Consumo Consciente, um Caso de Amor Platônico
Para melhor entendimento, recomenda-se a leitura prévia do post anterior:
“Muito Prazer, Caro Cidadão!…ou Caro Consumidor!???”
Eram cinco minutos para as 3 horas da tarde, Fernanda e Homero haviam chegado ao hotel pouco antes do horário combinado. Na pérgula à beira da piscina já lá estava Luciane Lucas sentada a uma mesinha redonda daquelas de ferro batido esmaltado de branco e com tampo de vidro, folheando um livreto. Quando se apercebeu da presença deles, ergueu os olhos com surpresa, deu umas piscadinhas de ajuste de foco e exclamou interrogativamente um ‘já’. Sorrindo, os dois se aproximaram e sentaram-se ao redor e, sem conter-se, foram logo transmitindo o espanto da experiência recém-vivida: “Estivemos numa capela toda revestida de ossos humanos por dentro, a Capela dos Ossos, conhece? Um assombro!”, cada qual foi compondo as partes da frase acima, que saiu mais ou menos do jeito que ali está. “Curioso!”, logo observou Luciane, “estava agorinha mesmo com este guia turístico de Évora aberto na página da igreja de São Francisco onde se menciona essa capela. Me despertou interesse em visitar se bem que… hmmm… parece um pouco macabro, não?”. Homero na seqüência emendou: “Sem dúvida, choca um tanto mas faz também refletir muito. O que entretanto justo agora me espanta é que quando entramos lá no recinto me veio a sensação de sincronicidade, de sincronicidade com o que fui conversando com a Fê até o local. Nossa conversa girou em torno da simplicidade voluntária como um antídoto ao consumismo e cheguei até a propor prá Fê trabalharmos na volta o binômio ‘simplicidade e consciência’, a simplicidade voluntária associada ao consumo consciente. E agora de novo a sincronicidade se apresenta: você com a página do local aberta e nós falando da capela justo nesse momento. As coisas, parece, estão encadeadas…”. No seu estilo pragmático, Fernanda foi logo cortando as divagações e propondo: “É, realmente há coisas que intrigam… Vamos então iniciar nosso papo, gente?”.
Por oportuna a intervenção, Luciane e Homero se voltaram para Fernanda com discreto aceno de cabeça significando um ‘vamos lá’. Desta vez não havia comidinhas nem bebidinhas, o conversatório seguiria sem molhados e secos, apenas com os reflexos do sol cadente nas águas ondulantes da piscina emitindo intermitentes flashes sobre o trio. Fernanda se aprumou apontando para si mesma e, por gestos trocados entre os três, entendeu-se que ela abriria as falas, motivo pelo qual de pronto acionou o inseparável gravador digital no modo record.
“Já cheguei com isto meio que organizado na cabeça, vamos ver como é que sai”, principiou. “Volto a Foucault e à sua idéia de microfísica do poder para fazer uma pergunta, ao final. Foucault reiterou sempre, em seus escritos e entrevistas, que é necessário reformular a idéia de poder para realmente pensar criticamente no tema. Essa reformulação começaria por não ver o poder como uma superestrutura em que se opõem dominantes e dominados e na qual uma ideologia se impõe por uma vontade dos dominantes sobre os dominados.” Parada técnica para checar com o olhar atenções e entendimento; satisfeita, avançou: “O poder, nas palavras de Foucault, se exerceria no nosso cotidiano, também por nossas ações. Somos parte dessa mecânica do poder, dessa malha vetorial que, para aterrissar no nosso foco, se faz ver no fenômeno do consumo tal como se configura em nossos tempos. Fazemos parte, então, de acordo com essa visão, de todo o processo que você descreveu hoje de manhã, Luciane, em que o consumo passa a ser atributo identitário. Não estamos, assim, apenas passivamente respondendo a esta máquina que nos submeteria sem trégua e implacavelmente, somos cúmplices… Daí vem a pergunta: como fazer valer o consumo consciente neste cenário de consumo desenfreado, ‘inconsciente’?”. Finda a fala, relaxou o corpo tensionado na busca do domínio do discurso e sorriu levemente.
