BOITEMPO ENTREVISTA: JOSÉ SARAMAGO (PARTE 2)
20/04/2011, 15:03
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José Saramago, por Cássio Loredano
Segunda e última parte da entrevista de José Saramago à nossa editora Ivana Jinkings. Leia a primeira parte, publicada na última quarta-feira 13 de abril, clicando aqui.
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Eu fiquei com a impressão, aqui em Portugal, que, para além da simpatia com que as pessoas tratam os brasileiros, existe um sentimento quase paternal. Assim meio como quem se sente culpado por ter colonizado.
Pois é, existe esse sentimento sim. Mas vou te dizer que eu acho isso péssimo. Porque é reconhecer uma culpa que não temos. E a gente não pode andar a carregar culpas que não são nossas. O diálogo é entre vivos e não entre mortos e mortos. Eu verifico que isso acontece muito, que é uma espécie de má consciência que faz com que nós andemos como que a pedir desculpas.
E há culpas mais recentes?
Sim, é possível até que tenhamos que pedir desculpas, mas das nossas culpas de hoje e não das culpas do século XVI, essas não têm remédio. Não temos de carregar nas costas as culpas de nossos pais e avós.
As pessoas costumam apontar Jangada de pedra e Levantado do chão como seus livros mais políticos. O senhor concorda com isso?
É possível que sejam, sim. Digamos que o Jangada de pedra tenha uma leitura imediata, que é uma leitura política. Não é por acaso que o autor decide tirar a Península Ibérica de onde ela está e levá-la para outro lado. Portanto, é um livro que nesse aspecto tem uma leitura política mais imediata. O Levantado do chão também, pelo próprio tema, em que é perfeitamente explícita a relação do senhor e do servo, de explorador e explorado. Mas eu creio que de todos os meus livros se pode fazer uma leitura política, ainda que não seja esse o objetivo de nenhum deles. E que, sendo eu um homem política e ideologicamente muito definido, seria impossível que as minhas ideias ou as minhas preocupações não passassem para aquilo que eu faço, mesmo que o tema não seja obviamente político.
O senhor se sente muito pressionado por essa definição ideológica? É difícil fugir da propaganda fácil, do realismo socialista?
Não, no plano estético o meu comportamento de escritor não se subordinou nunca a preceitos, a regras de escola. Diz-se, por exemplo, que o tema de Levantado do chão faz dele um livro próximo do chamado realismo socialista, mas a verdade também é que o tratamento do tema não tem nada a ver com isso.
Ele é o único dos seus livros que se aproxima do realismo socialista, não é?
Sim, se há algum, é só esse. Quanto à outra pergunta, nunca confundi minha postura ideológica com qualquer obrigação de escrever de acordo com um modelo, com uma regra. Não aceito nem os dez mandamentos da Igreja Católica nem os dez mandamentos, se os houvesse, que me viessem do Partido. Eu não conheço no meu partido – que eu respeito, e se não o respeitasse eu não estaria lá – qualquer autoridade, qualquer competência no domínio literário ou estético. Não reconheço, ainda que isso possa insultar alguns dos meus companheiros, dos meus camaradas.
Quem são os contemporâneos brasileiros que tem lido, os que gosta mais?
Não ando muito a par do que se tem feito ultimamente, mas gosto de muitos escritores brasileiros. Gosta-se mais de uns por uma coisa, gosta-se mais de outros por outra coisa, enfim, agora mesmo acabei de ler o Romance negro, do Rubem Fonseca, e achei alguns contos magníficos. Posso também falar da Lygia Fagundes Telles, do Ignácio de Loyola, da Nélida Piñon. Li recentemente o Estorvo, do Chico Buarque, achei-o muito bem escrito, de uma invenção notável.
E entre os seus, existe um preferido?
Não sei, é difícil dizer. Eu tenho um fraco pelo Ano da morte. Não sei por que razão; se me perguntarem, não sou capaz de dizer. Mas também é verdade que tenho uma ligação muito forte com o História do cerco de Lisboa e, enfim, com este último [O Evangelho segundo Jesus Cristo] também.
