se no seu mobiliário pela voz do guarda aos visitantes desavisados.

Atualmente a situação, parece, mudou bastante. De qualquer maneira, talvez fosse capaz de dizer que apenas aquela lembrança ainda me deixa sem ação. Preso à calçada, contava uma derrota que me retorcia inteiro. Impossibilitado de gerar uma reação tímida que fosse, procurava, com os meus olhos, um sentido qualquer para aquela situação de desalento.

Acreditando ou não, naquele momento, eu fora privado de olhar pela mesma janela por onde o poeta via o mundo. Coisa talvez sem importância, num culto desnecessário ao passado, embora não se tratasse de um poeta qualquer. As horas de dedicação e pesquisa, ao menos para mim, há muito tinham gerado uma intimidade distante e próxima. Diria mesmo perversa, quando, ao final de algum tempo, acabamos por travar com os nossos objetos de estudo uma afeição necessária, porém desmedida. E, nessa curiosa relação, o poeta modernista era alguém que se infiltrava pelas minhas retinas, em seu terno de casimira inglesa, como aqueles que meu pai também usava.

No entanto, a situação agora era integralmente nova. E aquela visita programada voltava a existir enquanto uma modesta possibilidade.

Saímos do almoço, os meus dois amigos jornalistas e eu, conversando sobre amenidades. Os guarda-chuvas se esbarravam e queriam pedir passagem, apressados. Naquele descompasso, o tempo parecia não deixar ver direito o vai-e-vem de ricos e brancos, que bem de perto ficam pobres e pretos.

Passamos novamente pelo local onde fica o bunker da redação. Faço uma pequena hora, despeço-me, e, ansioso, dirijo-me ao metrô.

Ao comprar o bilhete, pensava naquelas distantes ruas da Barra Funda. É para lá que eu ia.

Os anos passados e o tempo chuvoso tornavam o lugar pouco familiar. Não me recordava direito da topografia. Queria me lembrar daquela rua íngreme, por onde imaginava o poeta subindo à noite. Talvez procurasse por algum vizinho próximo a escutar os ecos, às duas horas da manhã, do piano tocando Bach, enquanto os trabalhadores dormiam profundamente.

No entanto, naquela tarde, a rua parecia ter sumido de suas próprias cercanias. Ante o meu desespero, procurei um ambulante que pudesse me informar onde ficava a Rua Lopes Chaves. Avisto um rapaz negro, meio alto, vendendo algumas guloseimas numa esquina, próxima de um enorme viaduto. Daquele lugar, com construções antigas, que soavam estranhas à cidade, ele também não distinguia muito bem o mundo que o rodeava.

Um pouco distante, vejo se aproximar um homem ainda jovem. Os passos contidos ajudavam a organizar os pontilhados da imagem que lentamente se formavam. Era visivelmente um morador de rua. As roupas encardidas, o cabelo, meio gruvinhado, e as mãos que se afagavam mostravam um aspecto visivelmente miserável. No entanto, aquela aparência, veria logo, desdizia o homem. À parte deixar transparecer uma generosidade incomum, exercia um comando meio heróico dos seus seres imaginários e da sua solidão inconclusa, além de efetivamente parecer disposto a encontrar a rua e assim me ajudar.

Naquele passo de alma cambaleante me deixei levar por aquela situação e concordei com a sua oferta. Não tinha muito que perder. Num ato contínuo, o homem vai até uma birosca e retorna decidido. Já sabia onde ficava o local.

Aquilo dura pouco. Logo em seguida, descubro que está enganado. Era um outro Lopes, ou um outro Chaves, que lhe informaram. Mas isso agora não fazia uma diferença significativa.

A princípio, aquilo para mim não estava claro, mas aquele homem, com cerca de seus trinta e poucos anos, via em mim alguém com quem pudesse conversar e, provavelmente, conseguir alguma ajuda, o que logo se confirmaria.

No entanto, o que assoma do nosso amigo é a sua capacidade de entreter o outro. Assim, como um malabarista das palavras, se desdobra em encontrar assuntos e meios para conduzir o tempo. Comentava pelos cotovelos a importância da educação, da cultura e daqueles outros conceitos distantes que ele possuía e, ao mesmo tempo, invejava por não ter, ao menos por não ter da maneira que desejava. E contava de sua compreensão sobre o Príncipe, de Maquiavel. Evidentemente, Emerson, vamos chamá-lo assim, não frequentara uma escola formal, no entanto, lera aquele clássico da ciência política por duas vezes, expondo em detalhes uma concepção bem formada que me nocauteava.

Falava de Napoleão. E apressava-se em discorrer sobre Maquiavel e Sun Tzu, os autores de cabeceira do corso, cuja dedicatória à Heróica fora implacavelmente riscada pelo músico alemão quando aquele se fizera Imperador. E emendava os assuntos. E cantava romanticamente uma espécie de lírica sobre a sua mulher, a doce Elisa, que mais parecia se erguer como um simulacro de Dulcineia. Entretanto, tudo leva a crer, Elisa não ocultava a verdade praquele Quixote das quebradas. Era ela a verdadeira dama.

Num repente, assim de chofre, se revela: – Nós somos soropositivos.

Mais um golpe. Previsível nocaute. Mas de todo modo, constrangedor, apesar da inteligência em falar de si mesmo com uma espécie de distanciamento o que dava às palavras daquele homem uma certa leveza.

Feliz com a atenção que eu lhe dedicava, pedia para tocar as mãos em sinal de amizade. E gentilmente dizia: – Se eu não lhe incomodasse, receberia de bom grado um presente. Que presente seria? Fraldas para ele e a sua mulher. Rapidamente, sem me deixar raciocinar, informava que os recursos dados pelo governo haviam terminado e o coquetel os fragilizava terrivelmente.

Enquanto nos dirigíamos a uma farmácia próxima, observava melhor aquele sujeito. Cruzávamos um viaduto. E as roupas encardidas, os dentes mal conservados, e a verve de um intelectual que poderia ter sido e não foi, gritavam em toda a sua plenitude. Cuido para que não seja importunado no estabelecimento, ouça frases que venham a agredi-lo, ou, quem sabe ainda, seja convidado a se retirar. Nesse sentido, adoto uma postura meio paternal, que me dói um pouco ter de lançar mão, mas julgo necessária assim mesmo.

E nos despedimos mais à frente. Numa confusão vulcânica, encaminhava-me à Rua Lopes Chaves, naquele momento, já devidamente mapeada. A casa, encantadora, não mais pertencia a ninguém, mas à memória de uma cidade e do mundo. E poderá ser compreendida como um patrimônio cultural dos nossos desejos e das nossas tradições mais fecundas.

De volta à minha cidade, um outro amigo, ao ouvir o relato, colocava um reparo. E nele deixava estremecer toda a sorte do mundo, que se apresentava como uma injunção terrível. Aquele homem parecia um espelhamento, uma versão dolorosamente invertida do poeta. Enquanto este seguia morto e reconhecido, às vezes de um modo incompreensivelmente tão antimodernista, por uma sociedade com a qual mantivera conflitos intensos, aquele outro, morador de rua, soropositivo, apesar do sangue ainda lhe correr pelas veias, visto de perto, permanecia uma sombra fugidia de si mesmo, desenhando a cada movimento a sua própria exclusão. Parecia se perguntar como o poeta: “Onde está o insofrido?”

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* Theotonio de Paiva, dramaturgo e diretor de teatro, é doutor em Teoria Literária pela UFRJ. Colaborador do Outras Palavras. Para ler todos os seus textos publicados no site, clique aqui.
(Outras Palavras)

Sociedade e violência

Dançando pelo fim da violência
Comportamento, Destaques, Sociedade, Uncategorized



SP e Recife engrossam manifestação global que propõe: “Um bilhão de mulheres violadas é atrocidade. Um bilhão dançando é revolução”

Por Suzana Lourenço*

“Uma em cada três mulheres do planeta será espancada ou estuprada no decorrer da vida.” Essa é a afirmação que inspirou o nome do evento global “Um bilhão que se ergue” (One billion rising), que acontece em São Paulo e no Recife no próximo dia 16. “Um bilhão de mulheres violadas é uma atrocidade. Um bilhão de mulheres dançando é uma revolução”, diz no Facebook a chamada do evento, que acontece em diversas capitais do planeta.

A ideia é reunir mulheres e homens para dançar, numa coreografia coletiva, pelo fim da violência contra mulheres e meninas. “One billion rising” (veja no YouTube) congrega cerca de 5.000 organizações, ONGs e universidades em todo o mundo. O movimento tem sua origem na peça “Monólogos da Vagina”, escrita pela dramaturga e ativista Eve Ensler com base em entrevistas sobre a sexualidade feminina e o estigma social em torno do estupro e do abuso.

