sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Wikileaks

Boas maneiras na era do Wikileaks
Em um dos documentos diplomáticos publicados no WikiLeaks, compara-se Putin e Medvedev com Batman e Robin. É uma analogia útil: não seria o organizador do WikiLeaks um análogo real do Coringa em O Cavaleiro das Trevas de Christopher Nolan?
Por Slavoj Žižek
[19 de janeiro de 2011 - 10h02]
Em um dos documentos diplomáticos publicados no WikiLeaks, compara-se Putin e Medvedev com Batman e Robin. É uma analogia útil: não seria o organizador do WikiLeaks um análogo real do Coringa em O Cavaleiro das Trevas de Christopher Nolan? No filme, o promotor Harvey Dent, um vigilante obsessivo e corrupto que comete seus próprios crimes, é morto pelo Batman. Logo, Batman e o comissário Gordon se dão conta que a moral pública da cidade iria se ressentir se os assassinatos cometidos por Dent se tornassem públicos, preferindo então, para preservar a imagem do policial assassino, responsabilizar o Batman pelas mortes. A mensagem do filme consiste em dizer que mentir é necessário para a manutenção da moral pública: somente uma mentira irá nos redimir.

Não é surpresa que a única figura verdadeira do filme seja o Coringa, o grande vilão. Ele deixa claro que seus ataques a Gotham City terminarão quando Batman retire a máscara e revele sua verdadeira identidade; para evitar a revelação e proteger Batman, Harvey Dent declara à imprensa ser ele o Batman – outra mentira. Para capturar o Coringa, o comissário Gordon finge sua própria morte – mais uma mentira. O Coringa quer revelar a verdade escondida debaixo da máscara, convencido de que isso destruirá a ordem social. Como deveríamos chamá-lo? Terrorista? O Cavaleiro das Trevas é efetivamente uma nova versão dos westerns clássicos, Forte Apache e O Homem que Matou o Facínora, que mostram que para civilizar o selvagem oeste a mentira tem que ser elevada a verdade: a civilização, em outras palavras, deve ser fundada em uma mentira. O filme tornou-se extraordinariamente popular. A pergunta é: por que, neste preciso momento, existe uma renovada necessidade de uma mentira para manter o sistema social?

Consideremos também a nova popularidade de Leo Strauss: o aspecto de seu pensamento político que é tão transcendente hoje em dia é sua noção elitista de democracia, a ideia da “mentira necessária”. As elites devem governar conscientes da atual situação (a lógica materialista do poder) e alimentar as fábulas de toda a gente de maneira a mantê-la contente em sua bendita ignorância. Para Strauss, Sócrates era culpado maquilo que lhe acusavam: a filosofia é uma ameaça para a sociedade. Questionar os deuses e a ética da cidade somente pode prejudicar a lealdade dos cidadãos e, portanto, a base de uma vida social normal. Ainda assim, a filosofia é a mais elevada, a mais valiosa das atividades humanas. A solução proposta foi que filósofos mantivessem em sigilo seus ensinamentos, como de certo fizeram, passando-as a diante somente nas entrelinhas. A verdadeira e escondida mensagem contida na “grande tradição” da filosofia desde Platão até Hobbes e Locke é que não há deus ou deuses, que a moral é meramente um prejuízo e que a sociedade não se fundamenta na natureza. Até agora a história do WikiLeaks tem sido apresentada como uma batalha entre WikiLeaks e o império estadunidense. Seria a publicação de documentos de Estado confidenciais dos Estados Unidos um ato de apoio, do direito do público ao conhecimento destes documentos, ou é um ato terrorista que se postula como uma ameaça às relações internacionais estáveis? Ou então o que será, se isto não é tudo? O que está acontecendo na crucial batalha ideológica e política que reverbera até dentro do próprio WikiLeaks: entre o ato radical de publicar documentos secretos de Estado e a forma com que este ato está sendo absorvido pelo campo ideológico-político hegemônico e, entre outros, pelo próprio WikiLeaks?

A absorção não necessariamente alude a um “complô corporativo” – por exemplo, o negócio fechado pelo WikiLeaks com cinco grandes jornais, seletivamente cedendo o direito exclusivo à publicação dos documentos. Mais importante ainda é a formação conspirativa do WikiLeaks: um grupo secreto do “bem” ataca outro grupo secreto do “mal”, o segundo sendo o Departamento de Estados dos Estados Unidos. De acordo com esta maneira de enxergar as coisas, os inimigos são os diplomatas estadunidenses que ocultam a verdade, manipulam o público e humilham seus aliados na implacável busca por alcançar seus próprios interesses. O grupo do mal, no topo, detém o “poder”, e isso não é concebido como algo que afeta todo o corpo social, determinando o modo como trabalhamos, pensamos e consumimos. O WikiLeaks sentiu por si mesmo o gosto desta “dispersão” de poder quando a Mastercard, Visa, PayPal e o Banco da América uniram forças com o Estado para sabotá-lo. O preço pago por intrometer-se em questões conspirativas é ser tratado de acordo com a lógica destas questões (Não é surpreendente que existam muitas teorias acerca de quem está, de fato, por trás do WikiLeaks – a CIA?).

