CABELOS
Deve-se lavar o cabelo toda semana, indaga repentina e
inusitadamente o professor.
E acrescento, continuou, já emocionado, PODE-SE lavar? Vou + além: TODOS os cabelos? Mais: filosoficamente qual a prioridade desta ação? E seria uma opção ou compulsão?
Os circunstantes, perplexos, quedam os tocos de
velas ainda apagadas e entreolham-se curiosos e
risonhos. Um robusto bebê míope, ainda com olheiras (
pois, coitado, era filho bastardo do burgo mestre; além disso
ele não “conseguia” assobiar alto sem demonstrar
angústia), ensaia um choro muito sentido (pois chovia
forte naquele momento; além disso, curioso, esquecera
os “seus” óculos; mais: esquecera-se!) . um senhor eslovaco, (c ascendência em Touros!) em grande
dificuldade com a sua única e preciosa gravata lilás (era um triste:
fora, coitado, injustamente condenado a sorrir
candidamente a sua jovem sobrinha – uma austro-húngara ! –
sempre que ela abrisse com suavidade e delicadeza a
sua sombrinha cor rosa. Revoltado, apela ao tribunal e
perde: deveria agora também sorrir de forma enigmática
e nebulosa todo dia santo as 10:35 horas ao guarda de
trânsito mais próximo, um tal de sargento Silas, subordinado ao tenente ezequias), o
senhor anuncia, solene e um pouco circunspecto (era
meados de novembro, vê-se; mais:
‘incompreensivelmente’ ainda estava aprendendo a
tossir com discrição e a dissimular suas ilusões), que estava muito , muito
gripado e poderia ir ao médico mas só depois de
decidir se o universo está ou não em expansão (...e
como ‘aquele’ buraco negro seria uma realidade
inexorável, Deus, coitado, sofria solitário: já não
havia querubins para assesorá-lo, bajulá-lo...via-se
perdido, e, estranhamente, alegre...mas, registre-se,
deuses não gargalham, sorriem; e Deuses jamais engasgam! e ‘aquele’ Deus, um
infeliz, um iracundo e ‘erudito’, pois nem sombra tinha ( claro, é proibido aos deuses ter sombra...). E se,
lógico, a eternidade (....sempre ‘ela’...)também não
poderia existir durante o fim de semana e aos
feriados e após as 19 horas, perguntavam-se, risonhos, ‘certos’
convidados ( e o odontólogo, presente, aquiesceu, a
contragosto, pois afinal, ‘aquela’ rosa não era a sua;
aliás, as ‘flores’ jamais seriam suas, pensou, com um
suspiro e um riso irônico: era o passado que
retornava, eram as ‘suas’ rosas do deserto, era o seu
verdadeiro amor...; aliás, adiante-se, jamais gostara
de anjos buliçosos ao seu redor, muito menos em dias
de névoa e sem a sua caipirinha). Há, decerto, uma certa opressão no ambiente
(explicável: ninguém ali sabia fitar a felicidade bem
nos olhos ou realizar súplicas em tailandês), uma agonia indefinida e etérea (um pouco
rósea, é verdade e com discreta flagrância de
almíscar e odor de ‘baleia morta’), um gosto pesado de chumbo na boca – via-se
isso claramente pela mucosa azulada da irmã Talma (a
‘discreta’, a que ‘apreciava’ verduras e que
‘aceitava’ a neve apenas as Quarta feiras, depois de
ler o jornal do dia, por volta das 7:41), também conhecida por suas
palestras de como receber o correio em dias de chuva
e de sua conhecida tese de mestrado “Como ensopar o
nariz pensando em Deus” – mas isso não impede que duas
adolescentes alegres e risonhas ( ‘fingiam-se’
felizes, claro) disputarem um único copo de leite
desnatado ( não era dia de feira ou revolução ...e o
cabo Anselmo – ele! – estava de folga...mas era
carnaval, lógico).
Intróito
Alô
Cristiane? Cristina? Selma?
O amor morreu ontem!
Ah! Tina!
As brumas, a escuridão? A tristeza?
Triste.
Tina!
E o amor?
Hello and good-bye!
Amor?
Parla.
Eu ainda te amo. Meu coração reside nas entranhas e eu vomito. É aí q te amo mais ainda.
Escatologia.
