sexta-feira, 8 de abril de 2011

Boilesen

Cidadão de Bem Pratica o Mal - I
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Por Halley Margon V. Jr., do Rio de Janeiro
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Cidadão Boilesen
A existência de um cineasta tão significativo como Eduardo Coutinho (de Cabra Marcado para Morrer, Santo Forte, Edifício Master e O Fim e o Princípio, entre outros) deve ter sido suficiente para estimular o aparecimento de novos diretores documentaristas e produções de altíssimo nível. Cidadão Boilesen, de Chaim Litewski, está certamente entre os documentários que poderiam ser colocados lado a lado com um Edifício Master, por exemplo. O que não é nada pouco!
A sinopse do filme (lançado em DVD) diz: “Através da surpreendente vida do ex-presidente da Ultragaz, Henning Boilesen, assassinado pela guerrilha em 1971, o documentário revela a ligação política e econômica entre civis e militares no combate à luta armada”. Poderia seguir adiante afirmando que ao fazer isso também lança luz sobre as relações de poder entre empresários e poder público para muito além do período militar. É isso o que, a meu ver, coloca um especial interesse no trabalho de Litewski. Não é uma questão de escarafunchar o passado pelo perverso prazer de mexer em lixo.
A questão é que os mortos não estão tão mortos assim. Houve transformações, mas são vários os procedimentos que se repetem. Sobretudo aqueles que se dão nas coxias da República.

Ultragaz, Folha, Camargo
Corrêa: um trio da pesada
Como diz a sinopse, Boilesen era diretor da empresa Ultragaz e participou diretamente da repressão aos opositores da ditadura militar. Embora tenha sido o único empresário eliminado pela luta armada, não foi nem de longe o único a participar do esquema de repressão que atuava à margem das leis, inclusive das de exceção. O filme lembra, por exemplo, que veículos de distribuição do jornal Folha da Tarde (da mesma empresa dona da Folha de S. Paulo) muitas vezes serviram de suporte às atividades repressivas (e terroristas) de setores como a Operação Bandeirantes (OBAN) e o DOI-CODI, responsáveis pela eliminação física e pela tortura de opositores do regime.
A nota “Folha de S. Paulo esconde sua história de amor com a ditabranda” publicada no semanário Opção (de Goiânia, no qual a coluna Paralaxe também é publicada) da semana passada pergunta “por que a cúpula do diário paulista, que aprecia falar do passado longínquo, quando o jornal foi criado, do período das Direta Já e do impeachment do presidente Fernando Collor, (...) não discute o período do regime civil-militar?” A resposta é óbvia, diz o jornalista Euler Belém, autor da nota: “a ‘Folha’ apoiou o golpe e, mesmo, teria atuado como base de apoio de setores militares (principalmente a extinta ‘Folha da Tarde’). O apoio ao golpe de 1964 e à ditadura não a diminui. O que torna sua história menor, com cheiro de falsificação é ignorar uma parte dela.”

