O modo lúmpen de estar no mundo
Zygmunt Bauman exalta a capacidade da narrativa dos romancistas de iluminarem os meandros da experiência humana de estar no mundo. O grande sociólogo contemporâneo, nascido na Polônia, faz essa constatação para espicaçar a academia e o que ele considera a alienação de alguns profissionais de ciências sociais. Para Bauman, a literatura consegue alcançar os interstícios, as frinchas da realidade, onde a pesquisa sociológica jamais chegou. Para ele, os literatos são capazes de “reproduzir a não-determinação, a não-finalidade, a ambivalência obstinada e insidiosa da experiência humana e a ambigüidade de seu significado”. E para ilustrar cita Borges, Tolstói, Balzac, Dickens, Dostoiévski, Kafka, Thomas Morus. Mas poderia ter citado um conterrâneo seu, que, a exemplo dele, fez a sua vida profissional na Inglaterra e, portanto, em língua inglesa, que foi Joseph Conrad.
Conrad é o autor de “O coração das trevas”, alegoria (uma seqüência de metáforas) sobre as conquistas coloniais do capitalismo concorrencial do século 19. Barra pesada. Se Marx, n’O Capital, já havia ido fundo nas denúncias ilustrativas das desumanidades do moderno sistema produtor de mercadorias nas suas fases de acumulação primitiva e concorrencial, Conrad agudiza sua literatura até o ponto do horror. O personagem narrador é Marlow, protagonista de uma aventura que penetra “nos sombrios domínios do inferno particular” de uma empresa privada, exploradora de marfim na África. Homens-bagaço sugados à exaustão. Canibais recrutados como mão-de-obra informal e que, impedidos da dieta alimentar correspondente a sua condição antropológica, dedicam-se a engolir carne podre de hipopótamo, e cujo salário se resume a três pedaços de arame por semana, preciosa moeda de troca naqueles “confins de ermas solidões”. Conrad cria nesse romance um personagem mítico chamado Kurtz (depois decalcado no filme de Coppola, Apocalypse Now [1979], completamente fora desse contexto), um sujeito internado no coração das trevas, uma ponta de lança do capitalismo, agente avançado da modernidade burguesa no seio da barbárie, cuja fortaleza-sede é decorada com cabeças humanas genuínas, para mostrar com quem estão falando. “Toda a Europa contribuíra para a confecção de Kurt” – escreve Conrad. Ele é a síntese mais acabada do etos da modernidade. A Sociedade Internacional para a Supressão dos Costumes Bárbaros (e só falta Conrad completar, debochadamente, “...e pró adoção de modernos barbarismos”) confiou a Kurtz o preparo de um relatório sobre a África. O relatório contém pérolas do tipo: “nós os brancos, considerando o progresso que já tínhamos alcançado, devemos forçosamente ser encarados por eles (os selvagens) como seres sobrenaturais”; “chegamos a eles investidos dos poderes de uma divindade”; para concluir com a aterradora sentença de morte – “Exterminemos todos os bárbaros!”. As semelhanças fundamentalistas com a presente conjuntura mundial não são mera coincidência.
Bem antes de Michel Foucault, Conrad já denunciava, através de sua literatura, o discurso da “luta de raças” funcionar como princípio de eliminação, de segregação e, finalmente de normalização da sociedade (Foucault)...
Veja, também, que Conrad aponta o uso astucioso do imaginário mágico-mítico das populações autóctones. Kurtz, o homem-síntese da Europa civilizada, da Europa duas vezes desencantada-desmagificada-racionalizada-intelectualizada (Max Weber), tanto pela ética religiosa judaico-cristã, quanto pelo espírito do racionalismo científico, não hesita em lançar mão de expedientes considerados primitivos, como a idolatria e o sobrenatural, com objetivos de submissão, conquista e normalização.
