“Você já não é mais perfeita?
...não...naquela época, foi em início de 70, creio, eu brincava de ilusão, brincava de medo e por de sol, de acasos e
sentimentos novos ou inexistentes (como a luxúria, o peculato, por
exemplo)eu brincava...sei brincar...era uma loucura...eu estava alheada,
pequenina...voava um pouco sobre as pontes e edifícios e precipícios cor de ananás....gostava dos quartos crescentes alheios....
(eu tinha uma bela cruz no peito, sei)...e alimentava-me de abóboras e araçás (pois eu vivia
ubiquamente, lembra?)...soluçava algumas vezes, é verdade, clandestinamente, e olhava às escondidas (canto dos olhos...) para um saco de pipocas vazio...
Sem sal?
Sem sal. E c odor fétido. Os meus dentes eram perfeitos e caros e raros (um jade da Namíbia, acho), eu sei...vez ou outra, lembro, eu me escondia atrás de um armário furta-cor, anônima (pois tinha medo do guarda
noturno e do capataz misterioso ‘daquela’ fazenda....)...comia-me e renascia no dia seguinte, antes
do café da manhã, por volta das 05:37 hs, já cansada, com olheiras (pois eu também tinha olhos de ressaca, uma ressaca traumática)...mas sem fome (era uma anorexia poética, explicavam-me)...transcendia-me, pode acreditar...com dificuldade, lágrimas de anilina nos olhos, mas transcendia-me...
Era feliz?
Vc era?
Eu vivia...portanto...mas à noite, principalmente
quando chovia (e não havia ‘aqueles’
famosos jogos de
futebol pela madrugada...aliás nunca há) ...pois bem...quando chovia
eu era feliz...a água escorria pelo rosto, fluida, eu
ria e chorava, alegre...era bonito...um dia eu fui
ser
mãe...
Engravidou?
Não...eu fui mãe...poderia ter vomitado, claro, mas escolhi ser mãe...
Doeu?
Eu era perfeita, lembra? Eu tinha minhas tragédias, alegorias e vislumbres, lógico, um sentimento dúbio e imperfeito de arco-íris e poentes diversos...mas amadureci muito: num período
de 12 meses fui mãe 2 ou 3 vezes...sempre às noites...(minhas longas madrugadas)foi
bom...
gozou?
N, a luz do sol, os meninotes, o baleiro e os semáforos me impediam ....as baianas me ofereciam acarajés e quitutes diversos...mas a penetração me dava um prazer estranho...sentia-me como mulher, claro, ao ser penetrada...feminina...muito feminina... sem nacionalidade ou ideologia, lógico (‘só os insanos agüentam as idéias’...)
e as axilas ardiam e queimavam...sentia umas cócegas deliciosas no sexo e no ânus, um odor discreto de deja vu...uma ânsia de me querer superar, ser + q eu...
mas vc n era contra o sexo?
À tarde...mas a fascinação perdura...a gordura atravessa as entranhas...perco-me...mas o desejo animal permanece, claro...
...
...eu era àquela época, uma metáfora barata e asquerosa do ser humano...barata e em 2 únicas dimensões (era esverdeada, não é? Ou incolor?)...foi duro...eu sofria muito, pode crer, pois nunca desejara realmente ser gente, ser ser humano,
pior: uma metáfora!...as vezes, geralmente depois de cada almoço ou desjejum, sentia-me onipotente e estranhamente bela
e insensível...um pouco ubíqua (lembra Antígona? Lembra Ésquilo?), é certo...mas só
quando bebia suco, geralmente de açaí ...
...
...tornava-me, nesses momentos, poderosa e soberana...soberana sobre a vida, sobre os objetos, sobre tudo...mas, engraçado, continuava linda e inacessível, ilhada numa redoma de plástico, erigida duramente por mim mesma (foram anos de trabalho duro....)...seria intocada e inalcançável,
talvez...triste e solitária...como sempre...
e Deus?
Meu Deus continua um Deus carente e desesperado, ávido de suicídio, mesmo sabendo q n pode concretizá-lo (pois n é facultado aos Deuses o suicídio...)
vc ainda é a favor do estupro?
Desde q seja antes do almoço, tudo bem....e ao som de Mozart...
Almoçou hoje?
Agorinha...legumes...nabos...não quis a Rapadura ou a couve-flor ou a berinjela...hoje eu comi...ontem...
Ontem?
...ontem foi quarta ou quinta feira?...ontem não comi nada...ontem anoiteceu e esverdeou...lembro bem...(só depois madrugou e fez-se silêncio...)quando anoitece meus calos doem, minhas juntas lembram tio José q faleceu as vésperas de seu nascimento...já quando amanhece eu sinto falta de ar, falta de ar e vontade de rir da vida, de tudo...por volta das 10 e 30 sinto cãibras...às 10 e 37 escureço totalmente, às 10: 39 eu descanso sob um edredom e as 12 e 45 horas eu soluço (é quando visito as altas montanhas)...a tarde eu volto a descansar...fico exausta... mas hoje faz sol, não é?...sol é bom...sem infelicidade...ah! toda sexta feira é ensolarada e feliz e eu olho para o mundo...daí eu fico quieta...geralmente
ouço apenas silêncio...outro dia telefonei para o
mundo...ninguém atendeu...
E as chuvas?
Longínquas....
...uma vontade de chorar...ah! estou com sede...
Beba um copo d’água.
...boa idéia...
Você ainda assobia durante o sexo?