A peça fez sucesso em diversos países – no Brasil, teve direção de Miguel Falabella e ficou em cartaz por mais de uma década. Ao final de cada apresentação, Ensler encontrava mais mulheres que queriam compartilhar suas histórias de sobrevivência, transformando o espetáculo em mais do que uma manifestação artística sobre a violência feminina. Em 14 de fevereiro – o Valentine’s Day, dia dos namorados norte-americano – de 1998, Eve e um grupo de mulheres de Nova York criaram o V-Day, para demandar o fim da violência contra mulheres. Nascia aí a ideia do “One billion rising”.

No Brasil: Quatro entre cada dez mulheres brasileiras já foram vítimas de violência doméstica, revelam os números do Anuário das Mulheres Brasileiras 2011, divulgado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres e pelo Dieese. Entre 1998 e 2008, cerca de 42 mil mulheres foram assassinadas – dez a cada dia –, 40% delas dentro de casa, conforme dados de outro estudo, o Mapa da Violência 2011, realizado pelo Instituto Sangari a partir de informações do DATASUS/Ministério da Saúde.

Movimentos de mulheres vinham denunciando essa situação desde os anos 1970, e deram os primeiros passos na formação de coletivos de apoio às vítima da violência. Foram criadas as primeiras Delegacias da Mulher. Mas foi só a partir dos anos 2000 que a questão ganhou a esfera nacional, com a criação, em 2003, da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM).

Um marco no enfrentamento da violência de gênero no Brasil foi a lei 11.340, de agosto de 2006 – conhecida como Lei Maria da Penha, em homenagem a Maria da Penha Fernandes, que foi atingida por um tiro do marido enquanto dormia, ficou paraplégica e sofreu tortura, mas veio a público e conseguiu levar seu caso a cortes internacionais.

Desde a sua criação pela SPM, em 2005, até março de 2012, a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180, com funcionamento 24 horas, inclusive fins de semana e feriados – realizou 2.527.493 atendimentos. De 2006 a março de 2012 foram registrados 603.906 relatos de violência, assim tipificados segundo a Lei Maria da Penha: física 182.857 (30%, vai de lesão corporal leve ao assassinato), psicológica 76.620 (12,8%), moral 32.168 (5,4%), sexual 5.899 (1%) e patrimonial 4.920 (0,8%).

A violência parte frequentemente do marido ou companheiro. No mesmo período, das 131.047 informações sobre o tempo de convivência entre vítima e agressor, o relacionamento era de dez anos ou mais em quase 40% dos casos; e entre cinco e dez anos em cerca de 20%. A frequência das agressões foi registrada em 228.180 atendimentos, sendo diária em aproximadamente 60% e semanal em cerca de 20%. Foram presenciadas por filhos e filhas em mais de 65% dos casos; em quase 20%, eles foram agredidos junto com as mães.

Manifestação: A manifestação acontece em São Paulo das 14 às 18 horas do sábado, 16 de fevereiro, no vão do MASP (Museu de Arte de São Paulo). As danças e coreografias serão ensaiadas a partir das 12 horas, pelos participantes concentrados no museu. No Recife, a dança-protesto ocorrerá na Praça do Marco Zero, às 19 horas.

Na página do Facebook Um bilhão que se ergue em SP encontram-se os vídeos da coreografia em SP e da coreografia original. No site oficial da campanha podem ser assistidos videos da autora Eve Ensler e da atriz e militante Jane Fonda dizendo porque se levantaram contra a violência. Aqui, o ator e diretor Robert Redford dá seu depoimento sobre o tema.


Suzana Lourenço é pós-graduanda em Integração da Améria Latina pela USP. Estuda temas relacionados a política ambiental e participação da sociedade civil em processos decisórios.
(Outras Palavras)

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Bento XVI


Análises sobre o próximo papa
Pega de surpresa, a imprensa europeia tenta entender por que Bento XVI adiantou seu adeus. Uma das possiblidades aventadas é o levante de movimentos católicos conservadores e rentáveis como Legionários, Opus Dei e Comunhão e Liberação, que agiram contra um papa que ameaçava ‘limpar a igreja’, ainda que moderadamente, daqueles que cometeram delitos financeiros ou eram advogados de pedófilos. A análise é de Martín Granovsky, do Página 12


A versão italiana do ‘The Huffington Post’ informa sobre a bolsa de apostas. A agência Paddy Power põe a Itália na frente da África, com uma vantagem de 2,75 a 3,00. Em matéria de nomes, o nigeriano Francis Arinze está cabeça a cabeça com o ganês Peter Turkson e o canadense Marc Ouellet.

Dos italianos, o melhor ranqueado é o arcebispo de Milão Angelo Scola, seguido pelo cardeal Tarcisio Bertone, secretário de Estado do Vaticano. Já há também aposta sobre qual nome será escolhido pelo sucessor de Bento XVI: Pedro, Pio, João Paulo, Juan e Bento.

No ‘The Guardian’, o correspondente Sam Jones sugere cinco temas que deveriam entrar na agenda do próximo pontificado. Primeiro, métodos anticoncepcionais e aids. Diz que, por um lado, Bento XVI conseguiu se diferenciar de seus antecessores quando, três anos atrás, disse que o uso de preservativos era aceitável em ‘certos casos’. Como quando uma prostituta o usa para se proteger da aids.

Por outro lado, evitou tratar da relação entre preservativo e métodos anticoncepcionais e também como evitar gravidez em caso de relação sexual por puro prazer. Em 2009, durante viagem à África, Bento XVI havia dito que o preservativo era um ponto chave na luta do continente contra a aids.

O segundo ponto para uma futura agenda são os casos de abuso sexual dentro da Igreja, um que explodiu publicamente durante o atual pontificado e que ainda não foi resolvido. Ainda que tenha falado de vergonha e delitos inqualificáveis cometidos por sacerdotes pedófilos, muitos críticos avaliam que o Vaticano ainda falta com transparência sobre as investigações em curso, sustenta o jornalista do ‘The Guardian’.

O terceiro tema da agenda seria composto pela questão da homossexualidade e o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo. Em sua última mensagem de Natal, o papa disse que as atitudes modernas àquele respeito constituem um ataque contra a verdadeira estrutura da família, ou seja, pai, mãe e filhos.

O quarto tema é o aborto. O canadense Ouellet, prefeito da Congregação dos Bispos e que pode ser considerado o terceiro cargo em importância no Vaticano, após o papa e o secretário de Estado, disse em Quebec que interromper a gravidez é um delito moral inclusive em caso de estupro.

Sobre o quinto tema, que trata do papel das mulheres na Igreja, o papa disse em Roma, em 2007, que ‘Jesus elegeu 12 homens e pais da nova Israel’. E, em abril de 2012, advertiu os católicos partidários de ordenar mulheres ou contrários ao celibato.

O teólogo Juan José Tamayo escreveu no ‘El País’ que Bento XVI foi ‘um grande inquisidor’. “O papa não soube dar resposta aos mais de 1,2 bilhão de católicos que existem no planeta e que buscavam resposta a questões como a liberdade de expressão e acadêmica, e ainda limitou o pensamento crítico da Igreja”, apontou.

“O maior problema é a pedofilia. Uma questão que tem sido o maior escândalo na história do cristianismo e que explodiu em suas mãos. No princípio, impôs o silêncio quando era presidente da Congregação para a Doutrina da Fé. Depois, tomou medidas tímidas, tem aplicar o determinado pelo direto canônico e sem colaborar com tribunais civis”, concluiu Juan José Tamayo.

Também no ‘El País’, Miguel Mora escreveu uma coluna intitulada “Os movimentos ultracatólicos ganham a partida”. O argumento é que Bento XVI tentou fazer uma limpeza, mas foi débil ou estava pouco convencido dos problemas. Comentou sobre Ratzinger: “O ortodoxo cardeal alemão tem sido durante seu mandato um papa solitário, intelectual, fraco e arrependido pelos pecados e os delitos (...) rodeado por lobos ávidos por riqueza, poder e imunidade”.

E continuou: “A Cúria formada nos tempos de João Paulo II era uma reunião do pior de cada diocese, desde responsáveis por evasão fiscal a advogados de pedófilos, passando por contrarrevolucionários latino-americanos e fundamentalistas da pior espécie. Essa Cúria, digna de ‘O Poderoso Chefão III’, sempre viu com maus olhos a tentativa de Ratzinger de fazer uma limpeza a fundo, enquanto os movimentos mais fortes e rentáveis, como os Legionários, Opus Dei e Comunhão e Liberação trabalhavam contra qualquer vislumbre de regeneração”. Scola, o arcebispo de Milão, pertence justamente à Comunhão e Liberação.

Vittorio Zucconi, no seu blogue do diário italiano la Repubblica, perguntou se Bento XVI fez um gesto de humildade ou o contrário: um gesto de alguém que quer evitar a agonia de uma exposição pública. E Zucconi resgata um ponto. Sustenta que com sua renúncia o papa “criou um precedente na história moderna que nenhum de seus sucessores poderá ignorar, e ficará aberta a todos, e sempre, a possibilidade de ir embora por motivos pessoais, de saúde ou erros”. Segundo essa linha, “todos os homens são falíveis”. E, como o papa é um homem, “o papa é falível”.