Alguns comentadores (nem chegam a ser críticos) afirmam levianamente que Kurtz enlouquece na selva, que perde o juízo, tendo em vista a selvageria e a barbárie com as quais convive por anos a fio. Nada mais etnocêntrico. Como se a hipotética “loucura” viesse de fora, como se fosse inoculada pela relação promíscua com os selvagens. Considerar assim seria uma simplificação grosseira, além, de irrelevante. Como indivíduo, ele, de fato, fica sensivelmente abalado com o que provocou naquele lugar: “O horror! O horror!” Mas como agente social da modernidade burguesa, Kurtz tem as taxas de lucidez e as taxas de demência em doses flutuantes de equilíbrio e controle racionais para, tanto impor sua vontade de predador da Natureza (humana, animal e vegetal), quanto para – com método e determinação – traficar espíritos, força de trabalho semi-escrava e mercadorias com objetividade de propósitos sincronizados a uma rede de negócios comerciais na distante Europa. Onde está a loucura disso? Muito ao contrário, sente-se o tom permanente da acuidade, da expertise, da logística complexa e da organicidade sistêmica em todas essas ações gerenciais de predação da Natureza, nas suas várias formas de vida. É a “arte da guerra” a serviço da rapinagem comercial. E a rapinagem não é somente de elefantes e seus cobiçados marfins, ela corrompe por igual o ambiente inteiro, dissolvendo, sobretudo, o homem e a sua cultura. A cogitada “loucura” de Kurtz é como o procedimento do feiticeiro – lembrado por Marx, no Manifesto – que, incapaz de controlar os poderes ocultos desencadeados por seu feitiço, vê-se vítima de seus efeitos. Os danos causados, no limite, levam perigo ao próprio empreendimento colonial europeu, seus patrões. A “loucura” é – a rigor – um lento processo de lumpenização do personagem. Kurtz não enlouquece, transforma-se num lúmpen. Em alguém que se descola de sua classe e, incapaz de voltar ao seio de uma vida burguesa, torna-se um marginal imprudente que coloca em risco a mecânica do sistema. Simbolicamente, ele seria o lúmpen fundamental, o lúmpen essencial.
Como um Fausto lúmpen pós-moderno, se envenena com as emanações maléficas de seus próprios feitos. Se o Fausto de Göethe era moderno, o Fausto lúmpen representa a pós-modernidade. Vive os limites fisiológicos do dia-a-dia. Como um cão que desconhece o seu futuro, o lúmpen pós-moderno só tem o presente. Vive tão-somente a unidimensional existência fisiológica, como qualquer animal.
O trem do capitalismo já passou pela estação da modernidade e transita agora pela estação da pós-modernidade. Cada vez menos setores, classes e indivíduos cabem nesse sinistro trem da história. Abandonados pelo caminho, vão sobrando todos os rejeitos do moderno sistema produtor de mercadorias. O lúmpen é a escumalha que fica no rastro desse itinerário perverso. O grande personagem pós-moderno é o lúmpen, “o lixo de todas as classes”, “massa desintegrada” (Marx), desgovernada que é vomitada pelo sistema, todos os dias. Cresce como cogumelo na vida social contemporânea. Estamos em plena invasão lúmpen, fenômeno dinâmico que produz um etos, uma cultura e perfis sociológicos que lhes correspondem. Há punhados de exemplos. O mais recente no Brasil é o da proliferação dos bingos, jogo-lúmpen que servia de fachada para toda a sorte de atividade marginal e anti-social. Felizmente o governo federal teve a coragem de fazer cessar essas usinas de lumpesinato. Em que pese, o causador dessa proibição ter sido outro personagem lúmpen que assola a República, o do barbabé-quadrilheiro que trafica influências e recursos públicos para fins pessoais e privados. A crescente criminalização da vida social é uma derivação da dinâmica lúmpen. O crime passa a constituir-se em força produtiva e meio de vida para milhões de pessoas. Manifesta-se, no plano econômico, de múltiplas e criativas formas: “acordos e cartéis, abusos de posição de liderança, dumping e vendas casadas, delitos de iniciados e especulação, absorção e desmembramento de concorrentes, balanços falsos, manipulações contábeis e de preços de transferências, fraude e evasão fiscal por filiais off shore e sociedades virtuais, desvio de créditos públicos e mercados fraudados, corrupção e comissões ocultas, enriquecimento ilícito e abuso de bens sociais, vigilância e espionagem, chantagem e delação, violação do direito do trabalho e da liberdade sindical, da higiene e da segurança, das cotizações sociais e ambientais” (Brie). A vanguarda é o lúmpen.