Estimulado pela indagação de Fernanda e dirigindo-se a Luciane, Homero buscou conectar pontos: “Isto me reforça o que você já me disse en passant anteriormente: o consumo consciente é uma ficção porque existe uma cumplicidade umbilical entre o consumidor e o produtor, e não importa de onde vem o produto, se vem de desmatamento, se vem de trabalho escravo: se alguém está querendo um produto, vai comprar, encontrar um racionalização pra comprar, certo? Vamos então apear do pódio o consumo consciente, por ser uma ficção duvidosa?”
“Sim, concordo com você, mas em termos”, assentiu Luciane, ocupando o centro da cena. “Ainda que respeite quem faz seu esforço diário para politizar o consumo como prática social, o conceito ostenta, é indiscutível, perigosa fragilidade, a meu ver. Primeiro, porque me parece que estamos banalizando o sentido de consciência. Segundo, por ser um discurso de que as empresas se apropriaram para responsabilizar o indivíduo por algo que, não raro, o ultrapassa. Responsabilizar o indivíduo é típico das engrenagens de poder da sociedade de controle, conforme nos advertia o filósofo contemporâneo Gilles Deleuze. E enquanto as organizações pregam o consumo consciente – ou se apropriam deste discurso para ganharem pontos junto à Opinião Pública – o consumo produtivo, que está por trás das estratégias de alavancagem do consumo, vai se tornando misteriosamente invisível. Não ignoro que conquistas tenham acontecido desde o aparecimento do conceito. Mas à medida que a coisa avança e a idéia do ‘você faz a diferença’ toma outras conotações, banaliza-se a idéia da consciência e extrai-se o conteúdo político possível das ações de consumo. Neste sentido, o consumo consciente, pra mim, tornou-se, infelizmente, um discurso de mascaramento das verdadeiras externalidades produtivas inerentes aos mercados.”
“Quer dizer, é um interesse das organizações induzir que o consumo consciente salvará nosso mundo: ‘compre o nosso produto’… É mais um argumento de venda?”
“Não, Merix, se fosse um argumento de vendas apenas, seria mais um dos elementos na estratégia de marketing. É pior do que isso, porque o conceito, da forma como tem sido empregado, gera importantes distorções. Por exemplo, enquanto pessoas fazem apagão voluntário contra o aquecimento global, boa parte delas desconhece que alguma das empresas que se dizem sustentáveis são exatamente as maiores consumidoras privadas de energia; e então? Outro ponto a considerar é que o consumo consciente mascara algumas particularidades do consumo como fenômeno social. Faz pensar, por exemplo, que o consumo seja um ato individual , quando não é. O consumo é, por natureza, um ato coletivo”.
Buscando confirmar seu entendimento, Fernanda arriscou: “Então, essa estratégia de controle nos deixa em prontidão para agir ‘em prol do meio ambiente’ enquanto as empresas seguem dilapidando o próprio… É isso?”. Assentindo com um breve gesto e aproveitando o vácuo da pergunta, Homero emendou, para Luciane: “Você está falando das empresas como um todo?”. Luciane em cima esclareceu: “Me refiro ao mercado…”, provocando o repto de Homero: “…esta abstração difusa chamada ‘O Mercado’?”. Pronta réplica: “Sim, da mesma forma que há uma abstração difusa chamada Sociedade”.
