“Ontem sonhei com ‘ela’. No sonho ‘ela’, peralta como
sempre fingia-se triste, suas unhas, finas e
delicadas, enfiadas num lenço branco amassado. Dentro
do lenço algumas ilusões da véspera. Chegou-se ao
‘nosso’ bosque sombrio e atirou-se a escuridão, braços
abertos como um nadador. Mas aquela era uma escuridão
rasa e precária – como nós dois, correto – e ‘ela’
apenas afundou na lama, no poço, no lodo escuro de
minha existência.
E aquele imenso e exuberante bosque, alto como a
cúpula de uma catedral, repleto de estranho movimento
e agitação – como num frenesi – pois o bosque exibia
uma luz baça e tímida, hesitante, plena de angústia e
ansiedade, a minha angústia, não a sua alegria, pois
era um bosque do meu mundo, não do seu universo.
Alguém, displicente, espalha inadvertidamente sobre
todo o bosque pétalas úmidas de um choro falso e
precoce, pois eu ainda não havia chorado. Aliás, Deus
não chora nem soluça (as vezes eu suspiro, mas aí sei
disfarçar).
‘Ela’, agachada, cabeça encoberta, encolhida a um
canto do bosque, aparentemente triste, finge soluçar.
Eu me aproximo, altivo e soberbo, e toco-a com o
indicador direito, como a conforta-la. (Na realidade,
diga-se, gostaria de beija-la e acaricia-la, tê-la em
meus braços naquele instante, mas algo me retém o
gesto, alguma coisa segura os meus desejos e ânsias)
Você é infeliz?, alguém lhe pergunta, em sussurro
íntimo.
Sou, porquê?
Observo a distância o estranho diálogo (pois eu sei de
suas mentiras e logros, ‘ela’, curiosamente, pode e
quer ser feliz, ela consegue ser feliz; daí
pergunto-me o motivo daquela farsa, daquele embuste),
no entanto mantenho um discreto e talvez porisso
mesmo, incompreensível ‘ciúme’ e ‘zanga’.
(No bosque, em um certo momento inesperado, surge uma
gigantesca teia de aranha, com um pequenina e graciosa
mosca aprisionada. A mosca, desesperada e impotente,
debate-se, tentando em vão desvencilhar-se. Solidário
com a sua impotência, chego receoso a esboçar a
inevitável pergunta ‘Devo liberta-la? Devo deixar que
a devorem?’. ‘Ela’, fêmea e receptiva, sempre aberta
as incursões em seu ‘território’, disfarça uma
ilusória dúvida e apenas sorri, travessa e
desdenhosamente. Penso em recrimina-la – com uma
dureza artificial – mas a menina já se afasta, a
brincar com uma faca que de fato era-uma-faca. E eu,
penso, inquieto, que nem sou
um-Deus-que-sabe-ser-Deus?)
Todos os meus navios são rosados, ‘ela’ me diz,
referindo-se talvez a sua longa e comprida saia azul.
E acrescenta em tom de inquirição ‘Os seus navios têm
cor?’.
Você fuma?, pergunto, reticente (eu queria a todo
custo disfarçar a minha terrível dor no peito, a minha
opressão e inação). Daí olho para a sua saia, de um
verde inusitado, imaginando-a sem. É linda, penso
ternamente. Suas pernas, seios, sua pequena cintura,
tudo esfuma-se em uma só imagem de mulher desnuda.
Doce e lindamente desnuda.
Se eu morresse aqui onde você me enterraria?, ‘ela’
indaga, com uma tristeza que não lhe é peculiar.
Você jamais morreria num bosque, digo-lhe. E
acrescento, irônico, ‘Além do mais, você está com o
seu Deus!’
‘Ela’ sorri, bela e terna, e me beija a face (tinha
os olhinhos fechados). E sussurra-me comunicando que
quase todos os seus navios afundaram. Resta-lhe apenas
a mim, apenas um Deus navegante, não naufragável
(‘ela’, felizmente, ainda não me conhece).