A lavagem de fundos ilícitos pelos principais bancos dos Estados Unidos constitui uma fonte importante de fluxos externos para aquele país. Uma subcomissão do Senado americano calculou essa cifra em torno de 500 bilhões de dólares/ano. São recursos de múltipla origem: desde o narcotráfico, máfia russa e japonesa até o caixa dois de companhias multinacionais, depósitos de paraísos fiscais “legalmente” tolerados. Tráfico de tudo: novos narcóticos sintéticos, cocaína, armamento pesado, órgãos humanos, alta prostituição, falsificação de grifes (muitas vezes pelos próprios proprietários, com o intuito de aproveitar o crescente mercado-lúmpen informal em todas as grandes cidades do mundo), pirataria na informática e na indústria fonográfica, o tráfico de animais (só este tráfico, movimenta anualmente cerca de 20 bilhões de dólares), etc.
Toda a inteligência e logística estatal norte-americana do serviço secreto que era empregado na Guerra Fria onde opera, hoje? Ganha um doce quem disser que é na nova guerra econômica pela americanização de fundos legais e ilegais (fundos-lúmpen), tanto faz. A moeda é uma mercadoria vil que procura proteção máxima; e os EUA podem dispor de meios para garantir-lhe segurança e rentabilidade.
O comércio mundial anual situa-se, hoje, “ao redor de 5 trilhões de dólares, calcula-se que 20% por via do crime, ou 1 trilhão de dólares” (Brie). Essa riqueza-lúmpen é administrada lisa e serenamente pelos grandes bancos do planeta, por grandes escritórios de advocacia, mega-corretores, intermediários diversos, gerentes e diretores de trustes e fiduciárias, constituindo um bolão-lúmpen que é lavado todos os dias, em quantidades parcelares, pela chamada economia legal. Essa mega lavanderia-lúmpen cobra pedágio em vidas humanas. A Rocinha é apenas um exemplo nacional que ilustra essa internacional-lúmpen da violência naturalizada.
O crescimento mundial da dinâmica lúmpen é um indicativo evidente da enfermidade estrutural do sistema produtor de mercadorias. Os filhos de Kurtz proliferaram e querem ser vanguardas da anomia social. O modo lúmpen de estar no mundo é o último capítulo da saga Iluminista. A montanha liberal pariu ratos que roem a humanidade do homem. À esquerda acomodada, restam apenas podres poderes.
Artigo de Cristóvão Feil, sociólogo. Publicado originalmente no portal Carta Maior, aqui.
Redator: Cristóvão Feil - Data: 15.1.11
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TERÇA-FEIRA, 11 DE JANEIRO DE 2011
Sapo entalado
Primeira pergunta ao antropólogo de direita, Roberto Da Matta, feita pela jornalista Marília Gabriela, programa Roda Viva, TV Cultura/SP, edição de ontem:
- Roberto, você acha que o povo brasileiro aceitou bem a eleição de uma mulher à presidência da República?
Desliguei o aparato e fui dormir.
O batráquio indigesto ainda não desceu, mas está dando uma azia danada, nessa gentalha.
Redator: Cristóvão Feil - Data: 11.1.11
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SEGUNDA-FEIRA, 10 DE JANEIRO DE 2011
Paco de Lucía
"Entre dos aguas".
Redator: Cristóvão Feil - Data: 10.1.11
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DOMINGO, 9 DE JANEIRO DE 2011
O clássico de Victor Heredia
Ojos de cielo, um "carnavalito" (música/dança coletiva ingênua e festiva pré-colombiana) que virou clássico.
Redator: Cristóvão Feil - Data: 9.1.11
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SÁBADO, 8 DE JANEIRO DE 2011
Charly Garcia de penteado novo
E estranho "peinado"...
É sempre um prazer escutar o velho e louco Charly. Põe o Caetano no chinelo, com a vantagem que nunca desbundou, politicamente.
Outro grande nome do rock portenho é o de Luis Alberto 'Flaco' Spinetta. É como dizia o Alemão Marta Rocha, lá de Cachoeira: "O Flaco é uma sucessão de sucessos..."