(Carta Maior)

Bergman

Para entender Bergman (ou começar)
publicado em cinema por carolina carmini
Poucos diretores imprimem sua marca e transformam suas películas em obras de arte. Trabalhos capazes de tocam a quem assiste de maneira tão profunda e irreversível que alteram sua percepção da própria vida. Ingmar Bergman é um desses exemplos. Suas obras estão repletas de poesia e são de extrema complexidade. Mas não fuja. Assistir os filmes de Bergman é uma experiência pessoal, única e uma oportunidade para conhecer intimamente o diretor.



Ingmar Bergman (1918 — 2007) é um dos maiores cineastas da história. Sua produção foi extensa, mais de cinquenta filmes e roteiros – entre os anos de 1946 a 2003 - intercalados por uma série de trabalhos para televisão, sem contar peças de teatro. Bergman faz parte da geração de cineastas que surgiram após à II Guerra Mundial, que despontaram mundialmente com seus filmes de narrativas mais complexas, explorando ao máximo a linguagem cinematográfica. Histórias um pouco diferentes das que dominavam as telas do mundo - com exceções, brilhantes, logicamente - histórias que fugiam das conclusões previsíveis e finais palatáveis. É neste período que surgem o neorrealismo italiano, a Nouvelle Vague, o cinema novo, entre outros movimentos.

A densidade do pensamento de Bergman vem da própria cultura e sociedade nórdica. Não é possível compreender sua produção sem pensar na tradição teatral sueca e nórdica em geral, de Henrik Ibsen (1828-1906), Søren Kierkegaarg (1813-1855) e August Strindberg (1849-1912). A produção de uma sociedade avançada, no aspecto material, permitiu a concentração incisiva nos problemas mais angustiantes e existenciais do homem moderno.



O que atrai em sua obra é o modo como Bergman trabalha com temáticas delicadas e de forte carga existencial: a solidão, a religião (resultado de sua criação religiosa), a morte, o erotismo com toda sua violência e impotência, a racionalidade mesclada nos mais diversos absurdos. Na atualidade, seus filmes causam estranheza e são por vezes difíceis de compreender - e ainda permanecem extremamente atuais.

De seus filmes saíram atores consagrados que conquistaram o mundo, como Max von Sydow, Bibi Andersson e Liv Ullmann. Como técnica, temos o flashback, ferramenta essencial em suas narrativas e que se tornou uma característica em seus filmes, assim como a interação do ator diretamente com a câmara, como se estivesse dialogando ou olhando para o espectador. Elementos e pessoas que ajudaram Bergman a construir seu cinema.

Sétimo Selo (1956), filme que representa o auge da genialidade do diretor, foi baseado numa peça de teatro escrita pelo próprio Bergman. O filme demonstrou alguns dualismos vividos por Ingmar, em torno das crenças religiosas herdadas do pai, um pregador luterano autoritário. A questão da fé e as consequências existenciais do enfrentamento de fé e filosofia são reflexões que Bergman extraiu do pensamento de Kierkegaard e desenvolveu através da torturante e angustiante dúvida e da fé em Deus, questão essencial da existência humana.

Esteticamente, o grande trunfo foi realizar o filme em branco e preto - como outros filmes seus do período - ainda que na época já houvesse filmes coloridos. Uma escolha perfeita para a atmosfera de desespero e desolação da Idade Média, que potencializou as cenas da queima da bruxa e das pessoas flageladas.

Já em Morangos Silvestres (1957), Bergman entra no mundo da subjetividade para traduzir a jornada para a compreensão do sofrimento e a busca pela reconciliação com seu passado e presente. Vemos um dia na vida de Isak Borg em um road movie existencial, onde a memória, o onírico e o real se entrelaçam e evidenciam a angústia do personagem e a sua tentativa de se reconstruir a si mesmo e suas relações.


Em Persona (1966), Bergman trabalha questões existenciais, a metáfora do cinema e do teatro, e a própria realidade por meio de cenas de puro simbolismo. Os tons cinza ajudam a criar a atmosfera de frieza e isolamento das personagens.

A personagem principal, Elisabeth, é uma famosa atriz que durante a apresentação da peça Electra toma consciência da mentira em que vive e decide não mais mentir - e para isso cala-se. Por isso, o som e o silencio são instrumentos utilizados para acentuar o suspense ou a dramaticidade de cada cena e criar o ritmo da película. O título do filme remete ao teatro (o termo persona provém da máscara usada nas tragédias gregas).


Em Gritos e sussurros (1972), a questão exaltada é a impossibilidade de separar a dor física da dor mental, vendo a mente e o corpo como um elemento único. A dor da personagem de Agnes existe. Perpassa seu ser, nasce e morre nas relações familiares com sua mãe no passado e suas duas irmãs no presente. Irmãs que também sofrem, mas que, diferentemente de Agnes, não percebem de onde pode vir o alivio para a dor incessante: o amor e o afeto. Apenas Anna, a governanta - menosprezada pelas irmãs – é capaz de dar alívio físico e mental a Agnes.

Karin, uma das irmãs, chega ao ponto de automutilar-se para evitar o contato do marido. Enquanto Marie é indiferente à tentativa de suicídio do marido quando este descobre que foi traído por ela. Nenhuma das irmãs é má - Bergman não trabalha com bem versus mal -, são apenas impotentes diante da dor própria e alheia. A própria cor vermelha, onipresente no filme, é a visão que possui da alma humana.

Estes são apenas quatro filmes de sua extensão produção, mas o suficiente para perceber a complexidade e profundidade da alma de Bergman, e principalmente como sua obra é atemporal e capaz de tocar a todos.



carolinalucio
carolina carmini gosta de pensar que se não tivesse nascido, alguém a teria inventado. Saiba como fazer parte da obvious.

Leia mais: http://obviousmag.org/archives/2013/01/o_existencialismo_de_bergman.html#ixzz2KQBemoTR

Deus

Deus, um Delírio - Debate com Richard Dawkins (Legendado)

    Religião e fé são para àqueles que para serem virtuosos precisam da intimidação e ameaça do fogo do inferno.
    Religião e fé são para àqueles que para serem virtuosos precisam de algo em troca (vida eterna). Chantagem, portanto, serei isto se me deres aquiulo.

    Religião, implica necessariamente na rendição incondicional de todas as inocências e aceitação da imputação do peso da culpa e do pecado, para que então, o clérigo lhe venda em suaves prestações, a redenção de um ser imaginário. Um bebê já nasce com os pecados dos pais por pagar e por obvio, endividado com a santa igreja. Não é um estelionato perfeito? Patético.

    Também, para homens explorarem homens, onde meia dúzia de clérigos vivem nababescas vidas bem terrenas, sem nunca produzir um prego pois há uma horda de cordeiros a fazê-lo em seu lugar. Vivem em seus lindos templos , contemplando seus maravilhosos vitrais pois qualquer coisa menor que isto, seria um insulto ao deus pai.

    Também, para os que não se importam em comungar com rituais bizarros e insanos de canibalismo e vampirismo, ao aceitar que uma bolacha e um copo de vinho é o corpo e o sangue de alguém. Este é o verdadeiro horror da religião, faz com que pessoas perfeitamente sãs e decentes, alimentem ideais e pratiquem atos que apenas um psicopata conseguiria por si só. Se amanhã pela manhã, eu falar algumas palavras em latim para minha panqueca e meu copo de vinho, alegando ser ser o corpo e o sangue do Elvis Presley, provavelmente serei internado como um doido varrido.

    Sem contar os padrecos vagabundos e sodomitas, totalmente hipócritas ao não fazerem o que pregam, "casais e multiplicais" com suas repulsivas conversinhas mansas e suaves de meu irmão pra cá e deus vivo pra lá, quando os pais forem ver já foi. sou a favor de que todos os padres tenham a sua libido neutralizada quimicamente, para que um padre precisa de libido? Para ficar traçando os cordeirinhos do deus, interpretando deturpadamente o "vinde a mim as criancinhas". Sei que para o ateu isto parece sinistro e injusto, afinal nem todos são vagabundos, contudo, para o cristão é perfeitamente comum um inocente pagar pelos pecados do outro. Um bebê já nasce com os pecados dos seus pais por pagar, e por obvio, endividado com o clérigo. Patético.
(Fonte...)

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Bento XVI

Bento XVI: Crise e exaustão conservadora


Dinheiro, poder e sabotagens. Corrupção, espionagem, escândalos sexuais.

A presença ostensiva desses ingredientes de filme B no noticiário do Vaticano ganhou notável regularidade nos últimos tempos.

A frequência e a intensidade anunciavam algo nem sempre inteligível ao mundo exterior: o acirramento da disputa sucessória de Bento XVI nos bastidores da Santa Sé.

