segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Pensamentando

Pela vida Anos atrás, assisti uma peça de teatro em que um personagem atormentado questionava a adoração da cruz pelos cristãos. Me perturba, com todos os atenuantes, alçar uma forma bárbara de infligir sofrimento em objeto de adoração. É a mesma lógica da tatuagem de números de Auschwitz feita por alguns jovens israelenses. Ao Heyder, homem do futuro que me ajudou a abrir os olhos. No início duvidei, mas era verdade. Um israelense tatuou em seu braço o mesmo número que os nazistas haviam gravado em seu pai no campo de extermínio de Auschwitz. Quis, alegou, preservar a memória do pai. Não foi o único. Outros descendentes de vítimas do Holocausto, jovens em geral, fizeram o mesmo. Forma estranha de celebrar a memória. Reproduzindo o instrumento de tortura e, indiretamente, o gesto do carrasco. Anos atrás, assisti uma peça de teatro em que um personagem atormentado questionava a adoração da cruz pelos cristãos. Não desconheço a simbologia que torna o martírio um caminho necessário para a redenção. Ela não é exclusiva das denominações cristãs. Posso não concordar, mas a respeito. Me perturba, com todos os atenuantes, alçar uma forma bárbara de infligir sofrimento (inventada, aliás, pelos assírios, e não pelos romanos) em objeto de adoração. É a mesma lógica da tatuagem autoimposta pelo israelense. Por que vitalizar o Lado Sombrio da Força ? Para que perpetuar o que o nazismo fez, sistematicamente, para desumanizar suas vítimas ? Religiões têm relacionamento difícil com o corpo. A circuncisão não é apenas um procedimento profilático, mas, no caso dos judeus, a marca de um pacto. Há muita controvérsia sobre sua necessidade clínica quando o bebê tem menos de duas semanas de vida. Para os religiosos, entretanto, o que importa não são os possíveis benefícios objetivos do corte do prepúcio. O que vale é a marca, o sinal de pertencimento. Podia ser uma tatuagem, um lacinho pendurado no dedo, mas a tradição exige a perpetuidade no corpo. Não tem conversa. Cenas de religiosos se flagelando não são raras. Na Ashura, o festival anual dos muçulmanos xiitas, os fieis reconstituem a batalha em que foi morto Hussein ibn Ali, neto do profeta Maomé. Teatralização de um fato histórico, mimetiza a dor que marcou o momento fundacional desta vertente do islamismo. Muitos se submetem a um impressionante método de autoflagelação, chicoteando-se e ferindo-se. Não basta a lembrança da dor, é preciso reativá-la. Se isso fosse uma catarse, não seria necessário repeti-la todos os anos. Dor, sofrimento, tristeza, luto. Onde o lugar do prazer ? Por que é tão difícil encontrar um religioso sorrindo ? No Líbano, jovens xiitas doam sangue durante a Ashura, ao invés de vertê-lo em transes coletivos. Dará certo ? Tradição e mudança vivem aos tapas. O que dizer dos filipinos que, na Semana Santa, deixam-se crucificar ? Como interpretar a mutilação genital feminina, tão devastadoramente comum em regiões do norte da África, num ritual que certos povos consideram “divino” ? Em lugares remotos, sem acesso a antibióticos, essa prática é letal. Calcula-se em um terço o número de meninas que morrem imediatamente em decorrência dela e 100 mil adolescentes morram a cada ano por complicações de parto associadas à mutilação. Quase 100 milhões de mulheres e meninas com mais de 10 anos sofrem, de acordo com a Organização Mundial da Saúde, as sequelas da mutilação. Que, é bom não esquecer, tira da mulher a possibilidade de ter prazer sexual. Mais uma vez, o espectro do prazer aterroriza tradições religiosas. Tão assustador quanto a tatuagem de Auschwitz, os pregos das cruzes filipinas e outras mutilações, é a vulgarização do corpo. No capitalismo, onde tudo está à venda, isso adquire dimensões paroxísticas. Uma estudante brasileira acaba de colocar em leilão sua virgindade. Os lances são dados pela internet e, depois de um primeiro impacto, a notícia já foi varrida para os pés de página da história. Como diria o Barão de Itararé, tudo na vida é passageiro, menos o cobrador e o motorneiro. O que deveria ser uma experiência amorosa marcante, vira supermercado, insensível, previsível, esquecível. Um pedaço do corpo é trocado por uma viagem ou um jantar em restaurante da moda. A vida e suas marcas corporais banalizam-se. A memória afetiva vira subproduto da conta bancária. Não subestimo a capacidade que as religiões têm de oferecer consolos para essa tarefa complicada que é viver. Estamos sempre à beira de ilusões de todos os tipos. Falar e experimentar as pedras do caminho, não para consolidá-las, mas para transformá-las, exige coragem e perseverança. E não há garantia de fábrica de que vá dar certo. Não se devolve produto defeituoso. Karl Marx teve a sua dose. Conta-se que ele não foi ao enterro do pai porque tinha um compromisso político. Os que conviviam com ele, acharam que aquilo não deixaria sequelas. Ledo e ivo engano. Depois de morrer, seus amigos encontraram no bolso de seu paletó ... um retrato do pai. Atualizando um dos slogans mais conhecidos do grande filósofo, eu diria: homens e mulheres de todo o mundo, falai ! Deixai fluir as alegrias, as angústias, as inseguranças, o prazer. Deixai para trás a sedução do apelo fácil das cartilhas, dos profetas da dor e do imobilismo. Imóvel é a Morte. (*) Engenheiro químico, é militante internacionalista da esquerda judaica no Rio de Janeiro. (Carta Maior)

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