Verdade. A dor alimenta-me, faz-me sobreviver, sentir-me desejada.
Eu te vi há 2 dias...fugazmente, entre cactos e hiatos...
Gostei...
Foi na TV, vc surgiu e desapareceu...como sempre...
E o “nosso” capim, “nosso” feno?
Crescendo.
Certo.
Vc ainda sobrevive entre as torres e controles? Ainda usa óculos escuros ao entardecer? Ainda pertence aos degredos e logros? Sorri maliciosamente às 13:57 horas?
Envelhecemos, é inexorável.
Hemingway disse “Quero um copo d'água”
Eu quero uma dose de uísque.
Tolinha.
Somos tolos, amor.
Certo.
Adeus.
Adeus.
O desenrolar...
“Você já não é mais perfeita?
...não...naquela época, foi em início de 70, creio,
eu brincava de ilusão, brincava de medo e por de sol, de acasos e
sentimentos novos ou inexistentes (como a luxúria, o peculato,
por
exemplo)eu brincava...sei brincar...era uma loucura...eu estava alheada,
pequenina...voava um pouco sobre as pontes e edifícios e precipícios cor de ananás....gostava dos quartos crescentes alheios....
(eu tinha uma bela cruz no peito, sei)...e
alimentava-me de abóboras e araçás (pois eu vivia
ubiquamente, lembra?)...soluçava algumas vezes, é
verdade, clandestinamente, e olhava às escondidas (canto dos olhos...)
para um saco de pipocas vazio...
Sem sal?
Sem sal. E c odor fétido. Os meus dentes eram perfeitos e caros e raros (um jade da Namíbia, acho), eu
sei...vez ou outra, lembro, eu me escondia atrás de um
armário
furta-cor, anônima (pois tinha medo do guarda
noturno e do capataz misterioso ‘daquela’ fazenda....)...comia-me e renascia no dia seguinte, antes
do café da manhã, por volta das 05:37 hs, já cansada, com olheiras (pois eu
também tinha olhos de ressaca, uma ressaca traumática)...mas sem
fome (era uma anorexia poética, explicavam-me)...transcendia-me, pode acreditar...com
dificuldade, lágrimas de anilina nos olhos, mas
transcendia-me...
Era feliz?
Vc era?
Eu vivia...portanto...mas à noite, principalmente
quando chovia (e não havia ‘aqueles’
famosos jogos de
futebol pela madrugada...aliás nunca há) ...pois bem...quando chovia
eu era feliz...a água escorria pelo rosto, fluida, eu
ria e chorava, alegre...era bonito...um dia eu fui
ser
mãe...
Engravidou?
Não...eu fui mãe...poderia ter vomitado, claro, mas
escolhi ser mãe...
Doeu?
Eu era perfeita, lembra? Eu tinha minhas tragédias, alegorias e vislumbres, lógico, um sentimento dúbio e imperfeito de arco-íris e poentes diversos...mas amadureci muito: num período
de 12 meses fui mãe 2 ou 3 vezes...sempre às noites...(minhas longas madrugadas)foi
bom...
gozou?
N, a luz do sol, os meninotes, o baleiro e os semáforos me impediam ....as baianas me ofereciam acarajés e quitutes diversos...mas a penetração me dava um prazer estranho...sentia-me como mulher, claro, ao ser penetrada...feminina...muito feminina... sem nacionalidade ou ideologia, lógico (‘só
os insanos agüentam as idéias’...)
e as axilas ardiam e queimavam...sentia umas cócegas deliciosas no sexo e no ânus, um odor discreto de deja vu...uma ânsia de me querer superar, ser + q eu...
mas vc n era
contra o sexo?
À tarde...mas a fascinação perdura...a gordura atravessa as entranhas...perco-me...mas o desejo animal permanece, claro...
...
...eu era àquela época, uma metáfora barata e asquerosa do
ser
humano...barata e em 2 únicas dimensões (era
esverdeada, não é? Ou incolor?)...foi duro...eu sofria muito, pode
crer, pois nunca desejara realmente ser gente, ser ser humano,
pior: uma metáfora!...as vezes, geralmente depois de
cada almoço ou desjejum, sentia-me onipotente e estranhamente bela
e insensível...um pouco ubíqua (lembra Antígona? Lembra
Ésquilo?), é certo...mas só
quando bebia suco, geralmente de açaí ...
