As frágeis mulheres fortes de Israel
• Internacional
Submissão religiosa, maus-tratos e desigualdades laborais complicam a existência de metade da população israelense
03/01/2011
Carmen Rengel
de Jerusalém (Israel)
do Periodismo Humano
“És benigno. Senhor eterno. Deus nosso. Rei do Mundo que não me fez mulher”. A cada manhã, numerosos judeus praticantes agradecem à Deus em sua reza de Adom Olam por haver-lhes salvado da escravidão, evitado que caíssem na idolatria e tê-los afastado do estigma de ser mulher, esses seres submetidos, cuja única função sobre a terra é engendrar novos filhos do povo escolhido.
Nem todos os judeus recitam essa ladainha, nem todos creem de pés juntos que ser mulher é uma desonra. Não. Mas o certo é que em Israel a religião se mescla tanto com a vida que acaba por tornar-se lei. Ainda que formalmente não se tenha declarado um “Estado judeu”, Israel o é na prática, e são as mulheres as que mais sofrem essa realidade.
Esse desenho da mulher israelense forte, firme, empreendedora, capaz de pilotar um caça, se esvai com outras qualificações, menos visíveis, mas igualmente reais: as da mulher insultada, aprisionada pela religião, minimizada por uma sociedade masculina. As frágeis mulheres fortes de Israel.
Machismo e matrimônio
As mulheres, que são 51% da população do país (pouco mais de 3,5 milhões de pessoas), veem seus direitos vulnerados especialmente no campo da família. Arrastam a obrigação geral de se casarem por meio de um rito religioso, já que o matrimônio civil não é contemplado e, além disso, só se pode levar a cabo com o consentimento do rabino.
Os problemas aumentam caso o casal queira separar-se. Gila Adahan, advogada de Jerusalém especializada em divórcios, explica que as separações se regem pelas leis do Talmud, dos séculos 4 e 5. “Só o homem pode conceder o divórcio, e tem que entregá-lo por escrito pessoalmente à mulher”. Essa cláusula dá lugar a um fenômeno denominado “mulheres ancoradas”, que não conseguem o divórcio se o marido não quiser ou, inclusive, se ele estiver fisicamente impedido e não puder assiná-lo com seu punho e letra.
A solução, explica a especialista, passa por uma longa espera, já que a média para conseguir o divórcio em Israel é de dez anos, segundo ONGs, e de dois, segundo o governo. Existem mulheres que buscam outra solução: pagam seus esposos para que as deixem separar. “Não é incomum que renunciem à moradia ou à manutenção dos filhos para tal. Chegam a um verdadeiro desespero”, completa.
Critérios bizarros
Kaveh Shafran, porta-voz da associação Rabinos pelos Direitos Humanos, explica que as sinagogas tentam ajudar essas mulheres, convencendo os maridos a dar o braço a torcer. Os ameaçam com o “repúdio” da comunidade, com o impedimento de estudar o Torá, com o rebaixamento no organograma da sinagoga e até com denúncias às autoridades penais – em 2007, 80 homens cumpriam prisão depois de serem apontados por seus rabinos, informa a agência Efe.
Às vezes, até pagam um detetive privado para ir atrás do marido fugido. Os rabinos se envolvem sempre que há uma “causa justificada” para o divórcio, mas aí reside outro dos inconvenientes: a extravagância desses critérios.
Shafran explica que o Talmud não considera como “causa suficientemente argumentada” a infidelidade, a violência ou a ausência prolongada do lar. Por isso, se um homem ataca a punhaladas sua esposa, poderá ir à cadeia, mas não tem que conceder divórcio. Aceita-se como causa justificada o fato de o marido ter mau hálito ou não cumprir com suas obrigações na cama. “Um homem pode repudiar sua mulher se não ela cozinha bem, se encontra outra que o satisfaça mais ou se eles não têm filhos”, diz o rabino.
A solteirice “é o maior mal para a mulher israelense”, afirma um dos rabinos mais conservadores do país, Ovadia Yosef, e nem de longe é uma solução: as solteiras estão condenadas ao ostracismo em sua comunidade. É preciso se casar, e logo (24,5 anos as judias, 20,5 as árabes) e ter muitas crias (três em média). Aqui não fica nem o consolo da Espanha antiga de tornar-se freira. Ao contrário: a mulher participa em pouquíssimos atos das cerimônias litúrgicas e apenas em um punhado de sinagogas mais abertas.
Heranças da religião
Sigal Ronen-Katz, assessora legal da Israel Women's Network (IWN, uma das principais organizações feministas do país), sustenta que a religião marca uma sociedade patriarcal que acaba por gerar maus-tratos. Sempre se difundiu a ideia da israelense valente, pioneira, combatente, criadora do Estado, pilar-mãe da sociedade, “mas, por trás disso, há pressões psicológicas e físicas muito fortes, especialmente no entorno religioso”.
Segundo seus dados, 42% das mulheres ultraortodoxas apanham de seus maridos e 24% sofre violência sexual. Nos últimos 20 anos, 378 mulheres foram assassinadas por seus parceiros. A metade era formada por judias e árabes de idade madura que residiam em zonas radicalizadas.
Quase 36% delas eram estrangeiras, sendo que o número total desse segmento não supera um sexto da população total do país. 2010 foi o pior ano desde 2004, com 18 mortas, o dobro de 2009. O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu informou, no Dia Mundial contra a Violência contra a Mulher (25 de novembro), que 200 mil israelenses e 600 mil crianças são vítimas de violência física ou emocional e, quando denunciam, levam em média cinco anos de calvário.