O personagem central do História do cerco de Lisboa é um revisor que comete um terrível erro. Alguma vingança pessoal?
Não, não [risos], até que não. Eu tenho uma revisora magnífica, que nunca me fez uma maldade dessas e, portanto, não tenho qualquer razão de queixa. Pelo contrário, nesse caso o revisor é elemento positivo porque sendo o revisor por definição o conservador do texto; este, ao contrário, é subversível, altera o texto e, portanto, altera tudo quanto vem depois, a história de Portugal.
Com essa crise toda do Leste, com a queda do chamado socialismo real, como anda sua convicção de comunista?
A minha convicção se mantém inalterável. Estamos diante de um desastre, que alguns de nós não vimos a tempo, não compreendemos a tempo e, sobretudo, não criticamos a tempo. Mas disso tudo penso ter tirado algumas conclusões; e uma delas, a conclusão central, aquela que do meu ponto de vista é a mais importante, é que não é possível construir o socialismo sem uma mentalidade socialista. E hoje está aí, diante dos olhos: olhamos para os antigos países socialistas e verificamos que do ponto de vista cívico, do ponto de vista moral, da ética, da convivência dos cidadãos uns com os outros, o socialismo não modificou em nada a mentalidade das pessoas, não as orientou.
Mas também não é verdade que, para haver uma mentalidade socialista, é preciso que existam condições objetivas, uma vivência socialista?
Sim, é certo. Sem as condições materiais, de educação, que levarão à criação da mentalidade socialista. Mas se nós colocarmos a situação dessa maneira, encontraremo-nos num problema sem solução. Se dizemos que, por um lado, não é possível construir o socialismo sem uma mentalidade socialista e, por outro lado, dizemos que para que exista uma mentalidade socialista é preciso o socialismo, então ficamos paralisados como um burro entre dois fardos de palha, um burro com fome que fica paralisado porque não sabe se há de comer do fardo de palha desse lado ou do fardo de palha do outro lado. Na minha opinião, é preciso que isso a que eu chamo de mentalidade socialista preexista. Houve um tempo em que nós pensávamos que essa capacidade de apreensão dos fenômenos do mundo, da sociedade, nos levaria a nossa mentalidade. Nós colocávamos tudo isso na classe operária, mas hoje penso que deve haver uma reflexão mais abrangente.
Dos partidos comunistas?
Mas sem converter os PCsem outra coisa. Um PCé um PC e, se não é isso, deixa de ser isso, passa a ser outra coisa, como no caso da Itália, em que não se sabe o que é aquilo em que se transformou o PCI. O que eu acho é que a criação de uma mentalidade socialista é de fato indispensável para que não se repitam os erros, as falhas, os crimes, os desastres que nós tivemos de assistir ao longo desses setenta anos. Tudo por uma posição demasiado idealista – provavelmente é –, mas a verdade é que, se não existir essa mentalidade, nunca teremos o socialismo.
Existe algum movimento de intelectuais portugueses de solidariedade a Cuba?
Não. Cuba, neste momento, não se fala dela. São pouquíssimas as pessoas que se interessam por Cuba, são raríssimas as que saemem sua defesa. Nofundo é assim: quando as revoluções estão no auge os intelectuais aderem muito, juntam-se muito. Aqui, nos anos da Revolução – e até antes dela, nos tempos do fascismo –, Cuba para os intelectuais era uma espécie de farol. Agora já toda a gente se cansou e, no fundo, julgo que estão todos à espera da sua liquidação.
Mas o senhor não acha que neste momento é vital o apoio a Cuba, independentemente até de qualquer crítica que possa ser feita ao governo de Fidel? O que está em jogo não é a dignidade do socialismo?
Sim, sem dúvida. Romper o cerco internacional que se está a fazer a Cuba é inadiável. Há uma hipocrisia mundial no que se refere a Cuba que é de fato vergonhosa, mas pelo menos aqui não há maneira de romper. Mas é evidente, alguma coisa precisa ser feita, e logo.
Em quase toda a sua obra é possível encontrar uma referência, uma opinião sobre a Igreja e o poder da Igreja. Por que isso, se o senhor é declaradamente ateu?