E seguiu Luciane, alternado com Homero: “O mercado diz que a sociedade deve se unir, que os indivíduos devem ser conscientes e se unir para reduzir seus níveis de consumo; entretanto, o consumo produtivo destas mesmas empresas desaparece como debate, o que é uma coisa no mínimo preocupante…”. Homero: “…porque abrir o jogo seria um tiro no pé. Daí a dubiedade da proposta que fazem, como a vejo…”. Luciane: “Esta culpabilização do indivíduo aparece no discurso das organizações em relação ao consumo e nisto se inclui uma orientação, porque são as empresas que orientam os indivíduos sobre como ele deve consumir para consumir melhor e de forma consciente. Perceba bem o ardil que se forma aí: são as empresas que dizem ‘você pode consumir menos luz… menos isso, melhor aquilo…’”. Homero: “…desde que você não afete meu lucro!”
Indicador pedindo vez no bate-rebate dos dois, entra Fernanda: “Só um pequeno aparte: me parece que a idéia do movimento pró consumo consciente é justamente incitar nos consumidores um certo senso crítico em relação ao consumo, para que percebam que são um elo importante na cadeia de produção e que, se houver menos consumo ou um consumo mais criterioso, a produção terá que se adequar a outras demandas. Podemos até mesmo relacionar a noção de que somos um elo nesta cadeia, à noção de um poder disperso em que não há opressores e oprimidos de que fala Foucault… ou seja: se somos parte da malha em que se configura o jogo de poderes, no processo de produção-consumo-degradação nos caberia de fato uma parte da responsabilidade nas externalidades dele decorrentes. Não sei se é necessário”, e Fernanda aqui realçou o verbo em leve tom de reprovação, “…destituir o consumo consciente…”. Avaliou o efeito do que dissera e prosseguiu, segura: “O importante é estar de olhos abertos para a maneira como as empresas se apropriam desse discurso que é contestatório. Isso porque, se vivemos em uma sociedade de controle e não de disciplina, e se as estratégias através das quais se estabelecem relações de poder são dispersas, dissimuladas, invisíveis, a própria ideia de fazer do ato consumo um exercício de cidadania e de crítica termina por ser uma outra tática, por parte das empresas, para prolongar certas invisibilidades…”.
“Sim , sim!”, valida Luciane, deslanchando: “E o que acontece de mais complicado nisso – e é por isso que a questão da sustentabilidade precisa ser revista – é que quanto mais eu digo que você deve observar o seu consumo como indivíduo, quanto mais eu coloco o holofote em cima de você, mais se reforça a invisibilidade de uma coisa chamada consumo produtivo, que é o consumo dos recursos necessários à produção. Eu não estou falando do consumo de que todo mundo fala, do consumo que é objeto de estudo de antropólogos, sociólogos, etc., que é o consumo dos indivíduos…”. Encetando um segundo bate-rebate, inseriu Homero: “…que é o consumo neste caso dos chamados meios últimos, para pegar o Espectro de Meios e Fins, do Herman Daly. Os Meios Últimos são constituídos por tudo o que integra o capital natural.” Luciane: “Sim, é certo! Mas o que estou dizendo é que estamos falando aí de um consumo de que já falava Marx – e que tem ficado absolutamente invisível em todos os trabalhos em que se trata do consumo –, que é o consumo produtivo.” Homero: “…como se a matéria viesse do nada…” Luciane: “Como se a matéria viesse do nada! Então todo mundo está discutindo aonde é que você joga fora o seu celular ou o que seja, qual a destinação que você dá ao objeto que você comprou, mas ninguém discute qual é a origem, a destinação e todo o circuito de produção, de exploração, a divisão internacional do trabalho, todas as externalidades… ninguém discute as externalidades do consumo produtivo. E as externalidades são aquilo que fica sob o tapete, embaixo da mesa.” Homero: “E produtivo aí, só pra esclarecer, não é produtivo no sentido de eficiente… produtivo significa então relativo à atividade de produção, não é produtivo como oposto a improdutivo…”. Luciane: “Sim, não é! Mas pra fechar o raciocínio: como podemos falar em consumo consciente e esperar que cada qual faça sua contabilidade dos custos e das externalidades que ele como indivíduo produz, quando há uma externalidade coletiva gigantesca por trás do consumo produtivo que ninguém discute?”.
