Menti
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Por Sergio Santeiro, de Niterói
Não sei quem foi o gênio que inventou os dez mandamentos, mas tiro-lhe o meu chapéu. Assim é melhor, descarta-se qualquer falsidade. O desejo nos movimenta, o pecado nos paralisa. Nem sempre.
Colagem de Luiz Rosemberg Filho
Aquele não foi o meu último domingo em Charitas. Empurrei mais pra frente, a minha viagem era só na segunda. Dei um jeito de esticar mais um pouco, e no domingo seguinte voltei à cata da minha cerveja. Logo de cara junto com a primeira fui enquadrado: “O meu esposo ...”
Foi o sinal. Eu sabia que ela sabia que eu sabia.
Estava dado o limite, não se confunda a simpatia. Nem precisava, estava conformado, é pecado. Não sei quem foi o gênio que inventou os dez mandamentos, mas tiro-lhe o meu chapéu. Assim é melhor, descarta-se qualquer falsidade. O desejo nos movimenta, o pecado nos paralisa. Nem sempre.
Nada impedia que de resto pudesse curtir o cenário que, aliás, é pra que a praia serve. Ver o horizonte, todo o contorno da costa rendilhada, barcos e barcas, velas e velas. No entra e sai das águas, aqui não tem ondas, tanta coisa boa pra se ver e sentir.
A segunda eu fui pegar na barraca. Estava lá também a mãe da menina, as duas filhas dela, suas netas. Três gerações do mesmo corpo: a dos 50, a dos 30, e as duas de 16. As meninas são demais. Apesar da vontade nem pensar. Pois é, é mais pecado. Talvez se eu voltar daqui a dois anos.
A avó era boa de conversar, sempre referindo-se às meninas e ao marido, o único homem de sua vida, já falecido, é viúva. É curioso, é uma cabocla mais leve que as meninas, mas é cabocla rija e jeitosa também. E eu não vi a uva? Dizia-me ela:
– O senhor mora aqui, não é?
– Eu moro logo ali subindo o morro.
Ai, que vontade de subir o morro! E também que gostaria de andar no calçadão. Ai, o calçadão! Mudei o foco do meu interesse, afinal são todas mais novas que eu, devem-me atenção. E eu gosto de ouvir histórias assim, descompromissadas por quem tem histórias pra contar e sabe como contar.
Uma coisa puxa a outra sem causalidade aparente, o que manda é o fio da conversa. Prefiro ouvir. Tenho uma tendência à exaltação que é péssimo negócio. Assusta. Espanta a presa. Às vezes atrai e aí quem se assusta sou eu.
Na terceira cerveja além dos que ali desfilavam via desfilar outros momentos, outras praias, outros tempos. Sou praieiro, sempre fui rato de praia, de livraria e de cinemateca, vivi na praia boa parte da minha vida.
Mas não sou de conquistas na praia, o meu melhor ponto é o bar, que muitas vezes confirma o entreolhar no mar, e tem as gaivotas, um monte de criança correndo, os pregoeiros, é muita confusão, as oportunidades escapam não sei se por acaso ou de propósito. O bar é melhor, não tem pra onde correr, e desfilar pro banheiro é tiro certo, só ou acompanhada tá dando mole. Vale torpedo.
E como tenho os olhos como armas, guardei e guardo imagens e situações na memória comigo e sem migo. A conversa dos outros embala a nossa conversa interna de nosco para conosco. Se quiserem podem chamar de cinema ao vivo, a cores e ingravável com todas as pitadas de tons e temperos.
Depois da quarta cerveja só me resta emborcar numa peixada ali na esquina, mergulhar naquelas carnes, o peixe ou a sereia. Podia convidá-la. A agradável conversa da avó ficava como a nova despedida. Não direi mais a última. Sabe como é, mentiroso mente uma mente mais. Não que não se queira. A avó eclipsara em mim as meninas. Não é pecado.
26/2/2011
Fonte: ViaPolítica/O autor
Sobre o assunto, leia também “Meu último domingo em Charitas”, por Sergio Santeiro
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