Fé e razão, de pai para filho
"O impacto entre as culturas clássica e cristã foi uma aventura complexa de confrontos e encontros e, por isso, substancialmente dialética".
A opinião é do cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho da Cultura, em artigo publicado no jornal Il Sole-24 Ore, 28-11-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
"Notei que, quase mensalmente, o senhor opta, nas resenhas, por uma edição mais ou menos crítica ou por um ensaio sobre a literatura cristã dos primeiros séculos, na prática, a chamada 'patrologia' ou estudo dos Padres da Igreja latinos e gregos, aqueles que eram obrigatórios nas bibliotecas da Universidade Católica por mim frequentada em seu tempo, com a avalanche dos volumes organizados pelo francês Migne. Uma pergunta me surge espontaneamente: muitas vezes, li sobre a profunda relação que existia entre essa literatura e a clássica (um exemplo por todos, Santo Agostinho e o neoplatonismo plotiniano), mas esse abraço que foi mortal para o paganismo não foi prejudicial para também a teologia cristã (veja-se a cristologia do Concílio de Calcedônia tão exageradamente 'grega' e pouco bíblica)?".
Essa, dentre as várias cartas que os leitores me enviam, é de um professor de latim e grego de Milão e me leva a uma modesta reflexão sobre um argumento que já foi abordado por penas muito mais sólidas do que a minha nesse campo.
Acima de tudo, devo dizer que as minhas resenhas dedicadas ao setor patrístico têm o objetivo tanto de mostrar a extraordinária riqueza, originalidade e variedade dessa literatura, quanto de derrubar os muros que separam textos "pagãos" e cristãos antigos. Querem também superar a ironia de Chesterton, quando, em "All Things Considered", definia um clássico como "um escritor que se pode elogiar sem tê-lo lido", ou o sarcasmo de Mark Twain, que, em seu "Disappearance of Literature", era ainda mais duro, afirmando que "um clássico é algo que todos gostariam de ter lido e ninguém quer ler".
Minhas resenhas não escondem, pois, o desejo de estimular os próprios eclesiásticos que leem o nosso suplemento dominical (e não são poucos) a voltar aos textos cristãos fundantes, agora que, infelizmente, até padres e seminaristas no máximo balbuciam o latim de Denziger, isto é, dos documentos oficiais (que, porém, devem ser logo traduzidos em italiano) e se confundem no grego neotestamentário.
Mas vamos ao coração da questão levantada pelo leitor, que abordarei de modo muito simplificado em duas etapas. A primeira quer declarar o absoluto destaque que teve o impacto entre as duas culturas, a clássica e a cristã. Certamente, foi uma aventura complexa de confrontos e encontros e, por isso, substancialmente dialética. É interessante emparelhar já estas duas teses paulinas: "Examinai tudo: abraçai o que é bom" (1 Tessalonicenses 5,21) e "Os gregos reclamam a sabedoria, mas nós pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos" (1 Coríntios 1,22-23).
Tem-se, assim, um verdadeiro campo de alianças e de batalhas que vê envolvidas, de um lado, personalidades cristãs do calibre de Clemente Alexandrino, Orígenes, Tertuliano, Minúcio Félix, Cipriano, Latâncio, Eusébio, Girolamo, Ambrósio, Agostinho e assim por diante. E, de outro, configurou-se aquela que Pierre de Labriolle chamou de "la réaction païenne". Fica claro, d fato, porém, o aspecto positivo do confronto foi muito marcado. Ainda no século II, Justino, na sua "Primeira Apologia" não hesitava em escrever: "Cristo é o Logos do qual todo o gênero humano foi partícipe, e aqueles que viveram segundo o Logos são cristãos, mesmo que tenham sido julgados ateus como, entre os gregos, Sócrates e Heráclito e outros como eles" (46, 2-3).
Como não pensar, por exemplo, no protrético à forma plutárquea escrito por um grande Padre da Igreja como Basílio de Cesareia, o "Discurso aos Jovens", composto entre 370 e 375? Dirigindo-se, talvez, aos seus netos, o Capadócio exaltava a preciosidade da literatura profana produzida pelos éxothen (os de fora), como ele chamava os autores pagãos – seja pela argumentação, isto é, os seus lógoi (discursos) a serem usados na teologia e na exegese, seja pelo próprio testemunho, ou seja, a sua pràxeis, os atos, os comportamentos na ascética e na moral. E concluía estimulando os jovens cristãos a levar em consideração os clássicos (como os citadíssimos Platão e Plutarco), um ephódion, um "viático" para a sua instrução e formação, obtendo "lucro para a alma" (IV, 8-9).
