Após queda de ditador, egípcios miram novas conquistas
• Entrevistas
Para o sociólogo estadunidense Alexander Hanna, país vive momento de “efervescência coletiva”
14/02/2011
Luís Brasilino
da Redação
Mesmo após a queda do ditador Hosni Mubarak, na última sexta-feira (11), o povo egípcio permanece mobilizado para garantir as conquistas da revolução. Além disso, apesar da ausência de uma direção central no movimento, o país vive uma espécie de efervescência coletiva que pode levar a população a outros avanços, extrapolando o campo político-institucional em direção a mudanças econômicas e sociais. O relato é do sociólogo estadunidense Alexander Hanna, graduando da Universidade de Wisconsin-Madison e pesquisador de movimentos sociais e mídia social. Sua previsão é corroborada pelos protestos que voltaram a acontecer nesta segunda-feira (14) na praça Tahrir, epicentro das manifestações das últimas três semanas. Logo após o exército ter evacuado o local, cerca de 2 mil trabalhadores, entre bancários, policiais e funcionários da indústria do turismo e do transporte, marcharam reivincando melhores salários. Hanna, que é de família egípcia, retornou do Cairo para os Estados Unidos no último domingo (13) e, em entrevista ao Brasil de Fato, analisa ainda a composição do movimento que derrubou Muburak, a relação da população com o exército e do futuro da revolução.
Brasil de Fato – Os protestos perderam força após a queda de Mubarak?
Alexander Hanna – Acho que não. Primeiro, no dia seguinte após a queda, a praça Tahrir estava tão ocupada e excitada quanto no dia anterior. A diferença é que as pessoas, em vez de cantar frases revolucionárias, estavam cantando palavras de ordem nacionalistas e ajudando a limpar a praça. Cairo é uma cidade notoriamente suja, com uma poluição do ar terrível e sujeira pelo chão, e eu posso dizer, honestamente, que isto [após a limpeza] é o mais limpo que eu já vi. Eles estavam coletando lixo, pintando as calçadas, trazendo caminhões de lixo para levar tudo. Segundo, tem havido uma enorme quantidade de atividades sindicais país afora. O Egito tem um movimento trabalhista muito vibrante em alguns setores, mas ele foi em grande parte sufocado desde que a Federação de Sindicatos [a única central do país] foi controlada pelo partido de Mubarak, o PND [Partido Nacional Democrático]. Agora que eles estão fora, os trabalhadores estão realizando greves e fazendo reivindicações de direitos que eles deveriam ter tido há anos.
E as pessoas estão satisfeitas com a queda de Mubarak? Ou querem mais?
Elas estão muito felizes por terem dado esse grande passo, mas definitivamente não estão satisfeitas. As pessoas sabem que elas precisam fazer o duríssimo trabalho de reconstruir o país, que elas precisam construir um governo civil que possa substituir o comitê militar que está no controle agora. O exército parece cooperativo nisso e diz que irá deixar o poder após as eleições ou em seis meses, o que vier primeiro. A limpeza e as greves são apenas parte disso. Há um duro trabalho político que também precisa ser feito.
Você acha que existe a possibilidade dos militares permanecerem no poder, dando um golpe de Estado?
As pessoas parecem ter fé nos militares. Uma palavra de ordem popular foi “o povo e o exército são uma só mão”. Dito isso, as pessoas estão também cautelosas – elas sabem que ainda precisam fazer pressão popular para chegar aonde querem. Se ocuparam a praça Tahrir uma vez, elas podem ocupar de novo caso as coisas não caminhem como elas desejam. A palavra de ordem que uniu o povo e o exército é estratégica – ela representa um trunfo muito forte caso eles ocupem novamente outro espaço e os militares respondam violentamente. Ela é também genuína: as pessoas respeitam o exército e seus membros. Os egípcios trocaram apertos de mão com soldados, tiram fotos com eles, colocaram suas crianças em cima dos tanques etc.
Mas o exército egípcio é muito próximo dos Estados Unidos. Você não acredita que, em algum momento, isso possa entrar em conflito com o nacionalismo presente nos protestos?
É possível. Novamente, esse é o porquê das pessoas estarem sendo cautelosas. Mas eu também acho que os militares e os Estados Unidos têm cartas baixas nesse jogo. Os militares precisam equilibrar os interesses dos Estados Unidos e dos manifestantes. Qualquer movimento que vá muito em direção aos Estados Unidos e os manifestantes irão se revoltar de novo. Nenhum deles [EUA e militares] quer isso, então eles procuram parecer abertos às demandas populares. Não me preocupo com golpe militar ou ditadura. Preocupo-me com uma restrição mais gradual do poder democrático, o que não é tão dramático e detectável como as flagrantes violações de Mubarak foram.
