Cesar Kiraly
Greenwich por uma metafísica da casa
Esta apresentação foi escrita um pouco depois de concluídas as páginas do Greenwich. De alguma forma sentimos que algo relevante tinha acontecido, e que os elementos antigos intrínsecos a nossa conversa não eram capazes de explicar. A nossa conversa cessou por algumas semanas. Greenwich não foi a nossa primeira conversa, mas foi o nosso primeiro trabalho. Há um acordo tácito entre nós dois de deixar que o silêncio resolva os momentos em que o rigor não nos satisfaz. Greenwich veio à luz, antecedido e sucedido por muitas cartas – uma delas, ironicamente, perdida – menos numerosas do que a vontade de dizer. Não é bem possível discernir o lado R. do lado K. São dois lados de uma mesma rua. Mas é certo que é raseliana a maturidade visual desses meridianos.
Pois bem, em Greenwich nos interessou a pluralidade dos meridianos, isso que nos permite bem multiplicar. Num certo sentido, interessou-nos mais o instituinte meridiano, do que o instituído. Dizemos dessa forma, porque há uma política nos meridianos, aquela que nos faz preferir Greenwich a Paris. Mas, sobretudo, Greenwich é o nome, e apenas o nome, do processo espiralado de enunciados – pictóricos, portanto – passionalmente orientados – mistura de paixão e tinta – circundantes a um eixo com algum deslocamento. Dessa forma, Greenwich para nós é o nome de um meridiano instituinte. Há algo em sua metafísica de uma Ilha flutuante. Um lugar mais ou menos oscilante, mas sempre uma região. Nosso meridiano é como todo meridiano. Ainda que ele nasça de um marco em deslocamento. O seu corpo também é feito para servir de referência. Assim, ainda que nos percamos do meridiano, podemos, sem querer, encontrarmo-nos pisando por cima dele, podemos encontrar, de soslaio, o aviso de que estamos por cima dele, passando.
Dois são os personagens do nosso meridiano. O senhor B. é um antigo amigo de R., encontrado ferido no fundo de uma piscina. Este evento encontra abrigo na memória de K. acerca dos desafios à própria asma. Um vez que sempre esteve buscando bonecos perdidos na abissalidade das piscinas. O senhor B. é um meridiano, posto ter passado muitas vezes pelas mãos resgatadoras de K., mas, sobretudo, por ter sido escolhido a relicário por R. A senhora B. fora encontrada absolutamente intacta. Ainda que exista um Walter Benjamin no senhor B., não há casamento entre os B. Eles são parecidos e isto os une. O B. da senhora B. não é mais desconhecido do que o do senhor B. O meridiano não é uma semelhança de família, mas de espectros. São os fantasmas os juntadores de semelhantes.
A biografia Walter Benjamin do senhor B. lhe confere um corpo todo lanhado. Esses antigos confrontos com crianças, levados aos estupor do abandono, foram cuidadosamente preservados por R. A senhora B. não é menos acidentada, algo nos leva a crer que viveu muito mais do que o senhor B., mas suas marcas são meridianamente difundidas em suas cores doces, a leveza de seus sapatos, a amarradura eficiente de seus cabelos castanhos e as róseas circunferência em suas bochechas. O modo doce de difundir as marcas pela roupa fez com que a senhora B. tivesse uma disponibilidade virtuosa ausente no senhor B. A lacuna do senhor B., ao ostentar as marcas, ao ter como destino uma cabeça já aberta, o impede de se vestir para a senhora, com a senhora se veste virtuosamente para o senhor, ou de retirar o cabelo para fazer a meridiana lacunosa uma evidência. Nesse sentido é que Greenwich é um livro sobre o acidente lacuna. O jogo de dados é lacuna. O encontro entre as lacunas e a sorte, par hasard, é o que torna uma quebra lacunar necessária como uma piscada de olhos. A frivolidade da quebra não nos interessa.
A lacuna não é uma falta. Não tem uma natureza. A lacuna não tem princípio interno de atividade. Ela não se expande para além do seu meridiano. Não é repetição. Interrompe-se, posto que é colocada. Pode até mesmo ser promovida por um ser em estado de falta, mas como poderia sê-lo por qualquer outro estado de ser. A verdade da lacuna não é do sujeito, mas do tipo. Isso, a lacuna é a existência final do aspecto tipográfico da verdade. Vejamos que uma lacuna pode ser arredondada, como esta ( ), ou pode ter quinas, como estas [ ]. Greenwich é a manifestação de um tipo doce, possui personagens ironicamente quase-santos, sob luz alta. A lacuna, todavia, pode ser indicada por isto _____.
Mas a lacuna não precisa se restringir a um kairós cronológico de colocação instituinte. Nessa primeira modalidade a [ ] é inserida de modo a revelar o sentido pelo vazio. Há algo a ser esvaziado para permitir a compreensão. – A lacuna é a travessia do Alfeu a nado – . A lacuna pode ser um encontro marcado, em página branca ou preta. Ela pode ser uma tomada de posição no tempo. Mas também pode ser a projeção de um problema.
A cartomante que diz: - Mardi, Mercredi où Dimanche. Será sempre vencida pelo enxadrista duchampiano a sugerir: - Ora, Mardi não está lá, ou está? Aquilo que se encontra é sempre maior ou menor, e a lacuna mostra essa verdade. – Qual o tamanho do seu amor? [ ]. Dizer maior ou menor representa pouco pela tola exigência do ponto de referência. Porque não menos tolo seria perguntar: - Maior ou menor do que o quê? O meridiano da lacuna é a própria referência. A beleza da lacuna é que ela é, em seu tipo, ao mesmo tempo, cedo e tarde demais.
Publicação selecionada pela Galeria Gravura Brasileira para participar da SP Estampa de 2011.
Greenwich [Livro de artista de Rebeca Rasel e Cesar Kiraly]. Colagem, fotografia e impressão em papel canson. Tiragem: P.A + 7. Dimensões: 18x13cm. 2011.
Para Comprar Greenwich escreva para rebecarasel@gmail.com
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