Num momento, no sonho, ‘Ele’ surge,
inesperado, ameaçando toma-‘la’. Tira-‘la’ de mim!!
Estremeço, amedrontado. ‘Ele’ aproxima-se, arrastando
lentamente seus pés, pés gigantescos, como patas de
elefante. Mas, engraçado, olha-me, terno e
apaixonadamente, imaginando-me aventuras e loucuras,
‘todo um mundo de prazer e luxúrias’, parece querer
insinuar.
‘Ele’ olha-me, insistente. É um olhar lúbrico e
insinuoso. Tento imaginar algo rijo, um obstáculo
qualquer, poderoso o suficiente para contrapor-se ao
seu olhar, mas em vão. Ambos somos deuses, ambos
onipotentes. Que fazer, como diria o revolucionário?
No entanto não devo chorar. Eu também sou Deus!
‘Ela’ desaparece, como por encanto. Estávamos ali,
agora, apenas nós dois: ‘Ele’ e eu, dois deuses, um
conquistador, outro, tentando evitar a conquista (mas
quem seria o objeto da conquista, ‘ela’ ou eu?).
Mas esqueço o desenrolar...
Mais adiante, no sonho, lembro, ‘ela’, deslumbrante e
maravilhosa, ajuda-me a desvendar os meus
‘desfiladeiros’, meus ‘transes’ e ‘inseguranças’.
Fala-me com uma meiguice/rude tão sua ‘O segredo, meu
caro Deus, reside em ignorar os mistérios das coisas.
Em (a)trair e evocar os nossos transes. Em resumo, meu
Deus: bastaria preencher de tempo os nossos ocos. E
nunca me deixe a margem de seu tempo, suplico-lhe’,
finaliza, com um suspeito e repentino brilho nos
olhos.
Passa-se mais tempo de onirismo...
...pois é, durante todo o
sonho eu fingia dores que não tinha, amores e
sentimentos que jamais existiram e exagerava muitas
ilusões do dia seguinte...
Meu Deus, ela me diz, eu sempre tento ver a nossa vida
apenas através dos teus olhos, mas infelizmente eu
tento, tento e nunca consigo ver a sua imagem. Tento
mil e uma vezes mas tudo se torna opaco e, curioso,
dentro dos teus olhos, torno-me cega...Será, meu Deus,
que o nosso amor seria inexeqüível? No entanto, quando
fumo os meus cigarros, eu te vejo na fumaça subindo,
ao beber um chope, é você que aparece na espuma, ao
chorar, as vezes, você se esconde nas gotinhas de
minha lágrima, Deus, isto é amor!!
Odeio andar por aí misturando coisas, proclama, quase
rindo de seus chinelos (pois estava a observar o chão,
a observar os seus pés) e em seguida diz-me ‘Desejo
tudo, todas as coisas, mas aos poucos, sem pressa...’,
‘Deus, eu te amo!!!’, grita, quase histérica.”
“De onde eu venho, afinal? Qual a minha origem, o
meu ponto de partida? Pois ao criar-me, criei-me
certamente de algo, de alguma coisa primordial e
básica. Em que tempo então eu existiria, ao criar-me?
O meu tempo ou o dos que me antecederam? O meu espaço,
a minha dimensão ou... Enfim, de que baú ou arca
antiga retirei a substância para a minha criação?”
“...todos dizem ‘ela’ me quer. Será?...”
“Nietzsche só acreditaria num Deus que soubesse
dançar. Mas eu também sei dançar! E eu não creio em
mim! (como também não creio em Nietzsche)”
“Ele retornou. Estivera ‘por aí’, diz, resmungando
(está de mau humor). Sempre elegante, com sua
bengalinha, o lenço no bolso. Não tocou em ‘nosso’
assunto, nada insinuou sobre ‘nós’, nosso ‘caso’
(nosso caso???). Perguntou-me, misterioso, sobre
‘ela’. (quais suas intenções?), onde ‘ela’ estará, o
que faz, onde vive. Envelheceu, reparo. Apresenta
rugas e cabelos brancos (pintura?). Está mais sério,
mais sisudo, aparenta mais responsabilidade
(ilusória?). Indagou-me, quase insinuando, tatibitate,
se eu realmente gosto d’ela’. Disse-lhe a verdade. A
minha verdade (pois eu, (in)felizmente a amo).