Ele disse isso abaixando a cabeça diante das mulheres que reprovaram sua debilidade em relação aos agressores: há um ano, ele prometeu cinco milhões de shekel [moeda isaraelense] em ajudas e investimento em refúgios, mas ainda não liberou nada. As ligações para o serviço de assessoramento da IWN cresceram entre 30 e 50% no último ano.
Entre as estrangeiras submetidas a maus-tratos, encontram-se, sobretudo, as russas e as etíopes, justamente as minorias mais presentes no mundo da prostituição. A Divisão para o Adiantamento da Mulher (DAW) sustenta que cerca de 3 mil mulheres estão submetidas à exploração sexual, apesar de que a religião deveria ser um freio para a maioria dos israelenses.
Não é assim. “A prostituição é uma forma moderna de escravidão, inclusive neste país que nasceu fazendo iguais a homens e mulheres e já distante de colonialismos e opressões. Em 15 anos, foram deportadas 5 mil mulheres”, afirma Ronen-Katz. A ONU calcula que cada traficante ganha por ano mais de 60 mil dólares por garota, cada uma comprada por entre 7 e 25 mil dólares. Um bordel pequeno, com dez mulheres, pode gerar 250 mil dólares mensais. 70% das jovens são viciadas em drogas.
Trabalho
“As israelenses se movem em uma realidade masculina sob a falsa aparência de serem iguais”, escreveu já em 1978 a feminista Lesley Hazleton. A situação não mudou muito, como revela a cada ano a comissão criada no parlamento israelense sobre a mulher.
Ruhama Avraham Balila, deputada pelo Kadima e ex-ministra do Turismo, repassa os dados desolada. É uma das 23 mulheres de uma câmara com 120 parlamentares, que sempre oscila entre 7 e 10% de representação feminina, habitualmente de partidos de centro ou esquerda. Entre os dados que aponta, encontra-se o de as mulheres terem melhor formação que os homens, com 2 pontos percentuais mais de tituladas em educação formal (22%) e 9 pontos mais no ensino médio.
55,9% dos estudantes de formação superior são mulheres (a sétima melhor cifra do mundo), mas, apesar disso, o desemprego feminino é dois pontos superior ao masculino (de 6,1 a 8,3%). “É desesperador: somos um quarto do professorado universitário e a pressão familiar e religiosa afasta as meninas das carreiras técnicas. Por fim, somos maioria no de sempre: educação, trabalho social, enfermagem, secretariado… Onde estamos em economia ou defesa? Em nenhum lugar, não nos promovem, não nos veem como igual”, diz uma senhora que teve mais espaço na imprensa por ter sido eleita uma das políticas mais bonitas do mundo do que por seu trabalho.
Nunca foi bem visto que mulheres tenham autonomia em seu emprego, assim que 91,4% das empregadas exercem funções de subordinação, contra 80% dos homens. Não chegam a 4,5% as que têm cargos executivos (sete pontos menos do que os homens) e, na política, passam de um terço apenas em prefeituras potentes como a da capital Tel Aviv.
“Só houve nove prefeitas em nosso país”, denuncia Avraham. Na Corte Suprema, em 62 anos de Estado, só houve três mulheres. Nos últimos dias, a briga no Parlamento se centrou em fazer cumprir a lei de igualdade de salários, que chegam a diferenças de até 38%, e a abertura a todos os empregos, pois muitos estão vetados “por ser perniciosos para a saúde da mulher”, como os trabalhos noturnos.
“Não nos deixam ser as judias fortes do Holocausto, ou as que saíram no filme Êxodo. Nos suavizaram no mau sentido. Temos pequenas coisas: um ano de licença maternidade, uma lei contra o assédio sexual muito potente, ajudas de escolarização… E, entretanto, ser mulher aqui é muito difícil”.
Minoria esquecida
A discriminação geral da mulher israelense se soma, no caso das árabes, ao fato de pertencerem a uma minoria esquecida. Fadwa Lemsine, 36 anos, empresária, se vê como uma vítima tripla, “por ser árabe em um Estado judeu, por suportar uma sociedade patriarcal que exala machismo e por não poder receber a qualificação necessária para escalar neste mundo de economia liberal”. Ela é uma exceção, parte desses escassos 3% de autônomas, sobrevivendo em sua loja de design de interiores. Segundo o Escritório Central de Estatística de Israel, só 18,6% das árabes trabalham, diante de 56% entre as judias.
As mulheres árabes limpam Israel, basicamente. Ou dão aulas em colégios de sua mesma minoria. Ou cozinham. Trabalham por 47% menos do salário de uma israelense. Casam-se antes, têm mais filhos e, ainda que a palestina seja uma das comunidades mais progressistas do Oriente Médio, também carregam o rigor do Islã. “Eu estudei em um centro árabe, não tive subvenção alguma para abrir minha empresa, recebi pressões municipais para contratar judeus… Ainda assim, sou a primeira empresária da minha família, estou orgulhosa”, defende.
Ela colabora em uma associação de mulheres e afirma que um quinto das mulheres de Israel vivem na pobreza e quase um terço não come todos os dias para que nada falte a sua família. “Essa é a tragédia, não temos poder, mas pobreza, e esse círculo vicioso não acaba”, lamenta. A crescente radicalização religiosa do país só complica as coisas. “Maus tempos, é sempre ruim nascer mulher nesta terra”.
Tradução: Vinicius Mansur
(Brasil de Fato)
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