Ideologia da crise
By Bruno Cava– 12/08/2011
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Por Bruno Cava, do Outras Palavras e Universidade Nômade
Quem achava que a história tinha acabado, que não se viveriam mais tempos de amor e revolução, enganou-se redondamente. Estaríamos na era pós-tudo, reino da ambiguidade generalizada e da dissolução dos sujeitos, capturados num tempo morto. Mas não. Vivemos tempos incríveis. Revoluções, revoltas, tumultos pipocam no norte da África, na Espanha, na Itália, na Grécia, na Islândia, no Reino Unido, no Oriente Médio, no Chile. 2011 abriu o novo século com um torvelinho de eventos que, mais do que demonstrar que o possível não era impossível, prova que o impossível acontece. E isso muda a percepção das coisas, inaugura um novo modo de viver e de sentir, e contagia as multidões globalmente.
Ao mesmo passo, muitos falam em crise do capitalismo. Estaríamos num repeteco do crack da Bolsa de Nova Iorque, em 1929. A bolha especulativa estourou, o crédito voltou ao pó, o sistema financeiro colapsou. Essa crise teria irrompido com os subprimes dos EUA, no segundo semestre de 2008. E daí por diante, contaminou o resto do mundo, produzindo recessão, desemprego, falta de perspectiva, instabilidade econômica e política. As palavras de ordem passaram a ser austeridade e intervenção. Os governos adotaram medidas genuinamente socialistas, ou seja, socializaram o prejuízo. Dívidas foram resgatadas. Cortes foram aplicados nas políticas sociais: saúde, educação, cultura.
Primeiro como tragédia, agora como farsa. Os personagens desta trama são mesmo farsescos. Perderam o pudor. Berlusconi parece saído do filme Saló, de Pasolini, com seus aristocratas e orgias com menores. Putin, de um romance ocidental ruim sobre a URSS na Guerra Fria. Bush, um Jonh Wayne piorado. Angela Merkel, ela poderia estrelar num documentário de Leni Riefenstahl. Não só os políticos de direita, mas também banqueiros e grandes empresários ostentam um deboche digno de ópera bufa. O prudente e discreto charme da burguesia cede o lugar para a farsa mais grotesca.
Acreditam as elites que as pessoas não questionam mais o modo de produção, que o século 20 lhes provou do triunfo do sistema atual. Que, uma vez na crise, aceitarão o seu mando, a sua expertise, aceitarão fazer o que tem de ser feito. Especialistas falam na TV e nos jornais e receituam o mais do mesmo, em falas impostadas sustentadas por diplomas de Primeiro Mundo. É melhor assim, do que arriscar soluções que, como o passado demonstra, falharam. Não adianta inventar história, resigne-se a poupar, ficar na sua e esperar os especialistas e ministérios da fazenda. Retornou a fábula da formiga e da cigarra. Porém, enquanto o lucro é privatizado, a perda é socializada. Batizam este segundo momento de “crise”.
E se, na realidade, não houver isso de estar numa crise do capitalismo? Como se a crise fosse um atributo externo, um acidente, uma qualidade, como se houvesse ciclos e choques anticíclicos, segundo uma racionalidade autônoma. Esse só pode ser um discurso conservador. Não admira o Partido Republicano, a direita dos EUA, ter imediatamente condenado Wall Street e a ganância desenfreada, a busca do lucro pelo lucro. Setores de esquerda reproduzem o mesmo discurso, ao propugnar pelo mesmo sistema, só que mais humano ou sustentável, por corrigir disparidades, punir a corrupção e prender os especuladores. Crêem na ideologia dos ciclos e choques anticíclicos, como se houvesse uma racionalidade econômica independente da ação política. Outros propõem substituir o lucro “irreal” das finanças, pela produção “real” industrial. Condenam o lucro, os bancos, o mercado, as tecnologias, em si mesmos. E assim atingem moinhos em vez dos gigantes. Não entenderam nada. Não pode haver modo de produção capitalista sem crédito, sem sobrevalorização, sem lucro e sem estado. Marx dixit.
Porque, no fundo, não estamos em nenhuma crise do capitalismo. Não é acessória ou contingente, não vem de fora de tempos em tempos. Pensado como totalidade, o próprio sistema capitalista é a crise. Não há o que solucionar, nem para onde sair sem mudanças estruturais. É assim mesmo que funciona. Desde, pelo menos, a década de 1970, incorporou a crise como princípio interno de funcionamento. E não adianta desenvolver as contradições internas do esquema. É precisamente nessa tensão que sucede a exploração hoje. Por isso, não tem resolução a dialética entre público e privado, estado e mercado, igualdade e liberdade, — quando o sistema amoldou-se para funcionar nessa bipolaridade mesma. Os capitalistas aprenderam a lucrar com a crise. Os governos, a fabricar consenso nela. A crise não só revitaliza a produtividade e renova a expropriação de valores, como também prepara o terreno para o tirano. Daí neoliberalismo não ter nada de “estado mínimo”. Em vez de investir na seguridade social, aplica os recursos em mais polícia da pobreza e mais controle de tumultos. Sem falar no dispêndio estatal ao pagar as dívidas intrinsecamente causadas pelo capital, impagáveis em essência — eis aí a hora do socialismo de estado.
Por tudo isso, o caso não é amenizar, vencer ou superar a crise. Mas radicalizá-la até as últimas consequências. Isto não significa aderir à “esquerda” apocalíptica, pra quem quanto pior, melhor. Boa parte da oposição a governos e mesmo o anticapitalismo têm se mostrado inteiramente desqualificados para enfrentar o sofisticado modo de produção do século 21. É igualmente farseca a briga por bandeiras e slogans, de uma fração inútil da esquerda. Radicalizar a crise, em 2011, consiste em ir para as ruas e praças e redes, ocupar intensivamente o espaço e desfuncionalizá-lo, enredar discursos e práticas por um outro mundo, outro sistema global de produção, outro modo horizontal de viver a liberdade.
Faz-se necessário deslizar de uma dialética pobre e engessada, e reinventar as lutas. Isso já está acontecendo. A raiva generacional e o devir revolucionário de Tahrir, Túnis, 15-M, da Praça Sintagma e das calles de Santiago do Chile, — tudo isso aponta o que fazer para ir além da crise.
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