Essa preocupação com a Igreja como instituição de poder sempre esteve presente em mim, mesmo sendo eu, como de fato sou, ateu. O fato é que a Igreja nos governa muito mais do que aquilo que imaginamos no nosso dia a dia. Então, digamos que tudo aquilo que era tratado de uma maneira avulsa nos meus livros anteriores veio encontrar-se em O Evangelho segundo Jesus Cristo de uma forma mais radical, e o tema central é também o mais radical. Mas não porque eu tivesse a intenção antes de escrever o livro. Ele nasceu de uma ideia súbita, em maio de 1987, que podia não ter sequência, mas que foi pouco a pouco sendo elaborada.
Jesus é retratado como um ser oprimido e, em contrapartida, o Deus de O Evangelho é um Deus excessivamente autoritário…
Eu não acho que ele seja excessivamente autoritário. Quando certos teólogos escrevem artigos nos jornais – também eles muitas vezes ofensivos e insultuosos –, um dos argumentos é o de que Deus não é isso. Bem, independentemente da pergunta que eu inevitavelmente faço sobre o que é realmente Deus para essas pessoas ou que Deus é esse de quem as pessoas julgam poder falar, há uma questão que nos separa. O Deus de que eu trato no livro é o Deus do Velho Testamento, e o Deus do Velho Testamento em si mesmo é autoritário, é rancoroso, é vingativo. Basta ler a Bíblia com atenção suficiente para saber que o Deus dos judeus, o Deus do Velho Testamento, é o mesmo de quem eu falo.
Deus, no livro, representa o poder autoritário?
Sim, mesmo que Ele não represente a opressão, porque pode não ter sido sempre opressor, ele representa, insofismavelmente, o poder. E um poder discricionário. Um poder que, sendo divino, é absoluto. Olha, quando as pessoas dizem hoje que Deus não é aquilo de que eu falo, esquecem que o que aconteceu a Deus ao longo desses dois mil anos é que Ele foi se transformando para se parecer com Jesus. Quer dizer, não há nenhuma semelhança entre a ideia de Deus no ano de 1992 e a ideia de Deus que tinham Jesus e seus contemporâneos. Então, tudo quanto se expressou em toda a mudança, a transformação lenta desse para o Deus do perdão e do amor, no fundo é para fazer parecer o Pai ao Filho. E eu não tenho nem que provar a existência de Deus nem a sua inexistência.
Então por que o senhor precisou do elemento divino? O livro mostra todo um lado em que Jesus parece mais humano e, no entanto…
Mas é que surge aí uma questão que do meu ponto de vista é central. Jeová é o Rei dos judeus, apenas. É o criador do universo, mas é um criador um pouco estranho, porque escolheu para seu povo apenas aquele, os judeus. E na minha ficção o que acontece é isto: Deus está cansado de pagar aqui todo um olhar irônico, para não dizer sarcástico, sobre todas essas coisas, está cansado de ser apenas o Deus de um povo e quer ser um Deus universal, católico, e, para isso, como bom político que é…
Ele era um bom político, mesmo sendo autoritário?
O que eu quero dizer é que, tendo conservado sua relação com o povo judeu, por outro lado esse mesmo Deus – supondo que estamos a falar de qualquer coisa real – conseguiu efetivamente (não direi tornar-se católico, porque o catolicismo também não cobre todo o mundo) alargar aquilo que nós costumamos chamar de sua “área de influência”, que estava limitada a Israel, à Palestina, e que evidentemente hoje cobre uma grande parte do mundo. E, portanto, é esse o sentido crítico de uma operação política que leva a encontrar uma vítima, a encontrar um mártir, para poder sobre o sangue, sobre a vida dessa vítima, construir o edifício de poder que é a Igreja Católica. Agora, é claro que os católicos não gostam disso, eu já sei. A Igreja, quer aqui, quer no Brasil, não escuta nada, é incapaz de pensar nas coisas sem insultar. Mas, enfim, eu já esperava por isso.
Na edição brasileira do livro está escrito que “A pedido do autor mantém-se a ortografia vigente em Portugal”. Por que razão? O senhor acha que a obra perderia qualidade com a adaptação?