Despachei-o, alegando ‘compromissos inadiáveis’. Que
triângulo: dois deuses e uma mulher! Que loucura!!”
“Foi no carnaval, ‘ela’ me disse ‘tire a máscara.
Quero te ver, tocar em seu rosto, mexer em seus
cabelos, quero me ver nos seus olhos, beber seu suor,
chupar sua alegria’.
- Assim termina o encanto e você não me emprestaria o
rosto que gostaria que eu tivesse. Além do mais nunca
seria um rosto de alegria.
Daí ‘ela’ chorou no terceiro dia de
carnaval (...logo depois veio o tempo que assanhou o
seu cabelo e depois nos roubou uma paz que nós não
tínhamos).”
“Chamou-me a um canto, misteriosa:
- Tenho uma filha
- Dizem que eu também tenho um filho, brinquei
- Sério
Pensei. Olhei-a de viés. Vinte aninhos, se tanto.
Corpo de menina.
- Mora com a tia...
Olhou-me como a pedir, a implorar ajuda.
Disfarcei o meu sem jeito e fui cuidar de minhas
‘coisas’ (amanhã eu penso n’ela’ e em sua filha.
Aliás, pode um Deus adotar garotas?)”.
“...pois é, é uma interessante (e um pouco
desagradável) sensação de ‘déjà vu’, algo como se eu
em algum (longínquo?) passado, eu já houvesse me
encontrado e conhecido, entabulado intermináveis papos
comigo mesmo e, no final, brigado irremediavelmente
comigo. Despeço-me enato com um gostinho amargo na
boca, mescla de fel e uma estranha (e deliciosa)
lembrança de rapadura. Despeço-me tristemente, com um
discurso severo e áspero, decidido a nunca mais
ver-me.
Pois é, é um fato, nunca gostei-me, nunca simpatizei
comigo mesmo (sempre tive minhas ressalvas e discretas
restrições. Embora, diga-se, conservo algumas poucas e
agradáveis experiências e ‘aventuras’ no convívio e
conluio com a natureza, o ‘mato’, o ‘selvagem’, o
‘belo’, o ‘inóspito’ e...comigo). discordava-me
discretamente de minha existência, é um fato.
Convenci-me um dia de que eu não poderia ser
factível, eu não poderia – melhor: eu não deveria –
existir ou sequer cogitar, imaginar (sonhar) essa
possibilidade. Descarto-me, portanto.
Na realidade falta-me algo, alguma coisa, talvez
apenas um detalhe, uma pequena – ou grande? – minúcia
para completar-me, tornar-me factível e palatável a
mim mesmo. Não, eu não busco, como talvez aparente, a
simples e frugal perfeição, o topo do mundo: eu sou
humilde e ínfimo – eu, (in)felizmente, sei – eu quero
ir apenas um pouco alem do infinito, talvez uns 2
metros e meio. Daí eu paro – devo parar, é a regra -
e olho-me e decido. O quê? Não sei, realmente não
sei.”
“Quer ir embora, perguntei.
Não sei. Você acha melhor eu ir?
Talvez fosse bom.
‘ela’ nesse instante, com o olhar turvo, não
resistiu: uma única e furtiva lagrima. Mas tentou
resistir:
Tem a mala.
Eu levo.
Nesse caso, prefiro ir logo.
Começou a arrumar ‘suas coisas’, blusas, cosméticos,
peças íntimas. ‘Nossas’ cartinhas (ela queria
‘recordar’).
Eu te levo até a porta, disse.
Lá você me arranja uma condução?
Claro.
Nossa despedida há um mês. Parecem milênios. Será que
‘ela’ volta um dia?”
“’Ela’ se foi. Como o poeta cantou um dia, eu também
estou sentado num café e choro.”
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