Desta vez, mais que nunca, a fumaça que anunciará o 'habemus papam' refletirá o desfecho de uma fritura política de vida ou morte entre grupos radicais de direita na alta burocracia católica.

Mais que as razões de saúde, existiriam razões de Estado que teriam levado Bento XVI a anunciar a renúncia de seu papado, nesta 2ª feira.

A verdade é que a direita formada pelos grupos 'Opus Dei' (de forte presença em fileiras do tucanato paulista), 'Legionários' e 'Comunhão e Libertação' (este último ligado ao berlusconismo) já havia precipitado fim do seu papado nos bastidores do Vaticano.

Sua desistência oficializa a entrega de um comando de que já não dispunha.

Devorado pelos grupos que inicialmente tentou vocalizar e controlar, Bento XVI jogou a toalha.

O gesto evidencia a exaustão histórica de uma burocracia planetária, incapaz de escrutinar democraticamente suas divergências. E cada vez mais afunilada pela disputa de poder entre cepas direitistas, cuja real distinção resume-se ao calibre das armas disponíveis na guerra de posições.

Ironicamente, Ratzinger foi a expressão brilhante e implacável dessa engrenagem comprometida.

Quadro ecumênico da teologia, inicialmente um simpatizante das elaborações reformistas de pensadores como Hans Küng (leia seu perfil elaborado por José Luís Fiori, nesta pág.), Joseph Ratzinger escolheu o corrimão da direita para galgar os degraus do poder interno no Vaticano.

Estabeleceu-se entre o intelectual promissor e a beligerância conservadora uma endogamia de propósito específico: exterminar as ideias marxistas dentro do catolicismo.

Em meados dos anos 70/80 ele consolidaria essa comunhão emprestando seu vigor intelectual para se transformar em uma espécie de Joseph McCarty da fé.

Foi assim que exerceu o comando da temível Congregação para a Doutrina da Fé.

À frente desse sucedâneo da Santa Inquisição, Ratzinger foi diretamente responsável pelo desmonte da Teologia da Libertação.

O teólogo brasileiro Leonardo Boff, um dos intelectuais mais prestigiados desse grupo, dentro e fora da igreja, esteve entre as suas presas.

Advertido, punido e desautorizado, seus textos foram interditados e proscritos. Por ordem direta do futuro papa.

Antes de assumir o cargo supremo da hierarquia, Ratzinger 'entregou o serviço' cobrado pelo conservadorismo.

Tornou-se mais uma peça da alavanca movida por gigantescas massas de forças que decretariam a supremacia dos livres mercados nos anos 80; a derrota do Estado do Bem Estar Social; o fim do comunismo e a ascensão dos governos neoliberais em todo o planeta.

Não bastava conquistar Estados, capturar bancos centrais, agências reguladoras e mercados financeiros.

Era necessário colonizar corações e mentes para a nova era.

Sob a inspiração de Ratzinger, seu antecessor João Paulo II liquidou a rede de dioceses progressistas no Brasil, por exemplo.

As pastorais católicas de forte presença no movimento de massas foram emasculadas em sua agenda 'profana'. A capilaridade das comunidades eclesiais de base da igreja foi tangida de volta ao catecismo convencional.

Ratzinger recebeu o Anel do Pescador em 2005, no apogeu do ciclo histórico que ajudou a implantar.

Durou pouco.

Três anos depois, em setembro de 2008, o fastígio das finanças e do conservadorismo sofreria um abalo do qual não mais se recuperou.

Avulta desde então a imensa máquina de desumanidade que o Vaticano ajudou a lubrificar neste ciclo (como já havia feito em outros também).

Fome, exclusão social, desolação juvenil não são mais ecos de um mundo distante. Formam a realidade cotidiana no quintal do Vaticano, em uma Europa conflagrada e para a qual a Igreja Católica não tem nada a dizer.

Sua tentativa de dar uma dimensão terrena ao credo conservador perdeu aderência em todos os sentidos com o agigantamento de uma crise social esmagadora.

O intelectual da ortodoxia termina seu ciclo deixando como legado um catolicismo apequenado; um imenso poder autodestrutivo embutido no canibalismo das falanges adversárias dentro da direita católica. E uma legião de almas penadas a migrar de um catolicismo etéreo para outras profissões de fé não menos conservadoras, mas legitimadas em seu pragmatismo pela eutanásia da espiritualidade social irradiada do Vaticano.

Postado por Saul Leblon às 18:29
(Carta Maior)

Mulheres

Quem é a mulher brasileira dos comerciais de TV?

Está cansada, mas sabe como o marido fica depois de tanto comercial de cerveja. Quer agradá-lo. Coitado, trabalha tanto, né?

Por Leonardo Sakamoto, em seu blog

Baseado no que nos dizem os comerciais de televisão, finalmente consegui entender quem é a mulher brasileira.

Ela é simpática, meiga, solícita. Independente, mas multitarefa. Não é que não queira a ajuda de ninguém – ela não precisa. Faz questão de trabalhar o dia inteiro e, depois, chegar em casa e cuidar de tudo e dos filhos. E, se o marido aguentar, ainda está disponível para muito sexo.

Vejamos: ela gosta de fazer uma boa faxina. Daquelas pesadas, que incluem tirar gordura do fogão, a sujeira do chão e o pó que se esconde nos vãos, desde que os produtos usados não irritem muito a pele. E que o sachê para tirar odor do vaso sanitário possa ser trocado facilmente. Afinal de contas, hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás! O que ela mais ama ganhar de presente de Dia das Mães é uma geladeira e um aspirador de pó.

E o momento em que a mulher brasileira prefere dar a geral na casa é quando os filhos clamam por atenção, querendo a velha e boa papinha de nenê com frango com hormônio ou a fralda nova que absorve o xixi antes mesmo dele ser feito. Ou no momento exato em que a horda composta pelos amigos do rebento mais velho resolve vir comer cachorro-quente e sanduíche de peito de peru ao mesmo tempo. É sempre ela, sozinha, que abre as garrafas de refrigerante, engordando a molecada.

Até porque, como sabemos, é raro homem aparecendo na cozinha em comercial. Ele só vai para preparar pratos especiais, refinados, gourmet. No dia a dia, o reino das panelas é das mulheres. Para ele, há outras tarefas: aparece com mais frequência, por exemplo, em anúncios de TVs LED de 52? e de carros que não rodam, voam – deixando claro que tamanho e potência são o que importa de verdade. Ou nos de cerveja, como se o consumo de álcool fosse algo apartado por gênero. Aí sim, ressurge a brasileira, pelada, esbanjando sensualidade, disponível para qualquer coisa, quase pedindo: “vem cá e me beba inteira”.

Voltemos à mulher que acabou de lavar a louça com um detergente que transforma pratos em espelhos e colocar a roupa do marido do futebol na máquina de lavar com um sabão que deixa tudo muito branco. Ela, que nasceu com um cabelo maravilhosamente cacheado, aproveitou o tempinho livre que o uso de produtos de limpeza avançados lhe concedeu e o alisa inteiro com uma das incríveis chapinhas anunciadas no canal a cabo. Quer ficar igual às amigas, que são iguais às mulheres dos comerciais de TV, que são iguais às modelos, que atendem a um parâmetro traçado por uma elite de outro continente, de que liso é bom, curvo é uma droga. Tem o mesmo DNA da ideia de que branco é bom, negro é uma droga.

Ela ainda aproveita alguns segundos para untar a barriga com gel emagrecedor, tomar alguns comprimidos feitos com esterco de besouro caolho da Serra da Mantiqueira que prometem emagrecer e depilar a perna com emplastos coloridos que ninguém provou que não são carcinogênicos. Está está cansada, mas sabe como o marido fica depois de tanto comercial de cerveja. Quer agradá-lo. Coitado, trabalha tanto, né? Corre ao banheiro e esconde o tempo, o cansaço e a idade com maquiagens mil. Diante do espelho, ao ver outra mulher que não ela, uma mulher que ela tem certeza que viu diz desses na TV, sorri.

Então, respira fundo para poder aceitar a vida que os comerciais lhe garantiram ser o modelo de felicidade. Deita-se na cama, enquanto espera. E viaja para bem longe. Sozinha.

Pena que, infelizmente, antidepressivo não aparece em comercial de TV. Ainda.

(Outras Palavras)

Israel

Cartão amarelo para Israel    
Escrito por Luiz Eça  






Israel pode ser convidado pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) a sentar-se no incômodo banco dos réus.



É o mesmo lugar já ocupado por governos da Sérvia e da Libéria, acusados e depois condenados pela prática de crimes contra a humanidade.



Na semana passada, a Comissão de Direitos Humanos da ONU emitiu a mais forte condenação sofrida pelos israelenses por violações de direitos humanos e das leis internacionais.