...lembra?...foi há muitos anos, não é?...hoje eu cantarolo...canções de guerra, Casablanca...cigarras ao fundo...meu prazer tinha sabor de hortelã (as vezes de canela)...hoje eu não sei...hoje apenas suspiro, um suspiro insone e infeliz...quando não engasgo, claro...pois o momento é solene...e a minha libido, você sabe, é um destino desatinado...(dizem q libido, razão e amor são equivalentes...verdade?)
Afinal porquê você é contra o espartilho?
...não sei...questão de gosto...(discordo tb das futilidades; e nunca fui imberbe)...eu, por exemplo, não sei noivar...não sei acontecer...não sei cochilar sob um pé de árvore no outono...eu odeio os araçás...odeio ovos mexidos...tudo bem, é a vida...ontem ouvi
bossa nova durante 2 horas, depois fui dormir c o som de castanholas....enfim, eu tenho seios e odeio presilhas, concordo...e daí?
Mas há dias você insistia, nervosa, que era viúva e transitória...alegava seu desprezo pelos anjos e serafins...
...foi...curioso, suportei bem, resisti, estou viva...mas arde um pouco ao fim de uma tarde puxada...eu era inexperiente, todos sabem...e ainda n sabia manejar arados ou lidar c bois e vaquejadas...e ainda amava o vaqueiro Alessandro...
Dizem que é azedo...
Os bois? Ou a vaquejada? Ou Alessandro?
N, o viver....
...não...é salgado...com certeza...alguns dizem que é insalubre, mas tudo bem...
Você não é azeda?
...sou?
E o mistério?
...escondi bem guardado...quem sabe amanhã...existe aquele velho baú lá no porão, não é?...e a arca do titio...(mas houve um tempo em que eu gostava de pensar; pensar e falar bem alto, gritando palavras desconexas, como tatibitate; hoje, depois de longas refeições, reflito, olho o horizonte ao fundo, respiro 2 vezes e continuo sentindo angústia, angústia e as vezes uma terrível coceira gostosa no dedão do pé direito, sobretudo depois de aplausos demorados)...por vezes sinto-me um pouco estranha, é quando chove perto de minha orelha esquerda ou quando neva atrás de minha fronte...
Sofrimentos?
Inúmeros! Dois ou três, os mais diletos, dentro do bolso do avental (uma vez um deles, o mais
angustiante, sujou de gordura...) e ao dormir punha-os num copo d’água sobre a cômoda...ali estavam seguros...mas um dia eles sumiram!...fiquei aterrorizada...mas estavam sob o travesseiro...
Abandonou a ambigüidade?
Temporariamente...estou cansada e velha...antes eu tinha umas 2 ou 3 certezas no máximo...tinha a alegria e a dúvida...por outro lado, a melancolia me fascinava (eu ainda n era existencialista)...às vezes ficava horas e horas vendo meu irmão, coitado, cultivando suas melancolias...hoje...
...hoje...
...engraçado...vivendo algumas vidas emprestadas eu até poderia ser feliz...uma vez, creio que há 2 anos, fui ser feliz consultando às escuras videntes e cartomantes russas...douta vez eu era um cisne solteiro e esfomeado e solitário no Egito (esfomeado, mas feliz)...hoje...minhas madrugadas de sábado...
...
...é quando tomo aulas de felicidade...por volta de 00:35, 2 horas...um austríaco que toca acordeão e bandolim...
...
...é...ele sobrevive ensinando pequenas coisas, ‘truques’, como ele diz...ternura, melancolia, afagos...ah! ele também faz palestras sobre nulidades e misérias alheias...há 3 anos escreveu uma tese de como demonstrar felicidade em dias chuvosos...ele também se orgulha de controlar o vento com o pigarro...mas ele, incrível, n é triste...
Ele chora?
Quando bebe café fraco e sem leite...ou então quando sussurra a palavra ‘fátuo’...às vezes também chora quando vê o amanhecer...ele já foi um grande ator de cinema há 15 anos...cinema mudo...
A que horas ele vive?
O coitado prefere existir apenas as segundas-feiras, de
preferência as tardes, antes do lanche, tomando sua caipirinha...aos sábados ele tem suas aulas, é de lei...afora esses 2 dias ele simplesmente anula-se em seu quartinho de Paris, longe de gatos e corvos, de que ele tem pavor...lá ele desaparece com sua caipirinha, deixando a sombra de seu corpo cuidadosamente apoiada sobre a maçaneta da porta...de resto, ele, ao contrário do que os ciganos sussurram, não guarda mágoa de ninguém...é um bom homem, gente boa...exceto...
Hum?
Ele sonha. Infelizmente acostumou-se a sonhar e não consegue parar: um sonho depois do outro...até cansar...e quando ele sonha o infeliz escarnece os anjos e desobedece todos os
ditames...
Ditames?
...nós criamos nossas regras e normas...o nosso próprio universo...mas ainda existem os velhos preceitos, claro...sobre cochichar e soluçar sem nunca sentir medo, por exemplo...como pintar quadros em noites de nostalgia...como sorrir após uma noite de insônia...como usar gravata lilás aos domingos....salivar sem sentir angústia...ou então como demonstrar desatenção, óbvio...o fato é que tudo está implícito...aceita uma xícara de chá?
Obrigado.
Chá é bom. A eternidade também...(eu já fui obscura em 67, lembra? E em 70 aprendi a mentir...)Ah! vamos brincar de viver como antigamente? Você é o homem, eu a mulher...
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