“Um sonho. Eu era um Deus faminto, roto, sujo e descalço, perambulando errático, como um cadáver sonâmbulo, pelas ruelas de uma cidadezinha do interior. Era um povoado tedioso, sem correio ou telégrafo, isolado, esquecido, à margem da civilização. Eu estava a procura desesperada de um homem colorido (pois eu era um Deus em preto e branco; pior: eu era apenas o meu negativo, a minha cópia! E desejava ardentemente ser apenas o meu original!). Mas eu queria um Homem, apenas um, o Escolhido, o Dileto, o Homem em várias cores, o Homem arco-íris. Havia sob uns escombros, soterrado, semimorto, um Filho, um verdadeiro e legítimo Filho. Mas eu não queria um Filho! Tampouco moribundo (ou inclusive moribundo). Queria o Homem! Caminhava trôpego, lentamente, e via o mundo - o meu mundo! - também em preto e branco e meio fora de foco, como se algum fotógrafo amador ainda não soubesse manejar a sua máquina. E eu era o fotógrafo! E eu também era o mundo! Mas também era o filme fotográfico! Pois não havia alternâncias: assumia-me e assumia todo o resto ao mesmo tempo, pois eu era ubíquo – sou ubíquo! - só que tudo era incolor, um pouco embaçado e com cheiro de bolor.
Era um mundo também com muita fome (estranho: ninguém tinha sede; as tigelas, cheias de água, uma água esverdeada, colocadas ao longo do sonho, estavam intocadas) e sem móveis ou mobília - havia apenas um velho e empoeirado lustre de zinco: todos sentavam no chão de cócoras, comiam seus parcos sanduíches (creio que de mortadela) no chão - e era um chão amarelado e tosco - sem talheres ou pratos, todos no chão de barro, cuspindo e tossindo e cochichando besteiras e falando mal uns dos outros. Às vezes alguém ria amarelo, dentes cariados e em seguida escondia os olhos com as mãos, envergonhado. Outro grunhia. Um terceiro coçava-se. Outro ainda dançava, descalço - era uma dança tribal e gutural, primitiva – mas sem música. (Uma dama, de verde, seus 28 anos, jazia no canto, desnuda, envergonhada e desolada...; um ‘príncipe’ cor de bege olhava-a, curioso e interessado: queria-a como mulher; e eles eram envolvidos por uma bruma pegajosa) E havia um curioso musgo em preto e branco sobre tudo e todos (esse musgo, que parecia ter vida, ascendia às paredes, aos tetos, e era pegajoso, fétido).
Ao penetrar nesse estranho mundo, alguém comunicara-me, solenemente, que eu seria o primeiro homem a conhecê-lo. Mas se nem humano sou! E se estou a procura desesperada de um Homem, onde encontrar - questiono - o meu Eleito? Reivindico, então, com uma pompa e majestade meio forçada e artificial, a minha condição divina - eu sou Deus! - ao que sou vaiado implacavelmente, sobrevindo-me daí um inexplicável e estranho prazer masoquista.
Havia um gigantesco espelho naquele reino, fora o saldo de antigas rixas tribais, quando disputavam e duelavam a supremacia do belo, do digno, do leve, do sustentável (e às vezes até do surreal, sussurra-me uma voz desconhecida - e delicada, meiga, um pouco débil - de alguém que possui, interessante, narinas imensas) e todos ali eram convocados diariamente a uma quilométrica fila - era uma fila em ziguezague - para fita-lo, encara-lo, ‘adora-lo’. Seria como um ritual, uma norma rígida instituída, tudo já estabelecido, combinado: ao acordar todos deveriam dirigir-se ao espelho mágico (mas era real, de fato, ele existia, ocupava espaço).
Instaram-me a comparecer ante o espelho. Diziam-me, através de gestos e acenos nervosos - pois todos ali, soube depois, eram mudos “Vá!”. Fui. Vi-me, observei-me, estudei-me, o k., tudo bem, eu era um Deus, e daí?
Frente ao espelho misterioso havia também um trono desocupado, velho, imundo e enferrujado, com o assento ocupado por traças, e havia raízes que subiam desde o chão (e nesta sala do espelho, tudo estava escuro - lembro - mas era uma escuridão alegre, satisfeita consigo mesma; eram trevas maravilhosas, era uma negritude bela e contente, um escuro realizado e feliz. É, eram trevas felizes) eu então vi apenas a imagem de um Deus triste e solitário, um Deus melancólico, com alguns breves e fugazes lampejos de um humor cáustico e corrosivo. Eu, enfim.
Vi-me depois sob um sol intenso e maravilhoso, mas, engraçado, eu não tinha sombra nem imagem, meu corpo não servia de obstáculo ou anteparo a luz, eu era estranhamente transparente como um vidro, e via, frente a mim, vários seres curiosos de sobretudo azul e chapéu coco - mas sem bengalas - todos com suas respectivas sombras enfileiradas por ordem alfabética e dispostas em círculo ao redor de mim.
Cada sombra desses entes grotescos - eles tinham unhas gigantescas e cada um usava um estranho cachecol com forro marrom - eles tinham numeração padronizada em acrílico, era um número de série recente - pois a tinta era fresca - representando certa hierarquia entre eles, certa gradação de ‘importâncias’.