Como é a organização do movimento que levou à queda de Mubarak?
Como você deve ter escutado, a organização do movimento tem sido bastante desorganizada. É difícil dizer quem está liderando o que, quem está no comando. Ouvi dizer que existem certos atores centrais, como alguns dos grupos de jovens que originalmente organizaram os protestos, mas, por outro lado, a organização dos eventos e atividades tem sido bastante distante das mãos de um único corpo. Alguém chama para uma atividade a ser realizada e ela está feita. Poucos chamam para o recolhimento do lixo e várias centenas se juntam a eles. Alguns chamam para uma marcha ao palácio presidencial e vários milhares comparecem. Há um tipo de efervescência coletiva (para usar um termo de Émile Durkheim) que parece fazer as pessoas se engajarem nessas atividades populares.
Mas essa organização é suficientemente forte para garantir o sucesso da revolução e impedir a redução gradual do poder democrático que você falou?
Penso que, enquanto pontos da nova constituição forem estabelecidos no sentido de salvaguardar o espírito do movimento, esse declínio de poder democrático pode ser evitado. Claro, nenhum documento é 100% invulnerável a abusos. Mas muito do nepotismo, da corrupção etc., que existiam antes da revolução, parecem ser um anátema do tipo de Egito que os manifestantes querem. Posso parecer ingênuo aqui, mas acredito que as pessoas descobriram que elas têm poder coletivo e que, quando chegar a hora de começar a redigir a constituição e [escolher] delegados e representantes, o processo vai em geral refletir a vontade do povo.
Pelo que vem sendo dito na mídia corporativa internacional, a revolução parece estar focada prioritariamente na expansão de direitos políticos. Há a possibilidade de mudanças econômicas e sociais serem incluídas na pauta?
Acredito que esses três elementos caminham de mãos dadas. Como disse, houve mobilizações massivas de trabalhadores durante esse movimento e essa mobilização continua. Enquanto falo, até mesmo a polícia entrou em greve e está marchando na praça Tahrir. O movimento de trabalhadores teve avanços limitados durante o governo Mubarak e acredito que avanços muito maiores serão conquistados com uma sociedade civil vibrante.
A faísca [que deu início aos protestos] girava muito em torno dos direitos políticos – um dos principais organizadores era um grupo denominado “Somos todos Khaled Said”. Khaled Said foi um homem de 28 anos que foi espancado até a morte pela polícia em um cyber café. A polícia nega sua morte, diz que ele engasgou após ter engolido um saco com drogas. Khaled Said foi a última encarnação [da luta] contra a brutalidade policial e pela liberdade de expressão e de imprensa.
Aspectos econômicos, claro, tiveram um importante papel, com grande parte dos egípcios vivendo na pobreza (metade da população vive com menos de 2 dólares por dia e o salário mínimo é de cerca de 30 dólares [R$ 50]). O subemprego e o desemprego entre os jovens é galopante, mesmo para aqueles com educação universitária. A liberalização do setor privado retirou muitas indústrias do controle estatal, o que causou uma pressão para baixo coletiva dos salários e dificultou a sindicalização.
Questões sociais emergem de tudo isso. Um dos principais problemas sociais tem sido o sectarismo entre a minoria cristã copta (da qual minha família faz parte) e a maioria muçulmana sunita. Isso foi fortemente alimentado no início deste ano pela explosão de uma bomba em frente a uma igreja cristã, que matou 23 pessoas e feriu entre 100 e 200 outras, na cidade de Alexandria. Mas acredito que esse sectarismo também emerge da guetização das pessoas em suas respectivas comunidades religiosas. Nenhuma sociedade civil comporta polarização religiosa. O mesmo vale para direitos das mulheres, dos beduínos e outras minorias religiosas.
Então, os discursos têm sido sobre tudo isso. Houve uma missa copta na Tahrir no último domingo (14) na qual os cristão rezaram e os muçulmanos que estavam em volta deram as mãos para proteger a cerimônia. Não quero colocar aqui uma visão demasiadamente estreita sobre a solidariedade muçulmana/cristã – a posição oficial da igreja copta tem sido de ficar fora dos protestos e há algumas feridas profundas entre as comunidades que levarão gerações para serem curadas. Mas acredito que isso permite o ambiente no qual elas podem vir a ser curadas
(Brasil de Fato)
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