...
...tornava-me, nesses momentos, poderosa e
soberana...soberana sobre a vida, sobre os objetos,
sobre tudo...mas, engraçado, continuava linda e
inacessível, ilhada numa redoma de plástico, erigida duramente
por mim mesma (foram anos de trabalho duro....)...seria intocada e inalcançável,
talvez...triste e solitária...como sempre...
e Deus?
Meu Deus continua um Deus carente e desesperado, ávido de suicídio, mesmo sabendo q n pode concretizá-lo (pois n é facultado aos Deuses o suicídio...)
Retorna o professor...
Insisto: deve-se lavar o cabelo TODA semana? (o
professor insistia, teimoso – era um iracundo, insista-se, pior:
nem escovava os dentes! – afinal, estava em jejum, sóbrio,
aborrecido e, incrível, nem bebera sua limonada!; além
do mais chegara atrasado ao infinito e não encontrara
uma única vaga no estacionamento; mais: tornara-se
ultimamente e inacreditavelmente incapaz de ver o por
de sol e sentir angústia ao mesmo tempo – no entanto,
registre-se, ainda sabia coçar o dedão do pé esquerdo
após aplausos demorados)
Depende, responde, para surpresa de todos, um jovem
espectador, um ser inusitado, que tomara emprestado
1/3 do pulmão esquerdo de seu melhor amigo para
utilizá-lo em eventuais crises de asma. “Acaso tens fé
em Deus”?, continua o rapaz, já um pouco empolgado e
um pouco atrapalhado com seu cadarço solto, em meio a
alusões desproporcionadas ao fundamentalismo (suas
pestanas eram postiças, evidente. – e o xerife, afinal? - E suas botinas
estavam molhadas de chuva e sujas de musgo, pois
chegara muito perto do zênite, embora aquém do
horizonte – todas as tardes, adiante-se, as 14:27
horas, ‘ele’ tinha ‘suas’ unhas encravadas). Quantos
anjos habitam o céu no turno da manhã? E o rango do meio dia? E qual a
distância média – em jardas – entre os limites do céu
e do inferno? Qual a VERDADEIRA distância entre o hoje
e o amanhã? E a inutilidade de um sol brilhando
durante o dia? E quando toca o telefone ao
mergulharmos ‘naquele’ lago? (‘próximo’ a feirinha...)
vc ainda é a favor do estupro?
Desde q seja antes do almoço, tudo bem....e ao som de Mozart...
Almoçou hoje?
Agorinha...legumes...nabos...não quis a
Rapadura ou a couve-flor ou a berinjela...hoje eu comi...ontem...
Ontem?
...ontem foi quarta ou quinta feira?...ontem não
comi nada...ontem anoiteceu e esverdeou...lembro bem...(só depois madrugou e fez-se silêncio...)quando
anoitece meus calos doem, minhas juntas lembram tio José q faleceu as vésperas de seu nascimento...já quando amanhece eu sinto
falta de ar, falta de ar e vontade de rir da vida, de tudo...por volta das 10 e 30 sinto cãibras...às 10 e 37 escureço totalmente, às 10: 39 eu descanso sob um edredom e
as 12 e 45 horas eu soluço (é quando visito as altas
montanhas)...a tarde eu volto a descansar...fico exausta... mas hoje faz sol,
não é?...sol é bom...sem infelicidade...ah! toda sexta feira é ensolarada e feliz e
eu olho para o mundo...daí eu fico quieta...geralmente
ouço apenas silêncio...outro dia telefonei para o
mundo...ninguém atendeu...
E as chuvas?
Longínquas....
...uma vontade de chorar...ah! estou com sede...
Beba um copo d’água.
...boa idéia...
Você ainda assobia durante o sexo?
...lembra?...foi há muitos anos, não
é?...hoje eu
cantarolo...canções de guerra, Casablanca...cigarras ao fundo...meu
prazer tinha sabor de hortelã (as vezes de canela)...hoje eu não sei...hoje
apenas suspiro, um suspiro insone e infeliz...quando não engasgo, claro...pois o
momento é solene...e a minha libido, você sabe, é um
destino desatinado...(dizem q libido, razão e amor são equivalentes...verdade?)
Afinal porquê você é contra o espartilho?