Não, eu não acho que perderia. Mas acho que a situação ideal na comunicação entre irmãos portugueses e brasileiros seria a comunicação em que nenhum de nós tivesse de modificar fosse o que fosse na sua maneira de falar ou de escrever, na construção sintática, na norma gráfica, que pudéssemos continuar fazendo aquilo que fazemos e sendo compreendidos sem dificuldade de um lado e de outro. Considero absurdo obrigar num país ou noutro que edições do outro país se sujeitem às normas do país onde o livro vai ser editado. Para mim, quero ler um livro brasileiro tal qual ele foi escrito e quero que os brasileiros leiam meus livros tal como os escrevi.
Mas o senhor não acha que isso pode dificultar a leitura para algumas pessoas? Afinal existem muitos termos de uso diferente na língua.
A língua portuguesa enriquece-se com os termos diferentes de um país e de outro e vão entrar nessa arena linguística – ou melhor, já estão, mas vão entrar agora com muito mais presença – os cinco países, antigas colônias portuguesas, onde o português vai seguir seu próprio caminho e, portanto, vai ser uma língua portuguesa cheia de diferenças de país para país, e o enriquecimento dela não está na imposição de uma norma – fosse ela do Brasil, nossa ou de quem quer que seja –, mas justamente na contradição de que cada país vai levar o corpo comum da língua, que admite ou tem de admitir tudo. E nossa riqueza lingüística de leitores será tanto maior quanto conhecidas as diferenças do português falado nesses sete países. Não podemos ir para uma solução de comodidade, que seria reduzir todas as diferenças de seis países à norma de um. Porque isso é empobrecer a própria língua. Se amanhã um acordo ortográfico se estabelecer – melhor do que aquele que andou a ser discutido, debatido, quase uma espécie de guerra santa –, que possa merecer a aprovação de todos esses países, então aí estou de acordo em que o meu livro se vá sujeitar a essa norma, que será comum de todos. Enquanto isso não acontecer, eu quero ler em Portugal livros de autores brasileiros e reconhecer naquela língua a minha, na forma brasileira. Enriqueço-me com isso, aprendo mais do que sabia antes.
O senhor acha então que a nossa questão é muito diferente da colocada pelos movimentos autonomistas da Espanha, por exemplo, que hoje se voltam contra os acordos feitos para a unificação da língua? Os bascos, os galegos, os catalães querem o direito de falar sua própria língua.
Mas eles têm cada um uma língua diferente. No nosso caso não, e para além das histórias contadas, do estilo e tudo o mais de cada país, há de se mostrar no modo de escrever essa mesma diferença. O que eu peço aos meus leitores brasileiros é que recebam o livro como é e que, se tiverem de fazer um esforço, pois que façam.
Qual será seu próximo livro?
Estou a escrever o livreto de uma ópera que será apresentada em outubro de 1993, numa cidade alemã chamada Münster.
É uma obra encomendada?
Sim, pelo mesmo grupo que criou em Milão, há dois anos, e aqui em Lisboa, no ano passado, a ópera Blimunda, baseada no Memorial do convento.
E essa próxima, como se chama?
Não tem título ainda. Mas o tema é religioso – não fui eu que escolhi…
Desse jeito o senhor vai acabar virando especialista em temas religiosos…
É… [risos] Eu não ando assim tão preocupado com a religião, mas dá uma ideia de que estou a me tornar especialista nisso. Essa história se passa no século XVI, no movimento de Lutero, e depois as várias seitas que surgiram no interior do luteranismo, do protestantismo, e uma muito especialmente, que teve uma importância muito grande no norte da Alemanha e na Holanda e que, neste caso, nos anos de 1534 e 1535, foi um verdadeiro drama, que acabou de fato numa tragédia e numa carnificina, que foi o movimento dos anabatistas. É sobre isso que trata o livro.
E para o próximo romance, já existe um projeto?
Tenho algumas ideias, mas, enquanto eu não acabar esse livreto, prefiro não falar disso.
* Publicado originalmente na Margem Esquerda nº 15 (2010).
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