segunda-feira, 22 de outubro de 2012
Millôr, o genio de direita
A sorte e o azar
Sexta-feira da Paixão, a menininha acordou, cheia de alegria, foi pra janela do barraco e meteu os peitos no último pagodão romântico, composto pela dupla Depardiê Belmondô e Marlon Bochecha (1). A mãe, assustada, gritou:
- Pára com isso, Tardiosa! Neste dia só se canta música sacra, menina! – E como a menina não ligasse, a mãe sentenciou: - Deus castiga quem canta o que você está cantando, você vai ver só! Pára com isso!
Pois nesse exato momento aí, ia passando pela frente do barraco Maurice Gerard, diretor do Olimpiá (2):
- Que voz, menina!
E a menina, delicadíssima, respondeu:
- Percebo que messiê não sabe bem português; vós não sinhô, pode me tratar de você!
Gerard corrigiu:
- Sei português muito bem, estou falando mesmo de tua voz magnífica, e vou te contratar pra cantar no Olimpiá! (3) Toma aqui dez mil dólares por conta e entra aí em meu Porsch, que vou passar um fax pra Paris, enquanto você assina o contrato prum circuito de um ano na Europa, França e Bahia.
A menina assinou o contrato, contentíssima. E a mãe, que já tinha aprovado, assinou como testemunha. A menina, antes de entrar no carrão, saiu saltitante, já cantando em francês, não viu o buraco, caiu e ficou gemendo de dor, com o pé torcido, talvez quebrado.
- Viu? – disse a mãe – Eu não falei que cantar música profana na Sexta-feira da Paixão, Deus castiga?
MORAL: Todo vaticínio é relativo ou Botar a boca no mundo é perigoso.
1 - A influência estrangeira na MPB continua cada vez maior. Apesar dos nomes, ambos os compositores são negros.
2 - Aquele mesmo que convidou pra cantar lá a cigarra, da Cigarra e a Formiga, só pra desmoralizar La Fontaine.
3 - Ou ela, ou eu, alguém está copiando a vida da Piaf - em preto e branco.
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O Leão e o Rato
Depois que o Leão desistiu de comer o rato porque o rato estava com espinho no pé (ou por desprezo, mas dá no mesmo), e, posteriormente, o rato, tendo encontrado o Leão envolvido numa rede de caça, roeu a rede e salvou o Leão (por gratidão ou mineirice, já que tinha que continuar a viver na mesma floresta), os dois, rato e Leão, passaram a andar sempre juntos, para estranheza dos outros habitantes da floresta (e das fábulas). E como os tempos são tão duros nas florestas quanto nas cidades, e como a poluição já devastou até mesmo as mais virgens das matas, eis que os dois se encontraram, em certo momento, sem ter comido durante vários dias. Disse o Leão:
- Nem um boi. Nem ao menos uma paca. Nem sequer uma lebre. Nem mesmo uma borboleta, como hors-d'oeuvres de uma futura refeição.
Caiu estatelado no chão, irado ao mais fundo de sua alma leonina. E, do chão onde estava, lançou um olhar ao rato que o fez estremecer até a medula. "A amizade resistiria à fome?" - pensou ele. E, sem ousar responder à própria pergunta, esgueirou-se pé ante pé e sumiu da frente do amigo(?) faminto. Sumiu durante muito tempo. Quando voltou, o Leão passeava em círculos, deitando fogo pelas narinas, com ódio da humanidade. Mas o rato vinha com algo capaz de aplacar a fome do ditador das selvas: um enorme pedaço de queijo Gorgonzola que ninguém jamais poderá explicar onde conseguiu (fábulas!). O Leão, ao ver o queijo, embora não fosse um animal queijífero, lambeu os beiços e exclamou:
- Maravilhoso, amigo, maravilhoso! Você é uma das sete maravilhas! Comamos, comamos! Mas, antes, vamos repartir o queijo com equanimidade. E como tenho receio de não resistir à minha natural prepotência, e sendo ao mesmo tempo um democrata nato e confirmado, deixo a você a tarefa ingrata de controlar o queijo com seus próprios e famélicos instintos. Vamos, divida você, meu irmão! A parte do rato para o rato; para o Leão, a parte do Leão.
A expressão ainda não existia naquela época, mas o rato percebeu que ela passaria a ter uma validade que os tempos não mais apagariam. E dividiu o queijo como o Leão queria: uma parte do rato, outra parte do Leão. Isto é: deu o queijo todo ao Leão e ficou apenas com os buracos. O Leão segurou com as patas o queijo todo e abocanhou um pedaço enorme, não sem antes elogiar o rato pelo seu alto critério:
- Muito bem, meu amigo. Isso é que se chama partilha, Isso é que se chama justiça. Quando eu voltar ao poder, entregarei sempre a você a partilha dos bens que me couberem no litígio com os súditos. Você é um verdadeiro e egrégio meritíssimo! Não vai se arrepender!
E o ratinho, morto de fome, riu o riso menos amarelo que podia, e ainda lambeu o ar para o Leão pensar que lambia os buracos de queijo. E enquanto lambia o ar, gritava, no mais forte que podiam seus fracos pulmões:
- Longa vida ao Rei Leão! Longa vida ao Rei Leão!
MORAL: Os ratos são iguaizinhos aos homens.
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O cavalheiro rusticano
O nosso Turiddu cansado de guerra, e pronto a fazer o amor, descobriu que alguém tinha sido mais rápido que ele e subido celeremente ao leito de sua amada: Lola tinha casado com Álfio, um chofer de caminhão, vejam vocês.
Turiddu, com dois dês, não admitia ficar assim no ora-veja. Usou a ambos os dês e conquistou Santuzza com o evidente intuito de enciumar Lola. Mas Lola, com a experiência adquirida enquanto Aturdiu estava na guerra, achou que, em vez de ficar ciumenta e sozinha, era melhor dar pro Turiddu e fazer dois ciumentos, Santuzza e Álfio. Turiddu topou imediatamente a parada, pois assim ainda ganhava Lola na ciumentada - com ela, agora eram três os ciumentos de Turiddu.
Mas, nesse dramalhão danado, onde é que vocês pensam que os dois foram transar? - numa velha igreja fundada em 922 pelos frades Don Rodrigo Sanches e Piero Navada. A igreja, exemplar romântico de arquitetura etrusca com duas torres...(bom, é melhor vocês pegarem um guia). O fato é que Santuzza também tinha seu cabelinha na venta e foi encarar os amantes na porta da igreja, lembrando-os de que adultério já era admitido pela sociedade local mas ninguém lhes perdoaria o sacrilégio.
- Não é sacrilégio, sua ignorante - corrigiu Turiddu - é sacro-colégio. E depois, sem pecado não interessa.
Mas Santuzza não se conformou e berrou na porta da igreja:
- Eu vou botar a boca no mundo! - O que, aliás, já estava fazendo, num soprano invejável.
Aí, depois de um intermezzo no qual a cortina do teatro fica a meio, todos os personagens se encontram no bar, não sei se do teatro ou da igreja.
Turiddu: O que é que você quer beber, Álfio?
Álfio: O teu sangue, traditore!!
Turiddu: On the rocks?
Álfio: Andante com brio, staccato e fulminato, cane maledetto.
E juntando a ação às palavras (fora de cena, porque em cena luta de punhal é o cúmulo do ridículo), Álfio liquida com Turiddu, enquanto Lola, chorando, avisa ao público, numa ária de quinze minutos.
MORAL: La commedia è finita.
(Saite do Millôr)
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