...não sei...questão de gosto...(discordo tb das futilidades; e nunca fui imberbe)...eu, por exemplo,
não sei noivar...não sei acontecer...não sei cochilar
sob um pé de árvore no outono...eu odeio os araçás...odeio ovos mexidos...tudo bem, é a
vida...ontem ouvi
bossa nova durante 2 horas, depois
fui dormir c o som de castanholas....enfim, eu tenho seios e odeio presilhas, concordo...e daí?
Mas há dias você insistia, nervosa, que era
Viúva e transitória...alegava seu desprezo pelos anjos e serafins...
...foi...curioso, suportei bem, resisti, estou viva...mas arde
um pouco ao fim de uma tarde puxada...eu era
inexperiente, todos sabem...e ainda n sabia manejar arados ou lidar c bois e vaquejadas...e ainda amava o vaqueiro Alessandro...
Dizem que é azedo...
Os bois? Ou a vaquejada? Ou Alessandro?
N, o viver....
...não...é salgado...com certeza...alguns dizem que
é insalubre, mas tudo bem...
Você não é azeda?
...sou?
E o mistério?
...escondi bem guardado...quem sabe amanhã...existe
aquele velho baú lá no porão, não é?...e a arca do
titio...(mas houve um tempo em que eu gostava de
pensar; pensar e falar bem alto,
gritando palavras
desconexas, como tatibitate; hoje, depois de longas refeições, reflito, olho o
horizonte ao fundo, respiro 2 vezes e continuo sentindo angústia,
angústia e as vezes uma terrível coceira gostosa no
dedão do pé direito, sobretudo depois de aplausos
demorados)...por vezes sinto-me um pouco estranha, é
quando chove perto de minha orelha
esquerda ou quando
neva atrás de minha fronte...
Sofrimentos?
Inúmeros! Dois ou três, os mais diletos, dentro do
bolso do avental (uma vez um deles, o mais
angustiante, sujou de gordura...) e ao dormir punha-os
num copo d’água sobre a cômoda...ali estavam
seguros...mas um dia eles sumiram!...fiquei
aterrorizada...mas estavam sob o travesseiro...
Abandonou a ambigüidade?
Temporariamente...estou cansada e velha...antes eu tinha
umas 2 ou 3 certezas no máximo...tinha a alegria e a
dúvida...por outro lado, a melancolia me
fascinava (eu ainda n era
existencialista)...às vezes ficava horas e horas vendo meu
irmão, coitado, cultivando suas melancolias...hoje...
...hoje...
...engraçado...vivendo algumas vidas emprestadas eu
Até poderia ser feliz...uma vez, creio que há 2 anos, fui
ser feliz consultando às escuras videntes e
cartomantes russas...douta vez eu era um cisne solteiro e
esfomeado e solitário no Egito (esfomeado, mas
feliz)...hoje...minhas madrugadas de sábado...
...
...é quando tomo aulas de felicidade...por volta de
00:35, 2 horas...um austríaco que toca acordeão e bandolim...
...
...é...ele sobrevive ensinando pequenas coisas,
‘truques’, como ele diz...ternura, melancolia,
afagos...ah! ele também faz palestras sobre
nulidades e misérias alheias...há 3 anos escreveu uma tese de como
demonstrar
felicidade em dias chuvosos...ele também se
orgulha de controlar o vento com o pigarro...mas ele, incrível, n é triste...
Ele chora?
Quando bebe café fraco e sem leite...ou então
quando sussurra a palavra ‘fátuo’...às vezes também
chora quando vê o amanhecer...ele já foi um grande
ator de cinema há 15 anos...cinema mudo...
A que horas ele vive?
O coitado prefere existir
apenas as segundas-feiras, de
preferência as tardes,
antes do lanche, tomando sua caipirinha...aos sábados
ele tem suas aulas, é de lei...afora esses 2 dias ele
simplesmente anula-se em seu quartinho de Paris, longe
de gatos e corvos, de que ele tem pavor...lá ele
desaparece com sua caipirinha, deixando a sombra de
seu corpo cuidadosamente apoiada sobre a maçaneta da
porta...de resto, ele, ao contrário do que os ciganos
sussurram, não guarda mágoa de ninguém...é um bom
homem, gente boa...exceto...
Hum?
Ele sonha. Infelizmente acostumou-se a sonhar e
não
consegue parar: um sonho depois do outro...até
cansar...e quando ele sonha o infeliz escarnece os
anjos e desobedece todos os
ditames...
