Todo mundo é natal
É preciso deixar nascer. Pensar a política a partir dos partos. A erótica como parteira de nossas mais profundas potências. Por que corpos são palanques. Palanques com cheiro. E não há mandato para o novo: ele é delicado com a política e o sexo
Hilan Bensusan , Fabiane Borges
(12/11/2008)
Política sexual às vezes espanta. Como se duas palavras que se repelem estivessem sendo empurradas uma contra a outra. E a esquizerda insiste em empurrar política na direção contrária aos imãs. Por que falar de política sexual e não conceder que seja uma política periférica? Nem é que precisamos apenas desordenar: é que palavras como "política" e "sexual" foram feitas para dissolver ordens. São furacões, feitos de desejos, de esbarrões e de afetos imprevistos. Por vezes são precisos furacões para abrir caminho para o que precisa fluir. Pode-se desviar os olhos dos ventos e ver só o que fica posto em seus lugares. Talvez política sexual seja sobre o que nasce. O que é novo nasce – Hannah Arendt dizia que todas as pessoas são natais.
Dois nascimentos: Miquel e Tracy. Miquel é filho de Carme Chacón e nasceu no último 19 de maio. Carme é ministra da defesa espanhola desde abril, e é ela que passa em revista a tropas e visita operações militares no Afeganistão, no Líbano. Miquel tem uma mãe que é uma comandante de exércitos. Ele tem uma mãe chefe militar – como não há muitas. Uma Pentesiléia na era dos cyberpatriarcados militares. Tracy é filha de Thomas Beatie e nasceu no dia 3 de julho. Thomas também nasceu Tracy, mas preferiu adotar o nome de Thomas para si e ser mãe. Tracy tem uma mãe que é um homem. Thomas manteve seu útero para poder ter um filho e ser mãe. Uma mãe homem na era das famílias nucleares especializadas quando o poder médico não hesita em prescrever papéis de mães e pais aos que criam crianças. Subversão de gênero é feito de uma coleção de passos grandes e pequenos. Quase todos queer. E alguns deles heterossexuais. Esquizerda quer ser a política sexual dos nascimentos.
Corpos são palanques e palanques com cheiro
É preciso deixar nascer. Pensar a política a partir dos partos. Audre Lorde sugeria que erótica é a parteira das nossas mais profundas potências. Partos são feitos de uma conjugação de desejos: o desejo de ficar mãe, o desejo de transformar um corpo por meio de alguma fricção, o desejo de abrigar acolher outra pessoa dentro das próprias entranhas. E o desejo de deixar nascer o novo. Corpos são plataformas políticas – uma das faixas pintadas em muitas das barrigas grávidas poderia ser lida assim: quero fazer uma plataforma política nova. E o novo não é compulsório: a maternidade imposta flerta com um arremedo de novo. A matéria mais do que matéria-prima, quando se põe a ser matéria-mãe. Corpos são palanques. Palanques com cheiro. Ninguém pode forçar um coração a fabricar o novo. É como política e como sexo – o que é novo requer espaço para desorganização. Nada disso pode ser obrigatório. Não há mandatos para o novo; ele é delicado como a política e o sexo. Delicado como estar prenhe do que é outro – ter potências dentro de si. Carregar possibilidades. Bolhas de sabão. Há plantas reais dentro dos jardins imaginados. Um rio carregando pedras. São políticas as resistências dos pandas a copularem perto dos seus cativeiros. Política sexual é um exercício de gentileza. Pastorear potências ao invés de equilibrar poderes – não estamos em nenhuma periferia porque toda política é sobre o que deixamos que venha a tona, o que damos à luz.
