segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Israel

Israel nunca foi uma democracia
Se os governos do mundo se calam diante de tantos crimes, concordando que esse é o modo de agir de um Estado democrático, então só há uma saída: acampar nas ruas com os jovens indignados e redefinir urgentemente o que é democracia.
Baby Siqueira Abrão

Somente as pessoas que ainda acreditam na propaganda sionista, a hásbara, são capazes de defender a tese de que Israel é uma democracia, “a única” do Oriente Médio. Quem acompanha o dia a dia desta parte do mundo sabe que esse é mais um dos mitos criados pelo sionismo. A menos, claro, que se aceite como premissa um conceito de democracia que remeta apenas a eleições diretas periódicas e a três poderes teoricamente independentes, o que seria indicação de pobreza intelectual e política.

Para o público desinformado, o fato de o Parlamento israelense (Knesset) ter colocado na agenda a votação de uma lei que sobrepõe a definição de “lar nacional do povo judeu” à de democracia, para amparar legalmente as decisões do Judiciário, é uma ameaça. Mas quem vive a realidade desta região, e quem se dá ao trabalho de pesquisar as atividades do Knesset desde sua formação, sabe muito bem que leis para legalizar o estado de exceção não são exatamente novidade. Também sabe que, na prática, o estado de exceção nasceu antes da criação de Israel, quando as gangues sionistas expulsavam os palestinos de suas casas, promoviam massacres, espalhavam terror, tomavam as cidades árabes, mudavam seus nomes e construíam nelas lares para os judeus que fugiam da perseguição na Europa.

Desde a abertura dos arquivos sionistas, em meados dos anos 1970, essa tragédia conta com documentação farta. Uma documentação que corrobora as narrativas orais dos palestinos, até então desconsideradas pelo discurso político e acadêmico dominante. Para começo de conversa, um país que destrói outro para poder existir jamais poderá ser considerado uma democracia. As soluções de força não fazem parte dos processos democráticos. A democracia pressupõe a negociação, e não a violência, como ferramenta de gestão de problemas. Pressupõe também instrumentos legais que assegurem a permanência do regime democrático sejam quais forem as situações vividas.

Não é o caso de Israel. Sua proposta em relação aos palestinos é clara: apartheid e limpeza étnica. Isso sempre esteve presente no ideário e na prática do sionismo, e foi, e é, realizado de várias maneiras: assassinatos, massacres, prisões, construção de colônias e de um muro que confisca e retalha o território palestino, uso de substância tóxicas em bombas jogadas sobre a população árabe, demolição de casas palestinas e tomada dos terrenos onde elas se localizam, incêndios em plantações palestinas, confisco de fontes de água, ataques militares pesados sobre populações civis, destruição de equipamentos de saneamento, geração de eletricidade e distribuição de água, bloqueios, postos de controle (checkpoints) e todo um aparato destinado a fazer com que os palestinos desistam de viver em suas terras e partam para outros países. Como os palestinos resistem, novos instrumentos são agregados, regularmente, a esse aparato.

O impacto causado ao visitante de primeira viagem pelos muros – alguns com muito mais de oito metros de altura – que separam os palestinos de suas próprias terras, pelas cercas eletrificadas, por soldados fortemente armados, por jipes do exército circulando por todo canto, por checkpoints (em que se é obrigado a parar e a mostrar documentos de identificação, além de permissão para circular pelas cidades que Israel tomou da Palestina) é espantoso. Tem-se a impressão de visitar um país em guerra. Mas a verdade é que Israel não está em guerra. Também é verdade que a Palestina não tem exército, e que as poucas armas permitidas no país são usadas pela polícia e catalogadas pelos serviços sionistas de defesa.

E, antes que alguém se lembre de “explosões de pessoas” que mataram civis dentro de Israel, de “mísseis” atirados contra o sul israelense, do Hamás como “grupo terrorista”, lembremos alguns pontos. Não se sabe até hoje quem provocou as tais explosões; seria preciso muito mais do que a reivindicação de algum grupo “terrorista” para provar que elas foram cometidas por palestinos, e essas provas inexistem. Lembremos, também, que tais explosões tiveram um único beneficiário: Israel, que pôde pôr em prática, em 2000, o projeto da construção do muro do apartheid, que é de 1967 – antes das “explosões”, portanto, o que torna nulo o argumento de que foram elas que levaram à construção do muro. Os “mísseis” são, na verdade, foguetes de fabricação caseira com baixo poder de destruição; pode-se questionar seu uso, mas não se deve esquecer de que a legislação internacional permite a um povo oprimido o direito de resistir à opressão das maneiras que estiverem a seu alcance.