Ditames?
...nós criamos nossas regras e normas...o nosso próprio
universo...mas ainda existem os velhos preceitos,
claro...sobre cochichar e soluçar sem nunca
sentir
medo, por exemplo...como pintar quadros em noites de
nostalgia...como sorrir após uma noite de
insônia...como usar gravata lilás aos
domingos....salivar sem sentir angústia...ou então
como demonstrar desatenção, óbvio...o fato é que tudo
está implícito...aceita uma xícara de
chá?
Obrigado.
Chá é bom. A eternidade também...(eu já fui obscura em 67, lembra? E em 70 aprendi a mentir...)Ah! vamos brincar
de viver como antigamente? Você é o homem, eu a
mulher...
Ah! O austríaco tb gosta de viver!
Vc n?
Em dias alternados....
E
seus pesadelos?
Ainda opacos, discretamente beges,
furta-cor...antes eram alvos, brilhantes, lembra?...um
pouco tímidos, receosos...mas há o ambiente, claro...e
a educação, a escola, os amigos...mas existe a
lembrança de meus bisavós, meus ancestrais...meus queridos duendes....
Estão bem?
...dormindo...estão muito cansados...
Você, apesar de indestrutível , continua invejando o
sol? Os astros?
...foi no passado...insegurança, não é?...afinal os
peixes morrem todos aos sábados...e sem sol...(peixes adoram o breu...)enfim...
Você ainda teme os espíritos?
...quarta feira...o jornaleiro
instalou-se lá em
casa, você sabe...ele abastece meus espíritos...é um
abnegado, coitado...também, sua mulher...
Hum...
...ela é escura...
...sei...
...a alma lilás...as vezes azul-fusco...
A sociedade permite?
Aceita, não é? Afinal, os dois são imortais...
E o frio?
Nunca senti frio...é bom?
Depende.
...mamãe falava muito em frio...papai não ligava
para essas coisas, vivia sua vida, tinha o seu circo, o anão, bailarina, o picadeiro e pronto...até o dia q a garçonete húngara (ela tinha bigodes...)o raptou e depois o castrou...sua vida acabou...minto...ele ainda fazia apresentações sobre a inexistência...
E a incerteza?
Fica para depois de amanhã, antes da ceia, talvez as 16:54 horas...a
lavadeira passa aqui, diz obrigado como de praxe e nos
leva de carona.... é pertinho...e tem a imortalidade,
claro...
Sua irmã continua imortal como há 2 anos?
É uma tola...nem sabe o que pensa ou
faz...enfim...ela quer assim, o que se há de fazer?
As cores
voltaram a sua vida?
Algumas...geralmente fico muito no escuro, no preto
e branco....aos domingos adiciono um pouco de azul,
uma pitada de verde...depende do humor...do
momento...depende do homem...
Eu?
Nós, por exemplo...
E sua prima, ainda vomita nos intervalos?
...quando ela soluça...ou então quando o marido
vai
ao supermercado ou ao parque...as vezes ela tem
sede...
Sem ajuda?
...é...sozinha...mas não é todo dia...quando ela
volta do trabalho, cansada...depende muito da
lua...
Lua cheia?
É, lua cheia.
E aqueles momentos de encenação?
Foi quando morri, ano passado...engraçado, eu
morri
pouco depois de você, não é?
Uns 15 minutos.
...é...eu estava a olhar
o céu, o espaço, as
estrelas...olha, não devemos repetir os gestos
mecânicos de nossos antepassados...
O.K.
lembrei! Quando a gente morre sente um gostinho
estranho na boca...parece gosto de bruxa da
carochinha...você uma vez me confessou chorando que
nunca sentiu nada, que a morte não tem sabor, não tem
cor...
De fato.
Duvido. Talvez você não recorde, talvez você seja
insensível...
E suas
ausências?
Hoje, por exemplo...quando eu não estou, eu
desapareço...só isso...são as minhas ausências...em
68 eu sumi umas 12 horas, em 1970 um longo e triste
domingo...ontem acordei morta...hoje ainda estou aqui c vc ...
E o teatro?
...é verdade...eu era excelente no papel de
Deus...nós tínhamos bons papéis, não é? Todos tinham
bons papeis...todos me invejavam...inveja é pecado?