Solicitado discretamente por Fernanda, o garçom sempre à espreita veio trazendo uma garrafa de água mineral na opção que em terras lusas se denomina “fresca” para dizê-la gelada – em contraposição à “natural”, sem gelo –, com copos para atender a todos, que dela se serviram numa paradinha providencial para umedecer as goelas. A conversa correu sério risco de parar por aí ou ser novamente transferida, mercê da letargia que a hidratação insinuou, mas Fernanda, escudeira vigilante, se incumbiu de desclicar o botão pause, pondo-se em posição de tiro verbal, assim impedindo a derivação inevitável para o trato de trivialidades que rondavam maliciosas. Eis o que disse, retomando as falas.
“Já que graças à água nos reanimamos, acabou isso que me fez remontar a uma palestra a que assisti sobre a questão da água. O palestrante, especialista no assunto, num certo momento disse que o impacto de fecharmos a torneira enquanto escovamos os dentes ou arrumar as torneiras que vazam para economizar água é absolutamente mínimo em comparação ao dano que grandes corporações – sejam elas privadas ou estatais – infringem ao sistema hídrico com a poluição decorrente de suas atividades, por exemplo. Ou seja, ficamos com a idéia de que estamos realmente ‘fazendo algo’ – ou nos culpabilizamos por não fazê-lo – enquanto os danos de grande escala continuam acontecendo, sem nenhuma publicidade… Claro que isso não invalida essas nossas pequenas ações, que têm sobretudo um valor educativo, mas supervalorizá-las não melhora a situação atual com a intensidade necessária. Parece portanto que uma maneira de realmente ‘botar o dedo na ferida’ e, talvez, mexer um pouco nessa mecânica do poder que se dá através da dinâmica do consumo, seria atentar mais para o consumo produtivo, trazer essa dimensão à tona para discutir, para exigir mais informações… Mas gostaria de trazer outro assunto para a discussão, um assunto que você, Luciane, citou antes e que queria retomar: a questão da mais-valia estética do signo…”
Homero se entusiasmou: “Fê, você trouxe de volta um aspecto fulcral do que foi abordado hoje cedo. Sim, a questão da marca, Lu! você poderia retomar… A questão da mais-valia estética do signo, na expressão de Baudrillard…”
“Está bem. Vamos à história da marca… Por que eu acho importante a gente observar isso? Como as coisas de repente ganham um valor? Como o sistema capitalista se apropria das coisas, do significado possível que elas venham a ter, e atribui a elas, às vezes, sentidos que elas nem tinham no seu início? Por exemplo, um casaco de pele, um casaco de couro, já significou um elemento de transgressão. Hoje não é mais… Um piercing quando surgiu era uma marcação no corpo pra dizer como esse corpo reclamava a necessidade de ser diferente, de comunicar alguma coisa que não estava no comum e no corrente do coletivo. O piercing era uma marcação no corpo, a tatuagem era uma marcação no corpo. Hoje, qualquer ‘patricinha’ pode ter um piercing. E de ouro!!! O que é uma contradição – um piercing de ouro numa ‘patricinha’ é uma contradição do próprio sentido do piercing.”