Estas questões conspirativas se complementam com seu oposto aparente, a apropriação liberal do WikiLeaks como se fosse outro capítulo da história gloriosa da luta pelo “livre fluir da ‘informação’ e o direito dos ‘cidadãos’ a saber”. Esta perspectiva reduz o WikiLeaks a um caso radical de “jornalismo investigativo”. Aqui, estamos a um pequeno passo da ideologia dos sucessos de bilheteria de Hollywood como Todos os Homens do Presidente e Dossiê Pelicano, nas quais um par de homens comuns descobre um escândalo que pode atingir o mais alto, porém, a ideologia de tais trabalhos reside em sua alegre moral: que grande país deve ser este nosso, em que sujeitos comuns como você e eu podemos destituir o presidente, o homem mais poderoso do mundo!

A última demonstração de poder por parte da ideologia dominante é permitir o que parece ser uma vigorosa crítica. Não falta anticapitalismo hoje em dia. Estamos sobrecarregados de críticas sobre os horrores do capitalismo: livros, jornalismo investigativo e documentários de televisão que expõem companhias que estão contaminando sem pudores o nosso meio ambiente, os banqueiros corruptos que seguem recebendo volumosos bônus enquanto seus bancos são resgatados da crise pelo dinheiro público, fábricas exploradoras nas quais crianças trabalham como escravos etc. Mas existe uma pegadinha: o que não se questiona nestas críticas é o marco liberal democrático da luta contra estes excessos. O objetivo, implícito ou explícito, é democratizar o capitalismo, estender o controle democrático à economia através da pressão da mídia, dos informes parlamentares, leis mais duras, investigações policias honestas e por aí segue. Contudo, a composição institucional do Estado democrático (burguês) nunca é questionada. Esta situação permanece sacrossanta mesmo nas formas mais radicais de “anticapitalismo ético” (O Fórum de Porto Alegre, o movimento de Seattle, etc.)

O WikiLeaks não pode ser visto da mesma maneira. Desde o princípio existiu algo em suas atividades que ia mais além do que as concepções liberais do livre fluir da informação. Não deveriamos buscar estes excessos no que diz respeito ao conteúdo. A única coisa surpreendente sobre as revelações do WikiLeaks é que ali não reside nenhuma surpresa. Não sabiamos exatamente aquilo que vimos nos documentos? A preocupação real esteve no nível das aparências: já não podemos fazer de conta que não sabemos o que todo o mundo já está ciente de que sabemos. Este é o paradoxo do espaço público: ainda que todo o mundo tenha conhecimento de um feito desagradável, dizê-lo em público muda tudo. Uma das primeiras medidas tomadas pelo governo bolchevique em 1918 foi tornar público toda a composição da diplomacia secreta czarista, todos os acordos secretos, as cláusulas secretas dos acordos públicos etc. Ali, também o sigilo de informações foi o funcionamento total dos aparatos de Estado do poder.

Aquilo que o WikiLeaks ameaça é o funcionamento formal do poder. Os verdadeiros choques não foram os de detalhes sujos e indivíduos responsáveis por eles, nem os que estão de fato no poder. Em outras palavras, foi o poder por si próprio, sua estrutura. Não deveríamos esquecer que o poder não compreende só instituições e suas regras, senão também as formas legítimas (“normais”) de desafiá-lo (a imprensa independente, ONGs etc.) – que como o acadêmico indiano Saroj Giri postula, “[WikiLeaks] desafiou o poder desafiando também os canais normais para desafiar o poder e revelar a verdade”. O objetivo das revelações do WikiLeaks não só foi o de envergonhar os que estão no poder, senão também o de liderarmos uma auto-mobilização para produzir um funcionamento diferente do poder que possa ir além dos limites da democracia representativa.

De todos os modos, é um erro assumir que revelar em sua totalidade aquilo que era secreto vai nos fazer livres. Esta premissa é equivocada. A verdade liberta, sim, mas não esta verdade. É óbvio, alguém pode realmente confiar na fachada, nos documentos oficiais, mas tampouco encontraremos a verdade nas fofocas compartilhadas nos bastidores. A aparência, o perfil público nunca é uma simples hipocrisia. Edgar L. Doctorow uma vez disse que as aparências são tudo o que temos, de maneira que devemos tratá-las com grande estima. Muitas vezes foi dito que a privacidade está desaparecendo, que os segredos mais íntimos estão abertos ao público. Porém, a realidade é o oposto: o que efetivamente está desaparecendo é o espaço público, com sua acompanhante dignidade. Abundam em nossas vidas casos de quando não colocar tudo às claras é o mais apropriado a se fazer. Em Baisers Volés, Delphine Seyrig explica a sua jovem amante a diferença entre a cortesia e tato: “Imagine que distraidamente você entre num banheiro no qual uma mulher está nua tomando banho. A cortesia requer que você rapidamente feche a porta e diga ‘Perdão, Senhora! ’, enquanto que o tato requer que você feche a porta de imediato e diga ‘Perdão, Senhor! ’. Somente no segundo caso, fingindo que não se viu o suficiente para determinar o sexo da pessoa que está no banho, existe um tato verdadeiro.