Desta vez, não se trata apenas de mais uma das centenas de críticas aos procedimentos israelenses, já anteriormente feitas, sem efeitos práticos, pois, levadas ao Conselho de Segurança, os EUA vetariam qualquer sanção ao seu “aliado especial”.



Depois de condenar a política de assentamentos de Tel-aviv, a ONU afirma que se trata de crime de acordo com o art.49 da Convenção de Genebra, que proíbe a transferência de populações civis para territórios ocupados. E explica: os assentamentos estão “promovendo uma progressiva anexação que evitará o estabelecimento de um Estado palestino vizinho e viável e sabotará o direito do povo palestino à autodeterminação”.



Mais adiante: “Israel precisa iniciar imediatamente um processo de retirada de todos os assentados na Cisjordânia e cessar a construção de novos assentamentos na Cisjordânia sem precondições”.



Em seguida, o relatório passa a advertir Israel das consequências da sua recusa, pois: “o Estatuto de Roma dispõe que a corte criminal internacional tem jurisdição sobre a deportação ou transferência, direta ou indireta, pelo poder ocupante de parte da sua própria população para o território que ele ocupa, ou a deportação ou transferência de toda ou parte da população do território ocupado para outra área dentro ou fora do território”.



O relatório enquadra as ações israelenses nessa situação.



Unity Dow, um dos juízes da Comissão de Direitos Humanos da ONU, coautor do relatório, declarou: “a magnitude das violações pelas políticas de Israel de desapossamentos, despejos, demolições e deslocamentos das terras mostra a natureza generalizada dessas brechas nos direitos humanos. A motivação, por trás da violência e intimidação contra os palestinos e suas propriedades, é expulsar as populações locais de suas terras, permitindo a expansão dos assentamentos”.



As leis contra esse tipo de ações já existem há anos e os palestinos nunca puderam fazer uso delas para processar Israel no Tribunal Penal Internacional da Justiça.



Só Estados têm esse direito – o que para a comunidade internacional eles não eram. Limitavam-se a recorrer à ONU, com resultados inócuos graças aos prestimosos serviços do bom Tio Sam aos israelenses.



Mas agora a realidade é outra. Com o reconhecimento do Estado palestino pela ONU, basta que ele ratifique o Estatuto de Roma para poder responsabilizar Israel perante o TPI por sérias violações dos direitos humanos e das leis internacionais.



Portanto, Abbas, o presidente da Autoridade Palestina, está com a faca e o queijo nas mãos. Esta até surpreendente atitude do Conselho de Direitos Humanos da ONU vem num momento em que Israel está em conflito com o organismo.



Em março, o governo de Tel-aviv negou-se a permitir que os representantes do Conselho entrassem na Cisjordânia para investigar os efeitos dos assentamentos na população palestina.



Israel agravou a situação quando decidiu, em novembro, boicotar a Revisão Periódica Universal. Trata-se de uma reunião quadrienal, na qual é analisado o estado dos direitos humanos em todos os países membros do Conselho.



A decisão israelense é algo absolutamente sem precedentes, pegou muito mal, até os EUA ficaram surpreendidos. Divulgou-se extraoficialmente que apelaram para Israel voltar atrás.



Por enquanto, Tel-aviv não muda de opinião. Mantém o que disse em março: o Conselho de Direitos Humanos teria um viés contra os israelenses, tanto é que publicara mais resoluções contra eles do que contra todos os outros países juntos.



O que se explica facilmente: Israel deu muito mais motivos para condenações. Lembro ainda que o Conselho tem se mostrado imparcial, pois também já criticou fortemente a Síria de Assad, o Irã e o Hamas, inimigos de Israel.



Coincidentemente, com o sinal amarelo imposto pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU a Israel, novos fatos agravaram a situação dos direitos humanos na Cisjordânia.



Em diversas manifestações pacíficas recentes dos palestinos, o exército israelense foi acusado pela ONG judaica B. T’Selem de atirar sem necessidade, ferindo muita gente e até matando civis inocentes.



Claro, fontes do exército negaram. Mas foram praticamente desmentidas por uma testemunha absolutamente insuspeita. Nada menos do que o Comandante em Chefe do Exército Central de Israel: o major-general Nitzan Alon.



Em memorando aos seus oficiais-comandantes na Cisjordânia, ele recomendou que, devido a incidentes que resultaram na morte de diversos cidadãos inocentes, eles deveriam “mostrar comedimento” e “respeitar estritamente” as leis do exército.



E o major-general Alon advertiu também que mortes injustificadas estavam desgastando a legitimidade dos militares israelenses aos olhos tanto da sociedade israelense quanto da comunidade internacional, e poderiam ser o combustível de violentas demonstrações por parte dos palestinos sob ocupação.



O major-general Alon parece sentir que o excesso de abusos cometidos por seu país está passando dos limites.



O recente cartão amarelo aplicado pela Comissão de Direitos Humanos da ONU mostra que sua preocupação com o pensamento da comunidade internacional tem razão de ser.



Até agora, Israel sempre se considerou acima de qualquer suspeita. Praticou suas transgressões das normas internacionais com a certeza de uma impunidade garantida pelo guarda-chuva protetor dos governos estadunidenses.



Mas tendo a Palestina sido aprovada como Estado não-membro da ONU, as coisas podem ficar pretas.



A Autoridade Palestina tem todo direito legal de processar Israel na Corte Internacional de Justiça. Lá, os EUA não têm poder de veto. E os juízes da Corte têm fama de independentes.



A sorte de Israel está nas mãos de Abbas, o presidente da Autoridade Palestina. Não se sabe se ele tem coragem de desafiar os EUA, que o têm patrocinado.



E, ainda, enfrentar Israel, que certamente acabaria com a Autoridade Palestina e com os empregos, as honras e os proventos dos cargos de Abbas e seus ministros.



É também certo que Israel reteria os impostos que recolhe em nome dos palestinos e os EUA cortariam sua ajuda.



De outro lado, a pressão dos povos da Palestina e dos demais Estados árabes seria muito forte. Resistir a ela poderia forçar Abbas a demitir-se.



São muitas dúvidas. Não dá mesmo para saber se o cartão amarelo mostrado a Israel será seguido por um cartão vermelho. Ou se Abbas e os seus perderão esta chance de marcar um gol de placa.



Luiz Eça é jornalista.

Website: Olhar o Mundo.
Última atualização em Sexta, 08 de Fevereiro de 2013

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Jacob Gorender

O Historiador Jacob Gorender Faz 90 Anos       
Escrito por Mário Maestri  






O Correio publica entrevista concedida à jornalista Patrícia Benvenuti, do Jornal Brasil de Fato, 3/02/2013.



Qual a importância de Jacob Gorender para a esquerda brasileira?



Jacob Gorender ingressou no PCB ainda estudante, durante a II Guerra, combatendo o nazismo na Itália como pracinha. De volta ao Brasil, tornou-se militante profissional do PCB, integrando suas direções médias e superiores. Após o golpe de 1964, rompeu com outros camaradas com aquele partido para fundar o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, com a orientação do qual se dissociava quando foi preso. Após cumprir a pena de prisão a que foi condenado, jamais voltou a militar organicamente em partido político de esquerda, dedicando-se essencialmente à produção teórica marxista. Portanto, por quatro décadas, acompanhou como militante de base e dirigente as vicissitudes da esquerda organizada brasileira para transformar-se, a seguir, em minha opinião, no mais importante pensador marxista brasileiro.


Quais as maiores contribuições de Jacob Gorender no campo intelectual?



A dolorosa e difícil trajetória política de Jacob Gorender permitiu-lhe despontar, em fins dos anos fins 1970, ainda sob a ditadura militar, como o mais importante pensador marxista revolucionário produzido pela luta de classes no Brasil, como apenas assinalado. Boa parte da militância pecebista havia se radicalizado, sob o avanço da revolução mundial e o impacto da derrota do colaboracionismo de classes em 1964, sem realizar real balanço e superação das concepções e reflexões que haviam sustentado a prática passada. Gorender expressou a necessidade daquela superação teórico-política, através de sua crítica sistemática do processo de gênese e devir da formação social brasileira.



Ao ser lançada, em 1978, O escravismo colonial alcançou grande repercussão, ainda que em forma transitória, sobretudo devido à retomada potencializada das lutas proletárias no Brasil, na segunda metade dos anos 1970, com destaque para São Paulo, o coração industrial do país. O escravismo colonial conheceu, no ano passado, uma cuidada quinta reedição pela Fundação Perseu Abramo.


O escravismo colonial é citado por muitos militantes e analistas como uma obra fundamental sobre o Brasil. O que ele trouxe de tão inovador?



Em 1978, ainda sob a ditadura militar, o lançamento por Jacob Gorender de uma erudita tese científica sobre a economia política da escravidão americana surpreendeu profundamente a esquerda brasileira em difícil processo de reorganização, após duas derrotas políticas importantes, em 1964 e em inícios dos anos 1970. Uma esquerda que, em verdade, pouco compreendeu, e segue pouco compreendendo, o sentido profundo daquele trabalho. Apesar de ser livro escrito e destinado principalmente para a esquerda brasileira, O escravismo colonial teve importante consagração no mundo acadêmico, antes de sofrer enorme ofensiva de deslegitimação conservadora nos meios universitários.