Quanto ao Hamás, jamais foi um grupo “terrorista”, como a hásbara quer fazer crer. Se no início era um grupo armado, apoiado por Israel para fazer frente ao Fatah e dividir as forças políticas palestinas, logo se tornou um partido político que disputa as eleições mais limpas do Oriente Médio, como atestam observadores internacionais.

Governos que criam mentiras para convencer seus cidadãos e o mundo de que Israel vive em iminente perigo de extinção não são democráticos nem prezam a democracia. São simplesmente mentirosos.

O apartheid nasceu com Israel
Em 1948, Israel foi criado como Estado judeu, ou Estado do povo judeu. Isso está estabelecido na Declaração de Independência do país, e, na prática, significou a marginalização de outras etnias e religiões, em especial de palestinos e muçulmanos. A Lei Básica de Israel, de 1960, reserva direitos plenos somente aos “nacionais”, isto é, aos judeus. Essa mesma lei confere cidadania de segunda classe aos palestinos que permaneceram em Israel depois de 1948, facilita o confisco de suas terras e a transferência de propriedade para judeus e impede que os palestinos as reclamem de volta. Esse mesmo regime jurídico é aplicado nos territórios ocupados em 1967: Cisjordânia, Gaza e Jerusalém oriental.

Quem quer que tente fazer a aliyah (o “retorno” do povo judeu a Israel) verá que, embora tenham criado a expressão “povo judeu”, os sionistas não consideram os judeus um povo e sim uma denominação religiosa. Se você tem antepassados judeus e pensa que por isso pode obter cidadania no país, engana-se. É preciso apresentar prova de frequência a sinagogas no país de origem. Em outras palavras, é preciso comprovação de filiação e prática da religião judaica. Quem vem de família judaica mas é secular, ou professa outra religião, está fora da aliyah. Essa exigência desmascara a tese dos sionistas sobre a existência de um “povo” judeu. Os indivíduos de um povo, como o brasileiro, o queniano, o francês, podem seguir qualquer crença religiosa, incluído o judaísmo. Um judeu, para obter o título de cidadão de Israel, só pode ser membro da religião judaica.

O aparelho legal israelense é formado por uma série de leis discriminatórias, incluindo a Lei do Retorno (1950), a Lei da Ausência na Propriedade (1950), a Lei da Cidadania (1952), a Lei do Fundo Nacional Judeu (1953). Essas mesmas leis dão sustentação ao regime de apartheid . Portanto, afirmar que Israel está se tornando ou pode vir a se tornar um Estado não democrático não faz o menor sentido. O país nasceu não democrático, destinado a garantir os direitos de apenas uma parte de sua população, e sua legislação tem sido aperfeiçoada desde então para oferecer ao judiciário um instrumental que assegure o regime não democrático do país .

É nesse contexto que devem ser entendidos os numerosos projetos apresentados em 2011 e as leis discriminatórias que eles geraram e ainda gerarão. Os objetivos são vários, todos baseados na política do apartheid: expropriar as terras palestinas, retirando os árabes dessas terras; transformar a cidadania em privilégio condicionado a certos favores; impedir os palestinos que vivem em Israel e seus representantes no Knesset de ter participação ativa na vida política do país; criminalizar expressões ou ações que questionem a natureza judaica ou sionista do Estado; privilegiar os judeus na alocação dos recursos do governo; fornecer aparato legal para prisões políticas e administrativas, e baseá-las apenas em declarações de “testemunhas” e em “acusações secretas”; criminalizar aqueles que defendem dentro de Israel a campanha BDS, movimento da sociedade civil mundial que trabalha por boicote, desinvestimento e sanções a empresas israelenses ou que apoiem de algum modo a regime de apartheid ou a ocupação.

Um país que faz tudo isso, que fabrica falácias para justificar a militarização, o investimento em tecnologia bélica e a ocupação de outro país, não é democrático. Trata-se, isso sim, de um país que tem como norma o desrespeito aos cidadãos e a violação de direitos básicos. Quanto à ocupação, é um crime não só contra os territórios ocupados, mas contra a humanidade e contra as relações entre as nações. Isso para não falar nas dezenas de leis, resoluções e convenções internacionais que os governos sionistas desrespeitam diariamente. Um Estado que infringe a legislação internacional não é confiável. Nem democrático.

Mas, se os governos do mundo se calam diante de tantos crimes, concordando que esse é o modo de agir de um Estado democrático, então só há uma saída: acampar nas ruas com os jovens indignados e redefinir urgentemente o que é democracia.



Jornalista, autora de diversos livros e pós-graduanda em Filosofia. Mora em Ramallah, Palestina, onde é correspondente do jornal Brasil de Fato.




(Carta Maior)

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