Um caso supremo de tato em política foi a reunião secreta entre Alberto Cunhal, o líder do Partido Comunista Português, e Ernesto Melo Antunes, membro do grupo pro-democrático das forças armadas responsáveis pelo golpe que acarretou na derrocada do regime de Salazar em 1974. A situação era extremamente tensa: de um lado, o Partido Comunista estava pronto para iniciar um processo revolucionário socialista real, tomando fábricas e terras (já haviam sido distribuidas armas ao povo); do outro lado, os conservadores e liberais estavam prontos a impedir a revolução pelos meios que fossem necesarios, incluindo a intervenção das forças armadas. Antunes e Cunhal selaram um trato sem declará-lo: não havia acordo entre eles – o que aparecia entre eles eram somente discordâncias – mas saíram da reunião com um pacto pelo qual os comunistas se comprometiam a não fazer a revolução, permitindo assim que um estado democrático “normal” se desenvolvesse, e assim os militares antisocialistas não colocariam o Partido Comunista na ilegalidade, mas sim o aceitariam como um elemento chave no processo democrático. Poder-se-ia argumentar que esta discreta reunião salvou Portugal de uma guerra civil. E seus participantes mantiveram a discrição retrospectivamente. Quando foram questionados sobre a reunião (um jornalista amigo meu), Cunhal disse que confirmaria o acontecido somente se Antunes não o negasse – caso ele o fizesse, diria que aquilo nunca ocorrera. Antunes, por sua vez, escutou silenciosamente enguanto meu amigo lhe transmitia as condições de Cunhal. Deste modo, sem negar o ocorrido, Antunes consentiu às exigencias de Cunhal e implicitamente confirmou a existência da reunião. É desta forma que os cavalheiros da esquerda atuam na política.

Ainda que alguém possa reconstituir os eventos hoje em dia, parece que o feliz resultado da crise dos mísseis em Cuba também foi gerenciá-la com tato, os rituais corteses da ignorância fingida. A jogada genial de Kennedy foi fingir que uma carta não tinha cegado, um estratagema que funcionou porque o remetente (Krushchev) deu corda ao jogo. Em 26 de outubro de 1962, Krushchev mandou uma carta a Kennedy confirmando uma oferta previamente feita por intermediários: a União Soviética retiraria seus mísseis de Cuba se os Estados Unidos garantissem que não invadiriam a ilha. No dia seguinte, ainda, chegou outra carta mais exigente de Krushchev, colocando mais condições. Às 20h05 deste dia, Kennedy mandou sua desposta a Krushchev. O presidente dos Estados Unidos aceitou a proposta do dia 26 de outubro, fingindo que a carta do dia 27 nunca existiu. Em 28 de outubro, Kennedy recebeu uma terceira carta de Krushchev na qual ele aceitava o trato. Nesses momentos em que muito estava em jogo, as aparências, a cortesia, a consciência de que o outro “está jogando um jogo” é mais importante do que nunca.

No entanto, este é só um lado – enganoso – do conto. Existem momentos – momentos de crises da hegemonia do discurso – em que se deve correr o risco de provocar a desintegração das aparências. Tal momento foi descrito pelo jovem Marx em 1843. Em Contribuição a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel ele diagnosticou a deterioração do antigo regime alemão dos anos de 1830 e 1840 como uma repetição farsesca da queda trágica do antigo regime francês. O regime francês foi trágico, “em tanto acreditou e teve que acreditar na sua própria justificação”. O regime alemão “só se imagina que acredita em si mesmo e exige que o mundo acredite no mesmo. Se acredito na sua própria essência, poderia… buscar refúgio na hipocrisia e nos sofismas? O antigo regime moderno é somente o comediante de uma ordem mundial cujos verdadeiros heróis estão mortos”. Em tal situação, a vergonha é uma arma: “A pressão real deve fazer-se mais intensa quando se soma a ela a consciência de pressão, a vergonha deve ser mais vergonhosa quando tornada pública”.

Esta é precisamente a situação dos dias de hojes: enfrentamos o cinismo desavergonhado de uma ordem global cujos agentes só imaginam que acreditam nas ideias de democracia, direitos humanos e coisas do gênero. Por medo de ações como as revelações do WikiLeaks, a vergonha – a vergonha por tolerar tal poder sobre nós – se faz mais vergonhosa quando tornada pública. Quando os Estados Unidos intervêm no Iraque para impulsionar a democracia secular e o resultado é o fortalecimento do fundamentalismo religioso e um Irã muito mais forte, esta não é a falha trágica de um agente sincero, senão o caso de um piadista cínico derrotado em seu próprio jogo.

Publicado por Rebelion. Tradução de Cainã Vidor. Foto: Divulgação.
(Revista Forum)
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