Com O escravismo colonial, Jacob Gorender perscrutou as leis tendenciais do modo de produção escravista colonial [definido como historicamente novo] que conformara a antiga formação social brasileira. Tratou-se de esforço titânico que dissolveu as fantasmagorias dominantes sobre um passado capitalista, feudal ou híbrido, estabelecendo as bases para a interpretação das dinâmicas profundas do passado e do presente do Brasil. A tese se constituiu como construção dos fundamentos de uma crítica sistemática geral da formação social brasileira.



E essa crítica foi realizada?



Com O escravismo colonial, Jacob Gorender realizou crítica categorial sistemática do modo de produção que fundamentou a antiga formação social brasileira. Sua leitura posterior do período pós-1888 foi apenas delineada e esboçada, sobretudo em dois breves ensaios. O primeiro, Gênesis e desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro, conferência pronunciada em 1979, discute a transição singular, que deu origem à produção capitalista no campo, após a definitiva superação da produção escravista, através da revolução abolicionista de 1888. O segundo, A burguesia brasileira, de 1981, editado na coleção Primeiros Passos da Brasiliense, aborda sumariamente a gênese e o desenvolvimento da industrialização no Brasil e da formação da burguesia brasileira, até fins dos anos 1970.



Em última instância, no plano individual, as dificuldades de Jacob Gorender em enfrentar aquela tarefa isolado, combatido, desprovido de recursos, sem uma forte compulsão social, contribuíram certamente para o caráter sintético do desdobramento da crítica iniciada com O escravismo colonial. Limitações que se materializaram no contexto do refluxo do mundo do trabalho no Brasil, após o ápice das lutas sociais de 1979, e através do mundo. Refluxo que resultou na vitória histórica da contrarrevolução mundial, em fins dos anos 1980.



Que outras obras de Gorender merecem destaque?



Entre outros importantes livros, além da monumental tese O escravismo Colonial, atinente à economia política, Jacob Gorender escreveu dois clássicos da historiografia brasileira. O primeiro, Combate nas trevas: a esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada, constitui avaliação da luta da esquerda nos anos pós-1964. Trata-se de preciosa reconstituição sintética e crítica histórico-política daquele período, nas quais podemos acompanhar as rupturas e as permanências das visões do autor quanto às suas concepções e ações naquele período. A escravidão reabilidata foi editada também pela Ática, em 1990, dois anos após as celebrações do primeiro centenário da abolição da escravatura, em 1988. Constitui obra antológica de crítica historiográfica, que desvela o processo genealógico e as raízes ideológicas do revisionismo historiográfico sobre a escravidão brasileira, que restaurou as antigas teses sobre uma sociedade escravista patriarcal, consensual, negociada, hoje plenamente hegemônica, etc.



Na sua avaliação, a obra de Jacob Gorender como um todo e suas ideias continuam atuais? Por quê?



Como um todo, não. Após a ruptura com o PCB, o próprio Jacob Gorender jamais reivindicou a produção realizada quando dirigente daquela organização. Com O escravismo colonial, em 1978, como proposto, ele despontou como a principal referência teórica do marxismo revolucionário no Brasil, resgatando genialmente a vigência daquele método e a necessidade histórica da revolução socialista sob a direção do mundo do trabalho. Nesse processo, construiu obra magnífica que se mantém como instrumento incontornável da interpretação da formação social brasileira para a sua superação revolucionária. Entretanto, a maré da contrarrevolução de fins dos anos 1980, que restaurou a produção capitalista nos países de economia planejada e nacionalizada, ditos socialistas, motivou ruptura essencial de Gorender com as posições por ele defendidas. Recuo que fez par do terrível processo de retrocesso político-ideológico que envolveu milhares de intelectuais, políticos, lutadores sociais, etc. no Brasil e no mundo. Em 1999, já com 76 anos, publicou o livro Marxismo sem utopia, pela Ática. O trabalho materializou espécie de salto em direção ao passado, que retomou a ótica revisionista defendida, por ele e pequeno grupo de dirigentes comunistas, entre os quais Mário Alves, sob a inspiração de Luís Carlos Prestes e da aceleração colaboracionista do PCURSS, quando da Declaração de Março de 1958. Um enorme retrocesso produzido em idade tardia, que tornou e torna ainda mais difícil a imprescindível compreensão da importância de sua produção pela esquerda revolucionária brasileira e latino-americana.



Mário Maestri é historiador e professor do programa de pós-graduação em História da UPF, RS. E-mail. maestri(0)via-rs.net

Entrevista concedida à jornalista Patrícia Benvenuti do
Jornal Brasil de Fato, 3/02/2013.


Última atualização em Sexta, 08 de Fevereiro de 2013

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Pessoa

Fernando Pessoa
publicado em artes e ideias por benjamin júnior


Letras Quotes Fernando Pessoa Poesia Literatura

Não sou nada
Nunca serei nada
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo

Fernando Pessoa (Tabacaria)

Leia mais: http://obviousmag.org/archives/2005/07/fernando_pessoa_4.html#ixzz2KQ8qhGcl

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Carnaval

Carnaval: que desejos te seduzem?
By
Kátia Marko
 Comportamento, Destaques, Sociedade
Festival Aho, 2012/13, em Ilha Comprida (SP): outro momento em que desejo não rima com poder

Festival Aho, 2012/13, em Ilha Comprida (SP): outro momento em que desejo não rima com poder

Celebrar corpo, consciência e prazer pode ser alternativa à cultura que reduz sexo a fetiche de egos e poderes

Por Katia Marko, editora da coluna Outro Viver | Imagem: Paco Antonino

Chegou o Carnaval. Momento tão esperado por muitos. Espaço para soltar o freio, viver fantasias, desfrutar o prazer. Pacatos cidadãos experimentam o sonho de virar reis e rainhas. Desejos inconscientes escapam pela janela agora aberta com o consentimento social. Tudo vale na busca do prazer.

O meu Carnaval, há alguns anos, tem sido na Comunidade Osho Rachana, onde promovemos um grupo chamado Carnawow. Já está confirmada a participação de 70 pessoas para este ano. Serão quatro dias de trabalho corporal, meditações, trilhas na natureza, encontros, diversão e criatividade. Tudo para aumentar a capacidade de curtir a vida. Pra começar, vamos “limpar o terreno”. Sessões de bioenergética e meditações pra ajudar a soltar tensões e sentimentos guardados e reconectar com a energia do corpo. No domingo, depois de reconectar consigo mesmo, é a vez de encontrar o outro, no sentido mais rico da palavra. Trabalhos terapêuticos que vão ajudar a recuperar a confiança na amizade. Já na segunda-feira, é o espaço para a celebração e o êxtase. O grupo é dividido para criar e apresentar duas escolas de samba com direito a alas, bateria, carros alegóricos e o que mais a imaginação permitir.  No último dia, é relaxar, curtir a natureza e meditar.

Mesmo que todos nós busquemos o prazer, esta é uma palavra que evoca sentimentos conflitantes. Por um lado esta associada com o que é “bom”. Mas, a maioria das pessoas acharia desperdício uma vida devotada ao prazer. Temos medo que o prazer nos leve a caminhos perigosos, onde esqueceríamos deveres e obrigações, deixando que nosso espírito se corrompesse pelo prazer descontrolado.

No livro Prazer, uma abordagem criativa da vida, o médico-psiquiatra Alexander Lowen, explica que todos nós queremos que a vida seja mais do que a luta pela sobrevivência, e deveria ser agradável, e sabemos que todos têm amor a dar. “Mas quando o amor e a alegria desaparecem, sonhamos com a felicidade e procuramos a diversão. Não conseguimos perceber que o alicerce de uma vida alegre é o prazer que sentimos em nossos corpos, e que sem essa vitalidade, ela se transforma na cruel necessidade de sobrevivência, onde a ameaça de tragédia nunca está ausente”.

Na real, em nossa cultura, todos receiam o prazer. “Como a cultura moderna é dirigida mais pelo ego do que pelo corpo, o poder se transformou no principal valor, reduzindo o prazer a uma situação secundária. A situação do homem moderno se assemelha à de Fausto que vendeu a alma a Mefistófeles em troca de uma promessa que nunca poderá ser cumprida. Apesar da promessa de prazer ser uma tentação do diabo, o prazer não pode ser proporcionado pelo diabo”, diz Lowen.