Redator: Cristóvão Feil - Data: 8.1.11
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O modo imbecil de estar no mundo
Sinclair Lewis
“A depreciação do mundo dos homens aumenta em razão direta da valorização do mundo das coisas”. (Karl Marx, em fevereiro de 1844)
Quem está vivo (em todos os sentidos) experimenta, a todo o momento, o grande impacto do fenômeno da transição cultural – sob os auspícios do moderno sistema produtor de mercadorias. Os motivos estão perfeitamente identificados: quebra de paradigmas em vários campos da ciência, profundas mudanças tecnológicas, prevalência numérica do trabalho morto sobre o trabalho vivo, produção flexível, hegemonia definitiva do capital financeiro, divinização do dinheiro, intensas mudanças na noção do tempo social, reificação das consciências, etc.
Esse fenômeno da transição cultural não é – evidentemente – inédito na história do sistema. Apenas sucede a muitos outros. A última ocorrência maciça e consistente do fenômeno foi quando do início da revolução da chamada “produção em massa”, nos primeiros trinta anos do século 20, grosso modo. Motivada pelas novas técnicas de produção introduzidas por Frederick Taylor e Henry Ford (foto acima). O primeiro, com seus estudos sobre o tempo-movimento e a lógica do tempo métrico; o segundo, a esteira de montagem e seus operários não-especializados bem remunerados. Saem de cena: o improviso e o artesanato, a produção voltada para valores de uso, o individualismo econômico. Entram em palco: cronometragem e racionalidade no uso do tempo, produção em escala, ênfase no valor de troca da mercadoria, consumo de massa, operário não-especializado, economia programada, consolidação da hegemonia industrial. É o início daquilo que o sociólogo alemão Elmar Altvater chamou de “sistematização fordista”. Uma forma de vida e de relações sociais moldadas pela racionalidade taylorista-fordista. Uma esquina cultural que a promessa iluminista-liberal teve que dobrar sob o comando da unidade entre técnica e ciência, que é igual à tecnologia. A ciência como força produtiva, o tempo como instrumento contábil do valor e o trabalho abstrato como valor de troca em consagração definitiva na história.
A singular reunião desses fermentos simbólicos na base social produziram, nas esferas da superestrutura, uma espuma de tipos humanos diferentes e originais. Sinclair Lewis (foto no alto), o grande escritor norte-americano que ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1930, apanhou muito bem isso tudo; criou uma alegoria que narra como que o nascimento desse indivíduo fordista e sua errante aventura de proto-imbecil sociológico. Seu romance maior é “Babbitt”. Retrata a vida na década de 20, de um americano médio, George F. Babbitt, 46 anos, que “não fazia nada em especial: nem manteiga, nem sapatos, nem versos; mas era perito em vender casas a preços excessivos para a bolsa dos compradores”. Um picareta de imóveis. Socialmente, Babbitt é considerado “um booster – homem de energia e iniciativa, um esteio do progresso”, combinado com aquilo que o alemão des-qualifica como “Landsknechtsnatur” (uma expressão idiomática que identifica o sujeito que adula os superiores e dá coice nos subordinados). A mulher (chamada de Sra. Babbitt) é um ser invisível na casa, uma serviçal do lar, embora seja auxiliada pelos novos apetrechos elétricos fabricados em série, e tem “tanto sexo quanto uma freira anêmica”. A crueldade, não raro, abriga-se inocentemente nas dobras da indiferença. Além de cruel, Babbitt é um tolo patrioteiro, temente a Deus, machista, pusilânime e despersonalizado. Uma fraude de si mesmo, uma imitação barata do homem de vanguarda, o industrial fordista. Agora, resta-lhe tão-somente a autenticidade de ser imbecil, “um homem sem qualidades definidas” (Musil).
É o muco pulmonar da América fordista. Uma geração adiante, essa baba serviu de berçário social para tipos como George W. Bush. Lendo Sinclair Lewis se entende melhor o fenômeno Bush - um filho temporão do obsoleto fordismo e da vetusta indústria de combustão de energia fóssil. Pois, essas secreções “babbittianas” de belicistas imbecis é que estão no poder, hoje, nos Estados Unidos. [Seguem no poder, apesar de Obama.]