Um parêntesis inevitável
Gosto muito dessa nota e, mais ainda, do seu autor. Mas não tenho como escapar de um breve comentário. A utilização do termo “ditabranda” não me parece poder ser outra coisa que não deboche, além de não servir para esclarecer absolutamente nada. Afinal, a ditadura brasileira teria sido branda com relação ao quê? Ao número de mortos e desaparecidos? À censura imposta aos meios de comunicação e à imprensa em geral?
Sendo deboche é descabido. Porque seres humanos foram torturados. Porque houve mortos, pessoas assassinadas por suas convicções e atos políticos, ou nem isso, sejam as executadas pelos facínoras a serviço da ditadura, ou as vítimas da cretinice do terrorismo das organizações da esquerda – e, en passant, do vasto repertório de gestos políticos estúpidos inventados por nós, os humanos, o terrorismo é hors-concours.
Ditadura é um conceito político claro e não há outro que possa ser aplicado em seu lugar. É fato que relativamente às ditaduras que mais ou menos no mesmo período ocuparam o poder na Argentina ou no Chile a ditadura brasileira produziu bem poucas vítimas fatais. Menos de 500 mortos – para uma população de 100 milhões. Na Argentina o número de desaparecidos foi algo em torno de 20 mil (18 mil pessoas segundo os números oficiais, ao menos 30 mil para as entidades de direitos humanos) – para uma população de 30 milhões. Mas o simples fato de se sugerir contabilidades do gênero deveria soar obsceno para qualquer um que tenha sensibilidade ética.
Seja como for, se alguma causa pode ser encontrada para tamanha disparidade ela deve ser procurada sobretudo na despolitização (para não se usar um termo chulo) da classe média brasileira, que praticamente não se opôs à ditadura, e não na suposta brandura dos militares do país. A disposição (ou tara, em muitos casos, como se verá aqui) revelada pelos que participaram da repressão no Brasil é indicação mais do que suficiente do que eram capazes.
Estupro e tortura
Nem por um átimo de segundo me passa pela cabeça a idéia de que o autor da nota apóie qualquer forma de tortura contra quem quer que seja. Mas, se, como diz, o apoio da Folha ao “golpe de 1964 e à ditadura não a diminui”, dado o contexto é preciso deixar claro que a participação direta nas atividades da ditadura que tinham como objetivo a eliminação física de adversários e a obtenção de confissões sob tortura, isso, sim, diminui, e muito, qualquer empresa ou indivíduo – tanto quanto ou mais até que a falsificação da história. Não há tortura aceitável. Consequentemente, não existe modo de tornar aceitável a participação ainda que indireta em atos de tortura e assassinato. E foi isso o que fez a empresa proprietária da Folha de S. Paulo.
No mais recente dos seus livros publicados no Brasil (com o delicioso título de Em Defesa das Causas Perdidas, Editora Boitempo) o filósofo esloveno Slavoj Zizek lá pelas tantas escreve que “um sinal de progresso em nossas sociedades é o fato de não ser preciso argumentar contra o estupro: é ‘dogmaticamente’ claro para todos que está errado estuprar e todos sentimos que até argumentar contra o estupro é demasiado (...)”. E conclui: o “mesmo deveria ser verdade no caso da tortura”.
A tortura e a eliminação física de adversários políticos são atos tão abomináveis que nem mesmo as mais abomináveis das ditaduras costumam colocar nos arcabouços legais que adotam (geralmente pró-forma) o direito a tais práticas. A ditadura brasileira não foi exceção e jamais admitiu tê-las levado a cabo.
Tortura e gozo
Diferentemente da Folha e do grupo Ultragaz houve também empresários que embora apoiando substantivamente as ações semi-clandestinas da repressão permaneceram nas sombras sem envolvimento direto nas ações. Num dos depoimentos do documentário é lembrado o nome do empresário da construção civil Sebastião Camargo.
Nada mais natural que empresários apoiassem a ditadura militar. Ela lhes serviu com afinco e esmero. E para vários deles o resultado foi espetacular – vide, por exemplo, o crescimento de empresas como as Organizações Globo e de empreiteiras como a Camargo Corrêa.
A ética empresarial é o lucro, mais nada. A disposição de determinadas empresas de dar suporte às ações ilegais da ditadura é parte do traço de caráter da empresa capitalista em geral: ela se lixa para a legalidade, a existência de normas e leis, Estado de Direito, exceto quando estes lhes sirvam diretamente ou, pelo menos, não a atrapalhe. O fato de que o próprio Estado (o corpo diplomático, as forças repressivas, a burocracia técnica, o aparato judicial, etc.) seja moldado para servir aos seus interesses não é suficiente. Há procedimentos que seriam inaceitáveis aos olhos da população em geral, mesmo de uma população domesticada. Esses são executados na sombra.
Era assim entre 1964 a 1985 e ainda hoje continua sendo exatamente assim. Não é o crime que afasta o capital da criminalidade, nem mesmo a punição (porque quase sempre é capaz de ludibriá-la, ao menos em países como o Brasil – que nisso avançou quase nada – veja-se o pipocar de notícias sobre problemas em obras para a Copa de 2014... que logo desaparecem). São apenas as circunstâncias. As circunstâncias e mais nada.
Mas não é este principalmente o assunto do documentário e nem é, também, o que mais interessa aqui. É o terceiro dos lembrados acima que torna particularmente pertinente a existência do documentário: o citado cidadão Boilesen.
(Continua na próxima coluna)
19/2/2011
Fonte: ViaPolítica/O autor
Halley Margon V. Jr é o mais novo colunista de ViaPolítica.
É escritor e arquiteto. Nasceu em Catalão, Goiás, em 1956. Na década de 70 colaborou com o jornal Versus, de São Paulo. Hoje reside no Rio de Janeiro. Lançou, recentemente, seu primeiro romance. Trata-se de Paisagem com cavalo [Rio de Janeiro, Ed. 7Letras, 160 páginas, R$ 33,00

Site: http://www.7letras.com.br/

E-mail: halleymargon@globo.com

Leia mais sobre o documentário Cidadão Boilesen em VP

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