Segundo ele, todos nós, como o Dr. Fausto, estamos prontos a aceitar as tentações do demônio. Ele está dentro de cada um sob a forma de um ego que nos acena com a realização de um desejo desde que o obedeçamos. A personalidade dominada pelo ego é uma perversão diabólica da verdadeira natureza humana. O ego não existe para ser mestre do corpo, mas sim seu servo leal e obediente. “O corpo, ao contrário do ego, deseja prazer e não poder. O prazer é a origem de todos os bons pensamentos e sentimentos. Quem não tem prazer corporal se torna rancoroso, frustrado e cheio de ódio.

O pensamento é distorcido e o potencial criativo se perde. A perda se torna autodestrutiva. O prazer é a força criativa da vida. A única força capaz de se opor à destrutividade em potencial do poder”.

Para Lowen, o prazer e a criatividade estão relacionados dialeticamente. Sem prazer, não haverá criatividade. Sem uma atitude criativa diante da vida não haverá prazer. “Essa dialética surge do fato de ambos serem aspectos positivos da vida. A pessoa viva é sensível e criativa. Através da sensibilidade coloca-se em harmonia com o prazer e através do impulso criativo procura sua realização. O prazer na vida encoraja a criatividade e a comunicação, e a criatividade aumenta o prazer e a alegria de viver”.

Então, para vivermos plenamente o prazer e a criatividade temos que mexer nas tensões do nosso corpo, respirar profundamente e expressar nossas emoções. Essa é a proposta do Carnaval na comunidade em que moro: prazer com consciência.


Katia Marko é jornalista, terapeuta bioenergética e uma pessoa em busca de si mesma.
(Outras Palavras))

Costa-Gavras

O cinema de Costa-Gavras
por Mariana Carolo
O olhar de um grego sobre a recente história latino-americana


Konstantinos Costa Gavras, também conhecido como Costa-Gavras, é um cineasta grego que tinha tudo para ter sido apenas mais um diretor de filmes qualquer...


Contudo, a partir de sua segunda produção, “Um homem a mais - Tropa de choque” de 1966, o mesmo começou a revelar a sua atração por assuntos espinhosos, bem como o seu incansável ativismo e um espírito questionador. Marcas que acabaram fazendo dele a grande estrela da geração do cinema político dos anos 70.

Esteticamente, os filmes de Costa-Gavras são simples e lineares. Tanto que muitos dos seus críticos afirmam que as suas produções subestimariam a inteligência do espectador com um irritante didatismo. Argumento que é respondido pelos seus defensores com a ideia de que, na verdade, o grego trabalharia primando pela agilidade e competência técnica. Outra fala recorrente dos detratores do cineasta é a de que a sua obra seria descaradamente panfletária.

Em contraponto, pode-se dizer que Konstantinos nunca procurou alcançar uma neutralidade inalcançável. O mesmo sempre defendeu que fazer cinema seria fazer política e que política seria história concentrada. Por isso é que muitas das suas películas retratam distintos momentos, como os regimes de segurança nacional que assolaram a América Latina nas décadas de 1960, 70 e 80.

Dois títulos de Costa-Gavras tratam diretamente sobre as ditaduras civil-militares latino-americanas. Primeiramente, no ano de 1972, foi rodado “Estado de Sítio”. Filmado no Chile de Allende, o mesmo foi baseado em um caso real, ocorrido em 1970: o sequestro do agente estadunidense Dan Mitrione (Yves Montand), pelo grupo de guerrilha uruguaia Tupamaros.



Mitrione, treinado pela Agency for International Development de Washington, veio para a América do Sul ensinar ao governo brasileiro e, depois, ao uruguaio, técnicas de tortura. O norte-americano foi sequestrado em Montevidéu como uma resposta ao endurecimento da repressão, a meta era trocá-lo por presos políticos. Com a negativa de Juan Maria Bordaberry em negociar, o torturador foi morto com tiros na cabeça. A descoberta do corpo e o seu funeral é o ponto de partida de “Estado de Sítio”, que voltará no tempo para contar como se desenrolou os dez dias de cativeiro.

“Estado de Sítio” fala através de ausências, ressaltando como o silêncio era eloquente naqueles anos de chumbo. Por exemplo, na cerimônia fúnebre de Mitrione, estão presentes todos os ministros, chefes das Forças Armadas e o corpo diplomático do país. Mas, desagradavelmente, a câmera aponta que o espaço reservado ao corpo universitário e ao arcebispo está vago. Aqui, Costa-Gavras habilmente joga na tela que uma parcela da sociedade uruguaia não compactuava com as homenagens ao morto e com o que ele fazia.
Por fim, cabe destacar que nada mais natural, devido à forte carga contestatória de “Estado de Sítio”, que a produção não fosse rodada no Uruguai. Naquele momento, o Chile era o lugar ideal, por ser então governado pela Unidade Popular de Salvador Allende. O irônico, é que, dez anos depois, em 1982, Costa-Gavras teve que recriar cenários de novo. E, dessa vez, as paisagens refeitas eram as do próprio Chile, que se encontrava sob as garras de Augusto Pinochet. É assim, em território americano, que se desenrolará “Desaparecido, um grande mistério”.

Vencedor de prêmios como a Palma de Ouro de 1982 e o Oscar de melhor roteiro adaptado de 1983, o título conta como o jornalista Charles Horman (John Shea) foi levado para interrogatório, e assassinado no decorrer do mesmo, durante o golpe liderado por Augusto Pinochet. Devido ao sumiço de Horman, Ed (Jack Lemmon), o seu pai, vai para o Chile e, junto com a sua nora, Beth (Sissy Spacek), refaz os passos do filho até o seu desaparecimento.

missing.jpg Pôster de “Desaparecido, um grande mistério”

“Desaparecido...” apresenta o golpe de Estado chileno ao mundo através do drama de uma família estadunidense. Na película, desde o começo são vistos jovens confiantes em sua cidadania norte-americana, postura que revela uma alienação de quem se considerava protegido pelos tentáculos de seu Estado até nas paragens mais remotas. E certa ignorância, por desconhecerem o quão sua nação estava envolvida nas ditaduras que desabavam por toda a América Latina. O grego Costa-Gavras então pinça uma história dentro desse grupo, a de Ed e seu filho Charlie. Mas esse drama não é superdimensionado no filme. O diretor deixa claro que esta foi mais uma história dentre os milhares de casos que foram vivenciados pelo povo chileno e por quem ali se encontrava: Charlie é só mais um a ser morto dentro do Estádio Nacional.

Contudo, Costa-Gavras não filma só o lado feio dos humanos. Também temos na película a solidariedade (Ed e Beth mal se conheciam, mas a dupla se ampara para suportarem a dor da perda de alguém querido e a ignorância do que ocorrera com essa pessoa) e a indignação, transcendendo nações, interesses etc. Os antes ingênuos norte-americanos ganham nossa simpatia quando assistimos a eles se voltarem contra os burocratas de seu país que ajudaram a pintar tal quadro de horror em um espaço que não lhes pertencia. Assim, Costa-Gavras constrói uma trama que aponta para uma indignação única: mesmo aqueles que são oponentes no modo de vida, que vivem com valores e princípios opostos, não podem aceitar silenciosamente o assassinato como arma política do Estado contra os indivíduos.


marianacarolo
Artigo da autoria de Mariana Carolo.
a dona de mil galáxias.
Saiba como fazer parte da obvious.

Assange

“Seis famílias controlam 70% da imprensa no Brasil”
Brasil,Destaques,Soberania Comunicacional

 Fundador do Wikileaks, Julian Assange diz que um dos grandes problemas do Brasil e da América Latina é a concentração da mídia; ele defende o presidente equatoriano Rafael Correa, que lhe deu asilo, aprofunde a disputa com a imprensa local. “Deveria atacar mais”, diz ele. “Quando falamos em liberdade de expressão, temos de incluir a liberdade de distribuição, uma das coisas mais importantes que a internet nos deu”, afirma

Refugiado na embaixada do Equador em Londres, Julian Assange, fundador do Wikileaks, recebeu o jornalista Jamil Chade, correspondente do Estado de S. Paulo, para falar sobre sei livro Cypherpunks, Liberdade e o Futuro da Internet, que está sendo lançado no Brasil pela Boitempo Editorial. Na entrevista, ele disse que um dos principais problemas da América Latina é a concentração da mídia. “No Brasil, seis famílias controlam 70% da informação”.

Leia, a seguir, os principais trechos da conversa:

A web como arma

Tecnologia produz poder, a ponto de a história da civilização humana ser a história do desenvolvimento de diferentes armas de diferentes tipos. Por exemplo, quando rifles eram as armas dominantes ou navios de guerra ou bombas atômicas. Desde 1945, a relação entre as superpotências era definida por quem tinha acesso a armas atômicas. Hoje, a internet redefiniu as relações de força antes definidas pelas armas. Todas as sociedades que têm qualquer desenvolvimento tecnológico, que são as sociedades influentes, se fundiram com a internet. Portanto, não há uma separação entre sociedade, indivíduos, Estados e internet. A internet é hoje o alicerce da sociedade e conecta os Estados além das fronteiras. Conhecimento é poder.

