Alguns nós da esquerda européia (e nossos)
As esquerdas europeias, em suas diferentes vertentes, não têm conseguido oferecer alternativas viáveis e robustas à crise dentro de um ponto de vista da organização de amplas frentes que tenham, inclusive, indispensável expressão eleitoral.
Flávio Aguiar
Vista da Alemanha, através das lentes do governo de Berlim, o drama do euro seria “fácil” de resolver. Bastaria que os indisciplinados governos do “sul” da Europa impusessem disciplina a seus súditos, arrancassem-lhes das mãos privilégios inaceitáveis, como aposentadorias gordas, e pronto: a confiança dos mercados seria recomposta, os níveis de juros cobrados baixariam, e até haveria espaço para se discutir, por exemplo, uma ampliação do alcance do Banco Central Europeu.
Como as coisas não funcionam bem assim, então existe um plano B: reforçar os poderes de Bruxelas, impor a governança da austeridade aos indisciplinados, sejam os socialistas da Grécia ou os direitistas de Berlusconi, até que os mercados se acalmem, e assim haja até espaço para discutir, por exemplo, uma ampliação do alcance do Banco Central Europeu.
Mas acontece que nada é “fácil”. As coisas continuam não funcionando. De quebra, o ressentimento contra a Alemanha no restante da Europa vai aumentando, até na França. E o ressentimento contra o restante da Europa vai aumentando na Alemanha. De ressentimento em ressentimento, o tradicional nacionalismo europeu, xenófobo e excludente, vai se alimentando, tendo expressão institucional veemente, como na Holanda, na Áustria, na Suíça, até na França.
Governos declaradamente de direita (ao invés dos “veladamente”, como os social-democratas) são eleitos, como em Portugal e Espanha, prometendo mais recessão, compressão de salários e, no limite, opressão através da coerção das ruas. Governos tecnocráticos são nomeados como interventores olímpicos (do Olimpo de Bruxelas), prometendo mais recessão, compressão de salários, tudo agora sob a égide asséptica da “tecnocracia” das mãos limpas. Por seu lado, a banca financeira entra em frenesi, querendo arrancar o quanto pode antes que tudo desande ou passe por alguma transformação radical.
Esse quadro promete se perpetuar – por algum tempo, pelo menos. Mas o pior é que não há, no horizonte visível, alternativas viáveis. Os partidos social-democratas e socialistas nada têm a propor de muito diferente.
Poderiam favorecer medidas mais efetivas de controle sobre o endividamento dos estados – o que é razoável, sem dúvida, mas isso a “austeridade germânica” a ser imposta já o faz. Talvez algum imposto maior sobre grandes fortunas? Talvez, mas fica-se por aí. Disciplina nos bônus e salários da banca? Como implementar isso de fato, se são os bancos que controlam os governos, e não o contrário? Os Verdes, por seu turno, ficam muito limitados dentro do seu biocapitalismo. Esbravejam contra as usinas nucleares – e com razão – mas são incapazes de se opor ao triunfalismo ocidental – que coonestaram, por exemplo no caso da Alemanha, apoiando a invasão do Afeganistão.
A expressão mais contundente dessa apatia política é o papel completamente apagado do Parlamento Europeu na atual crise. Toda a arena de (in)decisões se dá no plano dos Executivos, agora com protagonismo do quarteto de sopro Merkel-Sarkozy-Monti-Papademos (este último apenas no segundo violino), com o britânico David Cameron no baixo contínuo e, ao longe, o governo norte-americano na percussão, envolvido com a gritaria dodecacofônica dos pré-candidatos republicanos.
Mas o fato é que as esquerdas – sejam partidos novos, como a Linke, alemã, seja o Bloco de Esquerda no Parlamento Europeu, sejam os setores de esquerda dentro dos Partidos da Social Democracia, os Socialistas ou Verdes (e os há, sem dúvida), não têm conseguido oferecer alternativas viáveis e robustas dentro de um ponto de vista da organização de amplas frentes que tenham, inclusive, indispensável expressão eleitoral.
Ganhos eventuais, como o da centro-esquerda contra os conservadores na eleição dinamarquesa mais recente, ou o da pequena Islândia, cujo parlamento novamente surpreende o mundo ao se tornar o primeiro da Europa Ocidental a reconhecer o Estado Palestino, não compensam a lacuna generalizada. Mesmo na Islândia, cujo governo tem se recusado a desmontar de todo o estado do bem estar social e fez uma devassa no seu devasso setor financeiro, ainda permanecem “vícios” como os dos impostos “flat rate”, isto é, de percentual isonômico para ganhos assalariados e de capital, independentemente do nível de renda.