Homero pôs tempero no cozido: “Quer dizer – era uma contestação alternativa e não do mainstream…”
“Ou seja: o sistema capitalista rapidamente absorve esse caráter alternativo e transforma em mainstream. E isso acontece com ‘n’ coisas… por exemplo, com o açaí. O açaí era um produto do Norte do país, de baixo custo, que as pessoas comiam ou bebiam como suco ou batida, era utilizado na alimentação do amazônida como algo extremamente popular. Esse açaí passa a ser consumido no Rio de Janeiro e em São Paulo como sinônimo de culto ao corpo, de qualidade de vida…”
Mais tempero de Homero: “…como pertencimento intragrupal e diferenciação extragrupal…”
“Sim, sim! O açaí passa a ser um código, um código de saúde. Portanto, se você não consome açaí, você não é uma pessoa saudável… é um excluído, pois não porta o código. O que a gente observa, ao fim e ao cabo, a respeito das marcas, é que o mundo das marcas vai se apropriando destes códigos… O que acontece? Aquele açaí, que era um elemento que pertencia a uma comunidade, extrapola seu território: o mercado se apropria disso e aquilo rapidamente deixa de ser um código específico e passa a ser um código difuso, mas não perde seu caráter sígnico, o que não significa necessariamente que ele mantém as mesmas propriedades. Eu não sei se um Activia de açaí está próximo de um copo de açaí natural, mas fica aquela idéia… É capaz de se tornar saudável com um simples aroma de açaí.” Mais hidratação nas cordas vocais, pai e filha a acompanham aproveitando para ajustar a coluna no espaldar da cadeira, e prossegue Luciane: “Bem, pra fechar, é aí que está a cereja deste bolo, desta discussão sobre o consumo está por ser depositada: refiro-me à discussão sobre o consumo produtivo, sobre aquilo de que não se fala, sobre as externalidades inerentes àquilo de que não se fala… E eu gosto muito de dar o exemplo da linha de produção do iPod, da Apple, que envolve uma série de países asiáticos, mas com predominância da China – a linha central de produção é na China. Como é que pode uma marca americana ser totalmente produzida na China, e não existir uma única linha de produção nos Estados Unidos? E quando você vê os salários pagos aos executivos americanos e aos operários chineses, então você compreende que o modelo de consumo implica não só uma injusta divisão internacional do trabalho, como também o uso do território do Outro como se fosse o seu próprio quintal… Isso nos leva à idéia de que é possível para alguns países falar em produção sem produção… os Estados Unidos não precisam produzir, você não precisa ter a cara da fábrica, mas essa fábrica existe em algum lugar. Nós temos a ficção, a idéia equivocada, de que a fabricação, a produção, desapareceu. Ela não desapareceu! Ela só não está mais visível nas economias mais desenvolvidas… Mas ela está acontecendo em algum lugar e a um preço bastante significativo, que também é invisível, porque também não está aos olhos. Então, o que acontece? Um engenheiro americano ganhando em torno de 85 mil dólares por ano, ao passo que o engenheiro chinês vai ganhar no mesmo período 10 mil dólares O operário americano, que inexiste na linha do iPod, ganharia, anualmente, cerca de US$ 47.640. E o operário americano está mais próximo do engenheiro chinês. Mas o operário chinês, que vai tornar possível a elaboração desse iPod, ganha 1.540 dólares por ano!! Divida por doze 1.540 dólares e você vai ver a miséria esses operários chineses recebem por mês. Esta divisão internacional do trabalho, como prática que se torna comum em tempos de globalização, vai se tornando natural aos nossos olhos, de modo que já não a vemos como o pedágio que na verdade é para garantir o volume e a velocidade das engrenagens do consumo. O barateamento de produção a qualquer custo se banaliza…”
Percebendo uma nova categoria implícita na fala de Luciane, Homero quis assinalar: “E isto é uma degradação do outro capital que é impactado negativamente pela produção, além do capital natural, que é o capital humano-social. Você degrada ambos, o capital natural e o capital humano-social…”
Luciane reconhece a referência: “Sim, tem a ver com aquele modelo que você mencionou numa conversa anterior, dos quatro capitais: de um que a gente não está vendo, o capital natural, que beneficia outro, o capital construído, que a gente está vendo e que consegue lidar muito bem com ele… Então, o que eu quero dizer é que a invisibilidade das externalidades geradas pelo capital construído acontece com o aval do próprio mercado. O mercado sabe o que está se passando mas o indivíduo consumidor não tem a menor noção!”.
Alinhado com a idéia, Homero complementa: “E muitas vezes, de fato, o indivíduo não sabe mesmo, mas mesmo que soubesse continuaria consumindo… você concorda comigo? Ora, é desse consumidor que nós queremos dizer que tem que ser consciente…”.