Mas os corpos podem escapar, renascer, seguir as potências menos transitadas, encontrar portas de saída. O corpo vaza. Corpos que carregam potência são corpos que não cumprem papéis em uma ordem estabelecida – respiram e conspiram
Trata-se talvez de contrapor à ordem biopolítica uma ordem de biopotências: deixar que nasça. György Köves, a personagem adolescente de Sorstalanság, de Kertesz, após sobreviver um ano nos Lager examina sua experiência como uma falta de destino: só haviam situações dadas que continham possibilidades. Mesmo em meio aos mais controlados cenários de biopoder, há potência sempre que há começos. A política vira embotada rotina de poderes em conflito quando os começos deixam de ser desejados e se tornam inevitável repetição. Sexo é sobre alguma coisa que inicia: parto de potências – a política e a erótica são epiciclos em torno da volúpia pelo novo. Política e sexo são avessos do mesmo e política sexual é o mesmo virado do avesso. Porque revirar corpos, mostrar Thomas grávido de Tracy, Carme grávida de Miquel, é transviar a ordem onde cabem os desejos – nossas aspirações, coceiras, vontades, projetos, plataformas, contratos sociais (sexuais, emocionais, intelectuais) assim como nossos medos (de raça, de classe, de idade) são bolina do corpo. Se cada corpo é biografia das nossas partes, a produção de corpos é o registro de uma biopolítica.
Mas os corpos podem escapar, renascer, seguir as potências menos transitadas, encontrar portas de saída. O corpo vaza. Corpos que carregam potência são corpos que não cumprem papéis em uma ordem estabelecida – respiram e conspiram. Matéria. O mundo é uma maternidade. Porque estamos acostumadas a encontrar sujeitos na política buscamos um sujeito para uma política sexual de esquizerda. Os sujeitos são trasitórios, já foi o cargo de Carme, já foi o útero de Thomas, já foi uma cirurgiã, já foi um artefato de metal. Dizer que potência mora em toda parte é dizer que política mora em toda parte. Há quem diga que a virada cyborg de Donna Haraway pode ser apresentada, grosso modo, assim: já que nossa espécie não encontrou recursos para sair do círculo vicioso de sua própria ordem estabelecida (se enredou na teia de inteligência social do capital, se enredou nas regras emocionais estabelecidas do que é heteropatriarcal), nossa saída será modifica-la, fazer nascer uma cyberespécie mais matreira, menos hierárquica, mais dançante. (Imaginem um cyberprojeto político assim: deixar que nasça o homo beckettans: deslizante, desalinhado e quase incapaz de fazer promessas). Se a saída é modificar a espécie, o sujeito pode ser genético, semiótico, metálico. Não se trata de convencer as pessoas de que a espécie tem que ser modificada – trata-se de modificá-la, de ter outras filhas (como Tracy), de ter outras fissuras, de ter outros músculos. A política não acaba quando as máquinas entram em cena – ela acaba quando o mesmo dirige o espetáculo. Quando os desejos estão controlados, os corpos domados, os nascimentos ensaiados. A esquizerda cultiva a micropolítica porque uns poucos corpos podem hospedar macropotências. Nosso compromisso político é a palpitação.
Não poderiam nossas potências nos levarem a um abismo – e não é já isso que elas estão fazendo? Há potências de toda cor. Roxas. Transparentes. Muitos discursos se vêem diante desse impasse e pregam a mordaça: há que prender certas potências, não deixar que certos poderes sejam exercidos. Domar. Aparece logo um inconveniente em discursos assim, uma nódoa: quem vai domar, cara pálida? Trata-se de um outro quem, um quem com efeitos devastadores. Não temos recursos senão nossas potências – nem as leis internacionais, nem a força de paz da ONU, nem o apelo à moral e aos bons costumes. Sem potências, não há para onde correr. Sem potências nem há matéria – mas há matéria. Sem essa confiança nas potências nem vale a pena deixar que nada nasça; é essa confiança que excita e que mobiliza. Essa força motriz nunca é migalha porque fabula, confabula, solta a mula e, ao mesmo tempo, enreda, encarrilha, encaracola, encarniça.
Mais:
Fabiane Borges e Hilan Besunsan assinam a coluna Políticas Esquizotrans no Caderno Brasil de Le Monde Diplomatique.
Nenhum comentário:
Postar um comentário