segunda-feira, 9 de abril de 2012

Pobreza...

A pobreza é uma piada
Posted on 13/03/2012 | 2 Comentários

Imagem dos personagens Primo Rico e Primo Pobre, do programa humorístico "Balança mas não cai", criado na Rádio Nacional na década de 1950 e posteriormente exibido na TV Globo a partir de 1968
Por Urariano Mota.

Como se sabe, os pobres são ridículos. Eles estão sempre metidos em situações de vexame, e o mundo inteiro para eles é um vexame, porque o mundo todo está sempre alguns palmos acima de suas posses. Então eles se metem onde não devem. Vão irrefletidos, insensatos, aonde não deviam ir. Aliás, só existe um lugar onde podiam e podem estar: debaixo e abaixo de uma vida confortável e digna. Imaginem o que é um miserável a tocar violino cercado pelo mangue, casebre e lama. E com uma carinha negra a dizer “eu não gosto deste movimento de Vivaldi”. Ridículo.

Essa reflexão me veio esta manhã ao ouvir a última piada de um pobre. Ele, o eterno a dar vexame, estava no aeroporto – lugar onde não devia estar, a não ser lavando o chão – e desprevenido foi à lanchonete e pediu uma coxinha. Ao se dirigir ao caixa, soube do preço: 7 reais. Então recusou a tantalizadora, tenra e crocante coxinha. Mas o melhor da piada, o maravilhoso desfecho vem agora: ao se ver olhado por outros que estavam onde sempre estiveram, porque ambientes de luxo lhes é familiar, o pobre comentou num acesso de verdade:

– Muito caro. Isso é um Prato Feito no Piauí.

Ridículo. Ai dos pobres que cedem ao rompante, à generosidade da fala verdadeira. Então me veio à lembrança um dos meus personagens mais conhecidos, que adolescente viajou em um navio rumo à cidade maravilhosa, mais conhecida pelo nome de Rio de Janeiro. Pobre, suburbano, e de navio. Ah, foi uma sucessão de piadas e gags, que Chaplin jamais filmou, que Cantinflas com o seu rabinho à guisa de cinto nunca pôs no cinema. Na mesa do restaurante do navio, diante do garçom, o jovem pede um abuso de culinária na sobremesa:

– Me dê um champanhe.

E o garçom, sério como um Buster Keaton:

– O jovem se refere ao refrigerante.

– Sim, um guaraná champanhe da Antártica.

Depois, mal refeito, pede um bife com macarronada. Perdoem, mas este autor não é um humorista. Pois vem o macarrão e o jovem, à sua maneira, tenta comer a iguaria que, feito de matéria elástica, não sobe completa à boca: desce em fios gordurosos pelo queixo. Então um senhor classe média, comovido e comovente, como todo bom cristão, insinua um fim àquele desespero gastronômico:

– Não sei em Pernambuco, mas nós, em São Paulo, comemos assim.

E se pôs a cortar antes o macarrão no prato, com a paciência de quem não vive com fome, que come com modos civilizados desde a corte francesa. Então o jovem, bom aluno, responde:

– Gostei do modo paulista de comer macarrão.

Todo o pobre é sempre uma piada. Ou ele é a empregada doméstica que fala a todos, sem cerimônia, que teve um câncer e amputou um seio, ou é um homem cego, em cadeira de rodas, que urina diante de visitas em plena sala. Os cegos não veem, vocês já percebem a piada. Todo pobre é ridículo. Dizem que eles, como os negros, ou fazem na entrada, ou fazem na saída. Então me lembrei de outra piada.

Um dia houve que um menino e sua mãe não tinham dinheiro nem comida para a principal refeição do dia. Comer, para toda a gente, mas principalmente para os pobres, é razão fundamental de viver. O pai do menino passara dois dias sem voltar para casa, e assim procedia porque se entregara a nova paixão. Estava de novo amor. Talvez, quem sabe, porque a mãe do menino estivesse uma senhora gorda, a disputar em programas de auditório no rádio o prêmio de igualar o peso de uma cantora ainda mais gorda. E, verdade, tantas vezes conseguiu igualar o peso da estrela que terminou por receber um prêmio de consolação, um corte de fazenda para fazer um vestido, que nunca fez, porque o vendeu. Para quê vestido, se comer era mais importante?

Mas assim como um temporal que chega sem aviso, um portador trouxe para a mãe, como prova de que o marido não fugia aos deveres do matrimônio, quando tudo era aflição, eis que um anjo lhe traz uma nota de duzentos cruzeiros. Sim, uma cédula que trazia no verso o Grito do Ipiranga. E o que ele mais lembra: mal o portador se ausentou, a mulher puxou o filho. E o que ele mais lembra, fundamente, como a sua mais íntima e guardada pele: a mãe pulava, rolava pela cama, e sua alegria era tamanha que chorava de felicidade. Nos olhos vermelhos, nas bochechas subitamente róseas, a alegria dela não se continha, pronta a gritar, a anunciar para a rua:

– Hoje temos almoço! Hoje temos galinha!

Como dizia antes, os pobres são ridículos.

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Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997). Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.
(Direto da Redação)

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