Vigilância global

A comunicação entre indivíduos ocorre pela internet. Sistemas de telefone estão na internet, bancos e transações usam a internet. Colocamos nossos pensamentos mais íntimos na internet, detalhes, como diálogos entre marido e mulher e até nossa posição geográfica. Enfim, tudo é exposto na internet. Isso significa que grupos envolvidos na vigilância em massa realizam uma apropriação enorme de conhecimento. Esse é o maior roubo da história.

Google e Facebook

O Google sabe o que você estava pensando. E sabe o que você pensou no passado, porque quando você quer saber algum detalhe, busca no Google. Sites que têm Google Adds, ou seja, todos os sites, registram sua visita. O Google sabe todos os sites que você visitou, tudo o que você buscou. Ele te conhece melhor que você. Você sabe o que você buscou há dois dias? Não. Mas o Google sabe. Alguém pode dizer: o Google só quer vender publicidade. Mas, na realidade, todas as agências de inteligência dos EUA têm acesso ao material do Google. Eles acessaram isso em nosso caso.(…) Países como a Islândia têm uma penetração no Facebook de 88%. Mesmo que você não esteja no Facebook, seu irmão está e está relatando sobre você.

Uso pela CIA

Pessoas querem compartilhar algo com meus amigos e amigos de meus amigos, mas não com meus amigos e com a CIA. As pessoas estão sendo enganadas.

Concentração de mídia

[Rafael Correa, presidente do Equador] deveria atacar mais. A primeira responsabilidade da imprensa é a precisão e a verdade. O grande problema na América Latina é a concentração na mídia. Há seis famílias que controlam 70% da imprensa no Brasil, mas o problema é muito pior em vários países. Na Suécia, 60% da imprensa é controlada por uma editora. Na Austrália, 60% da imprensa escrita é controlada por (Rupert) Murdoch. Portanto, quando falamos em liberdade de expressão, temos de incluir a liberdade de distribuição, uma das coisas mais importantes que a internet nos deu.

Revelações sobre o Brasil

Sim. Publicaremos muito sobre o Brasil neste ano.

Fonte: Brasil 247

domingo, 10 de fevereiro de 2013

EUA - Tortura

54 países, tortura & CIA ilimitada
Relatório da Open Society Foundations, ligada ao arquimilionário George Soros, traz 216 páginas em que se reúnem casos de 136 “cidadãos do mundo” sequestrados a mando da CIA norte-americana, em diferentes países, levados para diferentes países, neles eventualmente torturados, alguns terminando a trajetória na infame Guantánamo. Para isso, 54 governos colaboraram com a CIA e os EUA. O artigo é de Flávio Aguiar, de Berlim, para a Carta Maior

Flávio Aguiar


Berlim - O relatório, divulgado esta semana, é devastador. São 216 páginas reunindo os casos de 136 “cidadãos do mundo” sequestrados a mando da CIA norte-americana, em diferentes países, levados para diferentes países, neles eventualmente torturados, alguns terminando a trajetória na infame Guantánamo, ainda não fechada. São 54 países nomeados, que colaboraram com a CIA e os EUA neste trajeto hediondo de crimes contra a humanidade e contra as normas dos direitos nacionais e do direito internacional. O relatório pode ser encontrado aqui:

http://www.opensocietyfoundations.org/reports/globalizing-torture-cia-secret-detention-and-extraordinary-rendition

Em tempo: a Open Society Foundations é uma rede de fundações de direito privado, fundada pelo arquimilionário George Soros. Sei que diante disso muitos torcerão o nariz – mas antes que virem o rosto para o outro lado, prestem atenção nas informações.

Muitas delas já circulavam na mídia e na internet. Mas é a primeira vez que aparecem em conjunto e sistematizadas dessa forma. Seu nome é “Open Society Justice Initiative – Globalizing Torture”, e sua operação conceitual é demonstrar que a luta antiterrorista, baseada na tortura e na violação do conceito mesmo de direito, iniciada pelom governo Bush é inócua, a não ser do ponto de vista de corroer instituições governamentais e a credibilidade dos Estados Unidos por onde passe.

O relatório abre com uma citação do então vice-presidente dos Estados Unidos, Dick Chaney, feita em 2001:

“We also have to work, through, sort of the dark side, if you will.
We’ve got to spend time in the shadows in the intelligence world.
A lot of what needs to be done here will have to be done quietly, without any
discussion, using sources and methods that are available to our intelligence
agencies, if we’re going to be successful. That’s the world these folks operate
in, and so it’s going to be vital for us to use any means at
our disposal, basically, to achieve our objective.”
U .S. Vice President Dick Cheney, September 16, 2001.

Ou seja:

“Nós também temos de trabalhar através, digamos, desse lado trevoso, se vocês quiserem. Nós temos de passar algum tempo nas trevas do mundo dos serviços de inteligência. Muito do que deverá ser feito aqui deverá ser feito em silêncio, sem muita discussão, utilizando fontes e métodos que estão disponíveis para nossas agências de inteligência, se nós quisermos ter sucesso. Este é o mundo em que essa gente opera, e assim será vital para nós o uso de quaisquer meios ao nosso alcance para atingirmos nosso objetivo”.

Chaney está abrindo as portas – legalmente, porque antes elas já estavam abertas – do inferno, não para que as almas de lá saiam, como fez Cristo na História Sagrada, mas para que lá os suspeitos e acusados entrem, o inferno dos sequestros, das torturas clandestinas, novamente, como no tempo do nazismo, da “barbárie” descoberta no coração da “civilização”. Com base em documentos, o relatório afirma que 54 países colaboraram, de uma ou outra maneira, com as operações decorrentes, seja permitindo os sequestros, os executando, sendo cúmplices neles, permitndo o tráfego (tráfico?) oculto das vítimas, mantendo prisões clandestinas, praticando torturas, ou as estimulando através de auxílio nos interrogatórios:

Afeganistão, África do Sul, Albania, Argélia, Austrália, Áustria,
Alemanha, Arábia Saudita, Azerbaijão, Belgica, Bosnia-Herzegovina, Canadá, Croacia, Chipre, República Tcheca, Dinamarca, Djibouti, Egito, Emirados Árabes, Espanha, Etiópia, Finlândia, Gâmbia, Georgia, Grécia, Hong Kong, Islândia, Indonésia, Irã, Irlanda, Itália, Jordânia, Kenya, Libia, Lituania, Macedonia, Malawi, Malasia, Mauritânia, Marrocos, Paquistão, Polônia, Portugal, Reino Unido, Romênia, Somália, Sri Lanka, Suécia, Síria, Tailândia, Turquia, Uzbequistão, Yemen, Zimbábue.

Algumas (várias) observações:

1) A esmagadora maioria das operações se refere ao governo de George Bush Filho.

2) Em muitos desses países os governos que colaboraram com a política dos EUA/CIA foram substituídos por outros.

3) Causa espanto ver alguns dos países listados. Por exemplo: a Líbia listada era a de Muammar Ghadaffi, depois deposto e assassinado – melhor, linchado, com a cooperação pró-ativa do Ocidente. A Síria listada é a Síria de Bashar al-Assad, hoje hostilizado por esse mesmo Ocidente e com o governo (não sei se a cabeça) posto a prêmio em nível internacional.

4) Que faz o Irã nesse meio?

5) Não há (felizmente) nenhum país latino-americano listado, nem mesmo aqueles que mais se alinhavam ou se alinham com a política norte-americana, como México, Colômbia, Chile, Peru.

6) O relatório critica o governo de Barack Obama por ter se limitado a exigir, por via diplomática, garantias de que os centros de tortura e prisão não estariam mais sendo utilizados. Diz o relatório que seria necessária uma atitude mais vigorosa, investigando se essas práticas deixaram de fato de acontecer e os centros foram fechados. Mas como, até agora, os EUA sequer fecharam Guantánamo, talvez seja demais pedir tanto...

7) O relatório aponta suspeitas de que a CIA (coibida por uma proibição do governo atual), ainda que diminuindo o ritmo de tais práticas, tornando-as ocasionais, continue a exercê-las secretamente na Somália, no Afeganistão e até a bordo de navios da Marinha Norte-Americana.

8) O relatório assinala alguns (poucos) pontos positivos. A) A Itália foi até agora o único país a condenar agentes por tais práticas. B) O Canadá foi o único país a pedir desculpas oficialmente a um detido nestas circunstâncias, no caso, Maher Arar. C) O Canadá, a Suécia, a Austrália e o Reino Unido foram os únicos países a dar compensações às vítimas, ainda que nos dois últimos casos mediante desistência de ações legais por parte delas. O relatório destaca o papel negativo do Judiciário norte-americano, dispensando o exame de casos que “poderiam prejudicar a segurança nacional”, e o papel positivo da Corte Européia de Direitos Humanos, que vem aceitando o exame de casos apresentados pelas vítimas.