Mulheres de Deus: audazes corsárias do amor mais difícil
Talvez existam dois autênticos, embora arriscados, modos de vida: como santos ou como aventureiros, em ambos os casos face a face – sem impedimentos e sem hipócritas e respeitáveis garantias – com o abismo de absurdo, encanto, injustiça, risco, dor da existência. Às vezes, podemos ser ambas as coisas, como as irmãs narradas por Mariapia Bonanate em um singular, audaz e apaixonado livro que, por meio do encontro com extraordinárias figuras femininas, nos ajuda a não nos render e a continuar amando, ou seja, a viver.
A reportagem é de Claudio Magris, publicada no jornal Corriere della Sera, 19-12-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Escritora e jornalista, Mariapia Bonanate foi diretora e é codiretora da revista católica Il Nostro Tempo e escreve em vários jornais e revistas, dentre as quais Famiglia Cristiana. Entre os seus livros – inspirados em um gênero que poderia ser definido como uma narrativa ensaística de investigação – devem ser lembrados Perché il dolore nel mondo (1985), Il Vangelo secondo una donna (1997), Preti (1999) e Donne che cambiano il mondo (2004), além de um estudo sobre Pomilio (1978).
Há 20 anos, era publicado Suore, contando histórias de mulheres capazes de "habitar totalmente o mundo". Agora, em uma nova edição aumentada, ela narra o que aconteceu com elas nos últimos tempos, acrescentando encontros com outras nove mulheres, audaciosas como corsárias salgarianas e santas (sem saber e sem querer) que encontraram Cristo no ser humano e nas feridas provocadas aos homens.
Essas mulheres, lembra Dacia Maraini no seu intenso prefácio, são um sal da terra. Vão para onde todos fogem, com uma coragem que mereceria expressões hemingwayanas de admiração soldadesca e que uma "determinação gentil" – escreve ainda Dacia Maraini –, radicalmente feminina, leva a "defender, ajudar, compreender", sem querer "ensinar, ordenar" e nem converter. O seu amor, femininamente impávido, não é minimamente condicionado pela adesão a algum credo, nem à fé naquele Cristo que é a sua vida e do qual elas são os doces e robustos ramos.
A maior parte dessas mulheres sai às ruas, se mistura à vida mais cruamente imediata e impiedosa, lá onde o amor é mais difícil, nos leprosários africanos ou nas calçadas das grandes cidades em que pais vendem filhas pequenas à violência, nos esgotos em que famílias vivem, comem, violentam, são violentadas e morrem, entre os usuários de drogas e seus carnífices, os sofrimentos e os embrutecimentos de todos os tipos.
A vida de cada uma é um incrível e real romance de aventura. Outras levam uma vida claustral de oração e de contemplação, que é também uma árdua aventura interior, isenta de qualquer mortificação e aberta ao novo, capaz às vezes de sair para enfrentar as ruas. Estive durante muito tempo em correspondência com uma irmã de clausura, Ir. Claudia, e foi um dos diálogos que mais me enriqueceram, por mérito da sua audaz e forte inteligência.
Os episódios dessas mulheres são um mapa do horror e da infelicidade de tantos condenados da terra e são um testemunho do amor com relação a estes. Um estúpido preconceito vê muitas vezes as irmãs como pessoas simples e patéticas que se retiram da vida. Essas irmãs, ao contrário, conhecem e vivem a fundo a vida. Algumas delas conheceram o amor terreno por um homem antes do amor universal. Têm amigos e amigas, desfrutam a paisagem e a existência. Não mantêm os olhos baixos, mas olham na cara da realidade, sem medo.
Etty Hillesum, a jovem morta em Auschwitz, que não era irmã mas tinha a coragem da santidade, "não sabia se ajoelhar". Além disso, quem se ajoelha diante de Deus muitas vezes não é capaz de se prostrar diante de nada mais. A sua picaresca coragem era pervadida por uma forte carnalidade, por um sentido concreto do viver que às vezes falta aos homens e os torna muitas vezes covardes. No Gólgota e junto ao santo sepulcro, foram também as mulheres que seguiram Jesus, enquanto os outros fugiram.
Mesmo se no passado a vida monástica era às vezes uma imposição familiar – como para a Monja de Monza –, muitas vezes ela era, ao contrário, uma escolha de liberdade da autoridade masculina paterna e marital. Essas mulheres ensinaram que obedecer ao chamado do próprio destino vale mais do que qualquer submissão à ordem familiar.
A Ir. Rita Giarretta, que literalmente fugiu de casa, dolorosa mas firmemente indiferente com relação à mãe que queria prendê-la em uma vida falsa para ela. A vocação dessas irmãs não é coisa de family day.
Eis a entrevista.
Claudio Magris – "O sofrimento – diz Ir. Margherita, que você encontrou em um leprosário do arquipélago de Cabo Verde – enfraquece não só quem o leva na carne, mas também a quem está ao seu lado", e o seu livro faz com que o toquemos impiedosamente com a mão. O mal que se sofre, já dizia Manzoni, leva a fazer o mal, a nos tornarmos malvados. Mas essa malvadeza das vítimas, esse enfraquecimento que pode endurecer o coração, aparece pouco no seu livro. Os oprimidos aparecem quase sempre como nobres, muito prontos a reconhecer e a aceitar o bem que lhes é oferecido. Em geral, os oprimidos – justamente porque são oprimidos – raciocinam mal, como notava Marx, e justamente por isso a obra dessas irmãs é tão necessária. Não há dificuldades, rejeições violentas, incompreensões, por parte das vítimas com relação a quem lhes queria ajudar?