É.
O mundo é pecador...e no entanto eu também sinto
uma grande saudade...
De quem?
De mim. Nos meus bons tempos, eu ainda era mocinha,ainda era virgem e inexperiente,
foi antes de te conhecer, eu precisava
desesperadamente viver...eu queria viver...eu vivia em
pedaços, retalhos de mim mesma...era uma existência
fragmentada e confusa...uma esquizofrenia
radical e,
curiosamente, doce e agradável...era um tempo com
gosto de sapoti e cheiro de almíscar...era cor
amarelo-fusco e uma discreta aparência de
vivacidade...
Ardia as vezes, não é?
Aos domingos, antes da missa...e ao poente, pouco
depois do Ângelus, coçava muito...eu ficava toda
empolada...um dia estive inconsciente no hospital...
Engordou?
Quase...graças a Deus recuperei a consciência...foi
rápido, nem senti...restou apenas a velha cicatriz escura no
abdome e um jeito diferente e exótico de tossir...e o vício...
Vício?
...é...viciei em gordura...
Você ainda sorri?
De vez em quando...principalmente aos domingos,
depois do lanche...semana
passada eu sorri...foi na
terça, creio...estava um sol...aí eu sorri, só pra
chatear...mas foi bom, muito bom...
E o silêncio?
...eu era lacônica, sei...um
dia
resolvi...abandonei a concisão (foi em setembro,
creio) e larguei-me pelo mundo...atravessei matas e
desertos....no México (em outubro?) virei
prolixa...foi duro, foi difícil...mas valeu...hoje
emudeço quando tomo banho...também é legal...banho é
legal...
E o mundo, continua a lhe importunar?
...não...mas também hoje eu sei crescer!...sei
espirrar, sei tossir...já bocejo sem ajuda...aprendi a comer sem garfos....hoje eu
sei...antes eu plantava rosas no
deserto...sei lá...
Ainda sente nojo dos objetos?
Um pouco...antes a cada dia eu tentava sobreviver a
mim mesma e daí eu deixava os objetos à parte,
abandonados...hoje eu sei
que sou indispensável aos
objetos...alem do mais os objetos precisam de
mim...eles existem frente a mim...eu os torno
factíveis...apresentáveis...
Você ainda dorme?
As
vezes. E quando durmo, ao acordar, pela manhã,
examino uma cadeira rapidamente, dou meu parecer
mas...tenho de parar...senão ela derrete...
Antes era assim?
No passado os objetos viravam fumaça...hoje
eles
derretem...exatamente como borboletas quando visitam
os querubins...depois eles resolvem afrontar-me...
Enfrente-os.
Não posso...
Ou não quer? Deixou se ser corajosa?
...eles são em maior número...são poderosos e
dissimulados...e eu tão pequenininha...e depois eu já
não sou perfeita...tenho alguns momentos
perfeitos,
ideais...mas são tão fugazes...
...
...algumas vezes esses objetos olham para mim
tristes, como a pedir perdão...mas eu continuo fria
e
calada...depois eu choro...um choro de anteontem e
sabor de fel...o que faço? Chorar?
Viva.
Tento...tento viver...mas é tão complicado...eu
não
estudei para viver...e as vezes estou sozinha...outras
estou amando...é tanta coisa a fazer...você, por
exemplo...
...
Você viveu e morreu antes de mim...porque?
Circunstâncias...
Pois é...circunstâncias...porque decidiu morrer
logo naquele instante quando ninguém olhava e eu
precisava tanto de você?
Desculpe.
Desculpas...hoje pede desculpas...bom, deixa pra
lá...circunstâncias, como você mesmo diz...
Diga-me,
viver coça?
Próximo as trovoadas...quando relampeja e ronca
forte...é uma sensação incrível...você sabe, claro,
você já viveu...
Arde?
Não. Às vezes dá uma dorzinha na barriga...mas
passa logo, é rápido...
E suas aventuras?
Poucas...viajo...5 dias em Berlim...Suécia,
Dinamarca...fui uma vez a Nicarágua...há um sujeito
que me sustenta, um nicaragüense...e ontem um
desconhecido beijou-me de 5 em 5 minutos...
...
Era engano...as pessoas pensam que me assusto com
enganos...mas estou aqui...vamos brincar de homem e
mulher?
Vamos.”
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