Daniel Lima, um grande poeta de Pernambuco
Escrevo estas linhas em um só impulso, porque é impossível não escrever sobre mais um grande poeta de Pernambuco.
Por Urariano Mota
Amigos, não pensem que exagero, ou que pelo menos exagero no meu provincianismo de ser do Recife. Mas existe qualquer coisa em Pernambuco que faz do seu território um chão fértil para bons e ótimos poetas. O quê, não sei, ninguém ainda explicou. Nem quero aqui chover no molhado e lembrar João Cabral, Manuel Bandeira, Joaquim Cardozo, Ascenso Ferreira, Mauro Mota, Carlos Pena, todos amados pelo mundo culto do Brasil. Não. Me refiro a outros grandes que o mundo inteiro desconhece, que até nisso Pernambuco é um exagero: ótimos poetas não são ignorados somente no estado, são de Pernambuco calando para o mundo.
Quem me desacompanha até hoje tem visto o que escrevi sobre um poeta fundamental da língua, Alberto da Cunha Melo, que os leitores de muitos estados e jornalistas finos nas redações do sudeste perguntam: “quem? quem?”. Aqui e ali, na medida de minha força e tempo, lembro Geraldino Brasil, quem?, Miró, Valmir Jordão, quem?, Valter Fernandes, quem? Isso para não lembrar a dívida que tenho com os poetas Everardo Norões, Marcus Accioly... Pois hoje lembro ligeiro – e com um sentimento de desconforto por antes dele não ter falado – o poeta e homem de espírito e graça de nome Daniel Lima.
No Recife, os afortunados conhecem-no por Padre Daniel, professor da UFPE, antiacadêmico por natureza. E dele falam aventuras dignas de Cervantes e de Camões, o Camões popular, cantado em rimas de cordel. Vou resumir duas ou três, no limite estreito deste espaço. Uma vez, padre Daniel recebeu o original de um romance de professor da universidade para ler. (Como é homem de rara sensibilidade, sempre o procuram) O diabo é que o livro era ruim demais e além da conta. O que fazer, como falar a verdade ao colega sem ferir a gentileza? Eis o que o fino sacerdote lhe disse:
- Ilustre amigo, o teu romance é inferior a teu talento.
E ganhou, ainda assim, um secreto inimigo. Em outra, na época da ditadura, um militante socialista o visitava na residência, e foram conversando em voz baixa até o quintal. De repente, padre Daniel observa ao visitante:
- Está vendo o vizinho aí no muro? Ele sempre está me espionando.
Ato contínuo, disparou na carreira contra uma bananeira no terreno, e lá nela deu-lhe uma peitada com os braços abertos. Caiu sentado. Surpreso, o jovem correu para ele. E Daniel, baixinho:
- Não foi nada. O vizinho desconfia que sou doido. Agora tem a certeza.
Numa terceira – eu seria capaz de passar o dia inteiro contando magníficas desse poeta -, numa terceira da ordem terrena, padre Daniel encontra por acaso no centro do Recife o arquiinimgo, advogado Gil Teobaldo. Que infelicidade. Daniel, homem de fala baixa e ar manso (nada mais falso nesse homem de sarcasmo feroz que a mansidão de ovelha), ouve com olhos de Cristo no altar a mais alta descompostura do advogado possesso, que procurava um pretexto para a agressão física. O advogado chamava-o, entre outras coisas, de cabra safado (insulto supremo em Pernambuco na época), imoral, indecente, escroto, fariseu, filho sem pai. Mas no momento da resposta, o padre Daniel lhe gritou com os olhos injetados de raiva:
- E você não passa de um Gil Teobaldo!!!!
A plateia na avenida delirou, pois não haveria insulto maior que carregar a má fama de ser aquele nome. Pois é este homem, de quem sempre se esperou generosidade, que sempre possuiu um senso arguto de separar o ouro do ouropel, a roupa da pessoa, o amor ao próximo fora da instituição, a quem uma vez fui vender uma assinatura do jornal Movimento, e ao me receber sedento de álcool e angústia num sábado, assinou o jornal e me fez sair bêbado do uísque guardado “para visitas especiais”, bebida que tomamos como dois bons cristãos desgarrados, pois é este homem que há muito escrevia poemas e guardava, por timidez ou medo, quem sabe, de não escrever ótima poesia, pois é este homem que agora recebe o prêmio máximo da Biblioteca Nacional, para o seu primeiro livro. Aos 95 anos. Como demora o reconhecimento para essa gente de Pernambuco. Se lesse esta frase, padre Daniel diria:
- Como demora o reconhecimento. E às vezes nem sai.
Ó Daniel, o que é que pode dizer um ingrato que há séculos não vai na tua casa? Na última, no último decênio do século XX, estranhei a cor da tua pele, quando te disse:
- Padre, não sei se é a minha memória. Mas eu o lembrava mais escuro.
Ao que ouvi:
- É não, amigo. A gente quando envelhece vai ficando mais branco.
Então entrei e ouvi a crítica amiga a um rascunho de romance que eu havia deixado. Lá para as tantas, com a verdade do álcool perguntei:
- Padre, como foi a sua luta para se manter na castidade?
- Foi difícil. Mas depois dos 80 está fácil.
Pois é este homem, que no vigor dos seus 95 anos, com o sexo sob controle (já sei, Daniel, que dirias “sob controle, mas nem tanto”), pois é este padre rebelde que surpreende todo o Brasil com a poesia magnífica, fecunda, cheia da graça e da verdade do seu pensamento. Como aqui
"Ao nasceres, tinhas o prefigurado rosto
Que hoje terias se houvesses sido tu mesmo
No tempo singular de tua vida.
Mas viveste o relógio, não teu tempo
e agora vê teu rosto:
o que dele te resta é a desfigurada
sombra do primeiro rosto
que não soubeste ter,
nem mereceste"
Ou nesta expressão de beleza:
“Nada será jogado no vazio.
Nem mesmo o vazio da vida,
porque é vida.
Nem mesmo o gesto inútil,
pois-que é gesto.
Nem mesmo o que não chegou a realizar-se,
pois-que é possível.
Nem mesmo ainda o que jamais se realizará,
porque é promessa.
E o próprio impossível
é vontade absurda de existir.
E nisso existe”
Ou aqui, ao fim, por enquanto:
“Minha mãe era anoitecida.
Às vezes orvalho, às vezes estrela.
De repente, ria. De repente, chorava.
Falava sozinha enquanto trabalhava.
Resmungos, ou não sei se filosofia.
Descascava batatas, partia cebolas
e sonhava
‘Para não perder tempo’,dizia.
Com que seria que minha mãe sonhava?”
Ó Daniel, os teus amigos agora são muitos e todo o Brasil te quer. Até os ingratos te saúdam. A poesia e todos nós estamos em festa.
(De um emeio recebido)
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