Olhei-os e eles eram disciplinados e ordeiros, não aparentavam vida ou segurança, embora existissem; de súbito, observo que eles é que me encaravam furiosos, afrontando-me perigosamente, desafiando-me como a um inimigo. Acaso desejariam ajudar-me, já que não possuo sombra?, pergunto-me, intrigado. Eles, no entanto, desaparecem como fumaça e, neste momento, olho-me casualmente e vejo uma tímida sombra sobre o solo: era a minha sombra recuperada! Alegro-me em vê-la ilesa, pura e límpida, embora um pouco acanhada e envergonhada.
Num determinado momento entusiasmo-me e tento colorir o meu mundo, dar-lhe alguma vivacidade, um pouco de vida e diversidade. Basta de preto e branco, penso. Mas ‘alguém’ sussurra-me, severo e rígido: o meu mundo seria exclusivamente em preto e branco, sempre em preto e branco, não poderia, portanto, eu não deveria almejar a alegria, a vivacidade de vários tons e cores (pois eu não merecia a cor).
Descobria, olhando-me de viés, que estava velho, doente (e sem minhas pílulas!), donde o mofo, o ‘cheiro’ de tempo velho, um tempo usado e reusado infinitas vezes. Um tempo de segunda qualidade, desbotado e defeituoso.
(O tempo gasta-se, eu o sei. Sinto-me corroído, usado, com ferrugens e rugas de minha eternidade; uma dolorosa eternidade, um absoluto decrépito e decadente. Como eu, enfim.)
Numa esquina deserta e mal iluminada (havia apenas um candeeiro de latão) uma bela mulher (curioso: ela não era nem em preto e branco nem colorida, era indefinida, meio translúcida, um pouco fluida e etérea) essa fêmea, quase adolescente, uns 15 anos (ainda com sardas) oferecia-me o seu útero, a sua fecundidade, convidando-me com gestos nervosos - pois era muda, não surda - com acenos lúbricos e obscenos. Evitei-a, com alguma dificuldade (ela assediava-me, tentadoramente), e fugi, assustado, rumo a uma ladeira esburacada e escura, com um odor putrefato mas atraente; eu, agora, apenas ouvia muitos e muitos mosquitos ao meu redor.
Ouvia os mosquitos e uma velha e triste e monótona canção de jazz ( ou seria bossa nova?) e uma voz gutural em off “Você negou a criação, você negou a vida! Você negou-se! Você negou-se! Você negou-se!” Aí a voz engasgava, saía trêmula, tatibitate, hesitante, como a desculpar-se antecipadamente de alguma coisa, algum pecado ou falha ou omissão (mas sentia-se a voz insegura, indecisa, ela mesma ignorava os seus próprios erros, não saberia, portanto como desculpar-se).
Mas eu, teimoso, insistia em escalar uma ladeira - que já se transformara em escarpa, em... esqueço agora - mas eu prosseguia, cambaleando...e no sonho (...pois eu também sonhava sonhando...) ao subir a ladeira, já fraquejando, via aos poucos os objetos, os postes, as fachadas das casas colorirem-se (mas apenas de tons rosa claro e azul), os moradores, como monstros abjetos, deformados, sem muita nitidez, apareciam nas janelas olhando-me inquisidores e daí surgiam muitos e muitos anões engraçados com dizeres ‘Criem-nos! Criem-nos!’.
No meu sonho no sonho caminhava também lentamente, vagarosamente, apalpando as paredes como um cego, ia de uma dimensão qualquer a outra dimensão qualquer mas não seriam dimensões de hierarquias superiores, eram dimensões contíguas, no mesmo patamar de valor. Saía de uma dimensão e entrava noutra dimensão exatamente igual, idêntica, mas, curioso, eram dimensões com graus de nitidez, de realidade diferentes. Neste ponto havia gradações: a factibilidade, a possibilidade de vir-a-ser de cada dimensão crescia progressivamente, cada dimensão era mais factível e verdadeira que a anterior e assim por diante.
Em certo momento - e inesperadamente - tudo escurece no sonho. O branco, que antes fazia um duo com o preto, mas sempre em demasia, foge, esquivando-se, deixando em solidão apenas o preto, as trevas. Seria um sonho à noite, talvez uma noite lúgubre, sem luzes e sem luar?, pergunto-me, irrequieto e preocupado (pois eu não trazia lanterna ou fósforos, não estava preparado para um sonho deste tipo). O fato é que eu não me sentia programado para a ausência de luz. Fizeram-me - feliz ou infelizmente - um Deus apenas do dia, da claridade, ainda que seja uma claridade baça, fusca e, por vezes, opaca. Eu, é um fato, não sei viver no escuro, nunca serei um Deus no escuro: sou um Deus do sol, um sol velho e cansado e em decadência, é verdade, mas não saberia viver sem ele, não saberia viver com a lua, por exemplo.
Bom, a escuridão logo desaparece e o preto e branco retorna a dominar. .
Em certo momento do sonho no sonho - como no romance, pois sim - perco a memória de tudo, de todos. Assim, fico errando durante o resto do sonho, nômade, solitário e esquecido. Olhava para um jarro de flores e não sabia pronunciar a palavra jarro; depois já não sabia qual a utilidade de alguma coisa com o nome ‘jarro’; depois, quando me explicavam detidamente eu também já não sabia o significado da expressão ‘guardar flores’. Por fim, como no livro, passei a vagar pelo sonho com um imenso cartaz ‘Eu sou Deus. Deus consiste numa representação mitológica criada pelo homem para explicar-se, justificar-se; mitologias são explicações criativas e folclóricas, criação e folclore são...E assim vi-me obrigado a carregar um gigantesco cartaz de papelão de quilômetros e quilômetros de largura e altura e, mesmo assim, insuficiente, claro.
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