Tem uma passagem do romance em que Babbitt lê no jornal sobre um boato da morte de Lênin (foto, que ocorreu, de fato, em janeiro de 1924) e comenta num misto de valentia e bravata: “Ainda bem! Não compreendo como nós não vamos lá e não expulsamos a pontapés esses miseráveis bolchevistas”. Lewis publicou “Babbitt” em 1922.
Mas Antonio Gramsci também escreveu sobre o fenômeno fordista. Foi no conhecido ensaio intitulado “Americanismo e Fordismo”, por volta de 1929. Gramsci, como Marx já o fizera com grande originalidade e arte no “Manifesto”, constata o avanço da racionalidade capitalista na etapa fordista. Contudo, falta-lhe a argúcia literária, a sintaxe poética cortante e a acuidade sociológica do mestre. Fica devendo. Lewis, com humor, graça, alguma arte, e outras lentes, consegue projetar o futuro de um sistema que dava os primeiros passos, através de um personagem síntese. Babbitt é, como Conrad diz do seu personagem Kurtz, um tipo que “toda a América contribuíra para a sua confecção”. Por isso ele é sintético. Passível de ser projetado e traduzido para além da curva do tempo. Onde Lewis é feliz, Gramsci sucumbe. Sua análise é petrificada, óbvia (depois de Marx), por demais objetiva e desgraciosa. Com o seguinte agravante: tanto o projeto nazi-fascista, quanto o projeto stalinista na União Soviética, tiveram como referência de progresso e desenvolvimento econômico modernos o modelo taylorista-fordista. E ambos executaram esse desiderato programático nos seus países – União Soviética, Alemanha e Itália, ainda que sem a “febre consumista”.
Não é à toa que a Hannah Arendt (foto ao lado) diz que o nazi-fascismo não trouxe nenhuma novidade, seja na política populista, na gestão econômica modernizante, na brutalidade policial-militar, no delírio como norma, ou o genocídio da forma “luta de raças”. Aquilo tudo já havia sido experimentado, em fragmentos, pelos regimes liberais. O nazi-fascismo apenas condensou as coisas em pouco mais de uma década de poder tirânico.
Gramsci, então, não teve a necessária clarividência de verificar esses indicativos que apontavam para fatos que a história acabou por confirmar. No caso da União Soviética, nem precisava de semelhante descortino, bastava acompanhar a política econômica “desenvolvimentista” e modernizante de Stálin. Um taylorismo-fordista com trabalho escravo e “emulação revolucionária”. Assim, até Lula!
Esse abreviadíssimo cotejamento do produto da narrativa de dois admiráveis críticos sociais, ainda que com instrumentais diversos, e com resultados qualitativamente desiguais (em favor da literatura de ficção, a meu ver), reforça a afirmação de Zygmunt Bauman, qual seja: os literatos são capazes de “reproduzir a não-determinação, a não-finalidade, a ambivalência obstinada e insidiosa da experiência humana e a ambigüidade de seu significado”.
E, hoje, quem estará devassando os imbecis do futuro da pós-modernidade e outros fenômenos de maior monta? Serão os Bauman, os Zizek, os Robert Kurz, os Fredrick Jameson, as Agnes Heller? Ou serão os Michel Houelebecq, os Don DeLillo, as Patrícia Highsmith, os Thomas Pynchon?
É preciso reconhecer, a narrativa da atualidade é muito diferente. O banco de categorias de que dispõe as ciências sociais está praticamente insolvente para dar conta das interrogações fragmentárias do momento e do futuro. As disciplinas sociais nascidas e geradas pela modernidade cada vez mais devem contar com a arte e a literatura para sobreviverem.
Ou sucumbiremos passivamente diante da provocação (fomentadora) de Theodor Adorno (foto) de que o pensamento crítico está morto, e que a sociedade e a consciência estão “totalmente reificadas”? Estaria, então, o mundo sob a iminência de uma hegemonia irrecorrível de tolos e basbaques de todo o gênero, em especial os belicistas e endinheirados?
Artigo de Cristóvão Feil, sociólogo. Publicado originalmente no portal Carta Maior, aqui.
Redator: Cristóvão Feil - Data: 8.1.11
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(Diário Gauche)
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