Sob essa luz, a elaboração da cristologia segundo categorias filosóficas gregas (natureza, substância, pessoa...), operada pelo Concílio de Calcedônia de 451, foi, a meu ver, um original ato de inculturação que permitiu transcrever a mensagem cristã nas novas coordenadas culturais.
Certamente, como ocorre em operações semelhantes, sempre há um balanço, seja de "perdas", seja de aquisições (isso também vale para as próprias traduções dos textos sagrados), mas é um risco necessário a ser corrido para uma religião "encarnada" como é o cristianismo, sob pena do fixismo literalista, como ocorre um pouco com o Islã no que se refere ao Alcorão, passível de desvios fundamentalistas.
Sobre isso, o teólogo Ratzinger se comprometeu particularmente em mostrar a validade de um semelhante ato hermenêutico, reafirmando a sua vantagem não só cristológica, mas também no campo da escatologia (ressurreição judaica e imortalidade grega). Além disso, tais retranscrições temáticas foram constantes na história da teologia até os nossos dias, embora no século XIX não houvesse mais à disposição um Platão e um Aristóteles, mas sim apenas um Heidegger e similares.
Passemos brevemente à segunda etapa. Depois da pars construens e positiva não se pode ignorar nem a destruens ou, melhor, o aspecto dialético: "O que Jerusalém e Atenas têm em comum?", perguntava-se Tertuliano polemicamente, que tinha uma sólida formação clássica, porém. Existem, de fato, claramente, algumas linhas claras de divergência entre pensamento clássico e cristãos. Em uma entrevista publicada em agosto passado no jornal Avvenire, o professor Ivano Dionigi, reitor da Universidade de Bolonha, latinista muito apreciado e artífice daquele Centro de Estudos "La permanenza del Classico", de atividades muito criativas e eficazes, reconheceu com a sua competência histórico-crítica altíssima uma série de incompatibilidades que eu gostaria agora só de fazer referência com alguns exemplos.
"O classicismo fundamenta as suas bases – dizia – na ciclicidade do tempo", com o consequente predomínio do presente. O cristianismo, ao contrário, tem uma concepção linear da história, marcada pela ruptura operada por um evento capital, o de Cristo, e dotada de uma meta escatológica que cruza tempo e eterno. O lema estoico "nec spe nec metu" [sem esperança, sem medo], que faz cair, sim, o temor, mas também a esperança, é rechaçado do futuro salvífico cristão, polo final de atração e de sentido, assim como esse mesmo futuro supera o porto da tragédia grega que não conhece a salvação.
Um outro exemplo dessa tensão: o classicismo tem a sua bandeira no antropocentrismo, para o qual o homem é métron áriston, a unidade de medida perfeita do ser, cuja autonomia se encontra só com o enigmático e indecifrável Fato-Anànke. Para o cristianismo, a questão da Encarnação divina embaralha as cartas e introduz uma nova e transcendente unidade de medida.
Segue-se disso que o homem não tem aberta diante de si só a via da razão, da disciplina e da autossuficiência, ensinada por estoicos e epicúreos, embora em percursos diferentes, mas também tem diante de si o caminho alto da mística, da graça e de uma salvação na comunhão com Deus, transfigurando e transformando o seu estatuto criatural.
Detenhamo-nos aqui, não sem estimular o nosso leitor e outros leitores a reconstruir esse nosso rastro temático no interior, por exemplo, do pensamento do apóstolo Paulo. Ele foi o primeiro a tentar uma comparação da mensagem cristã com a cultura greco-romana à qual ele se dirigia, pronto a registrar as consonâncias em sede ético-filosófica, religiosa (os "mistérios"), política, até literária ("como até alguns dos vossos poetas disseram...", Atos 17, 28), mas também a descobrir suas insuperáveis inconciabilidades, como acontecerá em Atenas, em torno ao ponto capital da ressurreição de Cristo.
Para ler mais:
• Ravasi, Deus e Platão
• Ravasi e o novo Consistório: mais diálogo entre fé e ciência
• O teólogo herdeiro de Ambrósio que sabe encantar o público
• O desafio de Ravasi: um lugar para o diálogo com os não crentes
• Dom Ravasi: retomar o diálogo com os não crentes
• )Inst. Humanitas unisinos)
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