Mariapia Bonanate – A vida das minhas irmãs é um campo de batalha permanente, às vezes ensangüentado, como Etty Hillesum dizia sobre si própria, durante o furor nazista, e fico feliz por você ter se lembrado dela, porque o seu Diário deveria ser proclamado como um "patrimônio da humanidade". O sofrimento é uma terrível jaula de ferro, dentro da qual muitas vezes as pessoas gritam e se dilaceram as mãos, se desfiguram o rosto para dela sair. Quando não conseguem, podem se tornar muito más e cruéis. Mas "é raro encontrar o mal absoluto e gratuito, não embebido por aquelas escórias da humanidade que estão presentes em quase todas as ações dos homens, também as mais atrozes", como você mesmo escreveu em La Storia non è finita. Nessas histórias, nesses pedaços de humanidade ferida, essas "mulheres de Deus" apostam hoje em dia. A impotência que vivem diante de uma rejeição ou de uma reação violenta – diversas delas foram mortos pelos seus beneficiados – é aquela da qual Bonhoeffer fala com palavras que vão na contramão: "Deus não nos salva em virtude da sua onipotência; nos salva em virtude da sua fraqueza, tornando-se irmão do homem em Cristo, por meio da sua impotência e sofrimento".
Claudio Magris – Você relata com poderosa e seca participação afetiva o momento fundamental da existência humana, em que ela está totalmente em jogo: a capacidade de reconhecer a lei da própria vida, de distinguir o verdadeiro chamado que corresponde ao nosso ser do chamado "enganoso", como dizia Kafka, ou seja, das ilusões e aspirações irrealizáveis. Isso vale não só para a vocação religiosa, mas também com relação ao amor, ao matrimônio, à ação política, a toda escolha de vida. Todo chamado – e particularmente o religioso – é difícil, duro, às vezes também terrível ("é terrível cair nas mãos do Deus vivo", diz a Escritura). É, portanto, compreensível, até fácil sucumbir, ser sacudidos e devastados por esse confronto com a própria verdade. Você já encontrou irmãs que talvez acabaram naquele abismo de ruína que outras irmãs atravessam sem cadáveres?
Mariapia Bonanate – Um chamado é um destino que temos, a responsabilidade de construir em plenitude, na fidelidade à vida e à verdade. É um caminho totalmente íngreme, árduo e muitas vezes terrível, vale para todos, estou de acordo com você. Para quem se consagrada com dom total e gratuito de si mesmo, quando se afrouxam os laços com o Espírito e não há mais aquele colóquio ininterrupto com o Pai que torna possível o impossível e cria a esperança para além de toda a esperança humana, corre-se o risco do nivelamento, da identificação com a Instituição. Tornamo-nos "funcionário de Deus" e, talvez em seu nome, realizam-se ações perversas, como no filme The Magdalene Sisters sobre o qual um dia discutimos juntos. Pode também acontecer que nos deixemos contaminar pelo fascínio ambíguo do mal, que nos percamos com aquele que se queria salvar. Pessoalmente, não me cruzei com irmãs que foram engolidas pela escuridão das vítimas, enquanto me encontrei com muitas que, para permanecer fiéis ao chamado e ao carisma do fundador, se afastaram das congregações, às vezes com uma dramática ruptura, às vezes em acordo. Não aceitaram ver sua própria identidade sacrificada, sua sede e sua fome de humanidade, pela sobrevivência das estruturas. Tornaram-se solteiras, sem mais um paraquedas que não fosse a Providência, como confessam. Reinventaram com coragem e fadiga a sua vida em Deus, levando aos mosteiros um vento novo e, na sociedade laica, derrubaram o muro secular entre as religiosas e a vida cotidiana das gentes.
Claudio Magris – O seu livro é um grande livro de amor, uma demonstração de que o amor é muitas vezes árduo, enganado, talvez ultrajado, mas possível e necessário para todos. O amor não julga, como está escrito. Mas também está escrito – é palavra de Cristo – que o Príncipe deste mundo, o mal, já está julgado. Não há necessidade, às vezes, também de cólera? Aqueles três ou quatro cafetões que há alguns anos mataram a mordidas uma prostituta porque não ganhava o suficiente não mereceriam uma chicotada, que além disso Jesus não hesitou em usar, e talvez algo bem mais duro do que uma chicotada?
Mariapia Bonanate – Essa pergunta me leva a uma reflexão pungente e atualíssima que li nos teus Alfabeti: "Talvez a nossa sociedade aberrante, reduzida a sátira de si mesma e a careta irreconhecível, pode ser entendida e resgatada só por uma perspectiva que saiba unir a pietas e a ironia à cólera. O fermento de que temos necessidade deve conter também algumas gramas de ira bíblica e ira flaubertiana". Encontro nessas suas palavras as protagonistas do meu livro que mais amam a humanidade ferida, mais gritam forte a sua indignação, o "justo desprezo" de Dante, para denunciar, sob o próprio risco de vida, as injustiças e as violências que alimentam as "novas pobrezas". Justamente nessa simbiose de pietas e de forte indignação, corajosamente manifestada, de profunda espiritualidade e de apaixonado compromisso civil, está a sua novidade de "sujeitos políticos", vigorosos e incômodos, que sabem enfrentam também dos poderosos de plantão. A Ir. Eugenia Bonetti, que trabalha com tenacidade e coragem contra o tráfico de "escravas" do século XXI para o comércio sexual e o tráfico de menores, colocou Bush em apuros. Ele quis conhecê-la e lhe havia perguntado: "Irmã, segundo a senhora, nós, governantes, fazemos o suficiente contra o tráfico humano?". "Não, senhor presidente, vocês não fazem o suficiente", respondeu-lhe impávida.
Para ler mais:
• Uma semana sem mulheres
• ''Ah, se a Igreja ouvisse melhor as mulheres''
• Uma mulher que humildemente deu início à mudança
• A mulher secundária
(Inst, Humanitas Unisinos)
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