Afinal, o que acontece?
Bom, para pensar nisso, é necessário pensar o que até bem pouco tempo era impensável. Por exemplo: um conceito que os marxistas não apreciam muito usar, o de “geração”, ao lado de outro, que em alemão é muito elegante, “der Zeitgeist”, mas que em português também soa bem, “o espírito do tempo”.
Existe, em nível europeu, uma “geração perdida”. Não no sentido antigo, de uma “geração que se perdeu na crueldade da guerra”, como diziam Hemingway e Gertrude Stein em relação aos adultos egressos da Primeira Guerra Mundial, mas no sentido de uma geração que está perdida mesmo, um tanto sem rumo nem referências, exceto as de um individualismo difuso e liberal. É a geração que emerge adulta do retumbante fracasso comunista e da queda do Muro de Berlim, que hoje está, grosso modo, entre os 30 e os 60 anos, e que compõe uma certa “maioria silenciosa”, avessa às ruas e às praças, que aprecia a de Tahrir entre outras coisas porque é longe mas não comparece à Del Sol entre outras coisas porque é perto demais, que olha de modo perplexo ou entre admirado e desconfiado “Occupy Wall Street” mas não se dispõe a “Occupy Alexanderplatz”, e para quem essas formas de ativismo político direto são coisas ou do passado remoto ou da imaturidade recente.
Entre essa geração predomina um sentimento avesso a quase tudo o que a “esquerda” representa: sindicalismo, força coletiva, “estatismo”, reivindicação social. É claro que devemos pensar com cuidado essas “generalizações perigosas”, mas isso não quer dizer que elas não devam ser pensadas como “forças” ou “condições atuantes”. Esta é uma geração predominantemente refratária à esquerda, cujo limite é a social democracia desfibrada que sobrevive aqui ou o biocapitalismo verde. Linke, nem pensar.
Ao olhar, por exemplo, para a América Latina, essa geração o faz com um misto de complacência, recusa e perplexidade, que vê em Lula um limite e em Chávez um excesso populista e autoritário, e que não compreende como podemos nós questionarmos as lições da “austeridade” européia.
Retrato cruel? Pode ser, mas nem por isso menos pertinente.
Ao lado dessa, há uma outra dificuldade, por parte da esquerda mesma. Depois da derrota tripla dos regimes comunistas (no campo militar da Guerra Fria, no campo político-social da confrontação comparativa e no campo da administração da economia), a esquerda está se vendo na contingência de administrar conceitos com que historicamente sempre teve dificuldades. “Estado-nação”, “democracia parlamentar”, “democracia representativa”, até mesmo “responsabilidade fiscal”, por que não? Afinal, não seremos a favor de maquiar dados e criar endividamentos econômicos abissais, como fez a Grécia. Até porque nós já sofremos com isso no passado, não é mesmo?
Quer dizer, como muito bem analisa e espelha o artigo de Francisco Louçã nesta CM (“A esquerda européia e a crise da dívida”), a esquerda deste continente está diante da necessidade de criar um malabarismo entre agir como nacional, sem ser nacionalista, e pensar-se européia, sem ser federalista, ou seja, sem dissolver as fronteiras nacionais e perder-se no dilúvio conservador. Para termos uma baliza de comparação, pensemos no malabarismo da nossa esquerda, que entrou na Constituinte de 88 falando mal da CLT e saiu dela defendendo-a como uma “conquista dos trabalhadores” diante da maré conservadora que a sucedeu apostrofando a “Constituição cidadã do dr. Ulysses”.
De todo modo, a história não se faz sem malabarismos. “Hic Rodhes, hic salta”, diziam os gregos na Olimpíada para o saltador daquela cidade que dissera fazer um salto maior lá. Algum salto de qualidade deverá ser encontrado, para que convirja a tradição de esquerda com o espírito jovem (mesmo que seja o dos veteranos de 68) das praças e das ruas. Que não se perca a esperança, mas é nisso, encontrar esse ponto “alfa-ômega”, que devemos continuar pensando.
Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior em Berlim.
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