Emendando, Luciane abre o leque de razões: “Sim, mas de fato esse não consegue ser consciente! Antes de mais nada porque as informações não estão disponíveis e, em segundo lugar, porque ele desconhece essas tais cadeias produtivas e as externalidades a elas inerente. Aqui vale um adendo – na verdade, dois – sobre a sociedade de consumo, que eu diria que é tipicamente de controle. Em primeiro lugar, vivemos em uma sociedade em que o poder não se manifesta exatamente sobre o indivíduo, mas sim sobre o processo de construção da subjetividade. Isto muda muita coisa, porque o indivíduo é instado a pensar que pode ser o que quiser – basta fazer uso da varinha mágica do consumo. Em segundo lugar, instala-se, por conta disso, um contrato de adesão. As pessoas querem consumir, não só porque, como já vimos na conversa de hoje cedo, se relacionam umas com as outras a partir do mundo dos bens, mas também porque acreditam que o consumo possa trazer a elas uma realização pessoal. A consciência só parece possível se esta premissa puder ser mantida… pouca gente admitiria abrir mão da classificação social que o consumo promove. Por que teria o consumidor individual interesse em fazer isso?”.
Estimulado, Homero se anima: “Acho que sei a resposta: não se interessa porque o que ele está querendo é satisfazer a sua necessidade de pertencer e de ser diferente… isso é o que interessa a ele. E esse negócio de geração futura, de altruísmo, de pensar nos netinhos, isso tudo é nebuloso. Concorda comigo? Então terminamos com esta constatação dramática!”
Parecia um fecho esse último vai-e-vem entre Luciane e Homero. Entreolhando-se, deram os três a entender que era momento de cumprir demandas fisiológicas, das quais não convém entrar em detalhes… Gravador no pause, o fato é que pai e filha subiram por alguns minutos aos aposentos enquanto Luciane permanecia no piso térreo, tinha ademais questões da hospedagem a verificar na recepção. No trajeto, Homero observou: “Sinto que há ainda algo que falta ser dito. Na volta, estou com comichões de tentar amarrar a conversa toda de hoje com pontos que abordamos em outras ocasiões. Afinal tudo o que fizemos até hoje em conjunto tem seguido uma certa linha mestra, ainda que um tanto invisível, não acha? E você, tem algo ainda a acrescentar?” Fernanda limitou-se a um gesto com a mão espalmada querendo significar qualquer coisa como “me aguarde” ou “chego lá”. De volta ao cenário anterior, já lá estava Luciane à espera, de novo folheando o guia, sinal do convite ao lazer arrodeando a mesa. Sentados os três, querendo ser polido sem afetação, Homero ensaiou com Luciane: “Já dissemos tudo, será? Eu gostaria de fazer mais algumas considerações, se você estiver ainda com capacidade digestiva para mais uns dois ou três ‘ora pois pois’”… Ambos riram e Luciane enviesou a cabeça convidativa, face ao que Homero principiou a girar o basculante da fala para esvaziar o que ainda se acumulava na caçamba mental, enquanto Fernanda, cuidadosa com os registros, acionava o inseparável aide-memoire digital.
“De tudo que intercambiamos aqui, me surge a necessidade de juntar partes ricas em si e que se valorizarão mais ainda quando entretecidas numa trama sistêmica, incluindo coisas não abordadas diretamente mas que já vimos elaborando ao longo de nossa produção no assunto. Coisas, Lu, que antecedem algumas este nosso encontro, mas que você conhece bem pois estão boa parte nos posts anteriores que publicamos. Lá vou eu!.”, o primeiro despejo do basculante já se esparramara no chão. Sobre ele, o que restava na caçamba foi se amontoando: “O consumo, consciente ou identitário, é refém daquela doxa que assinalamos em nosso jantar – lembra, Fê? – com a bióloga e o geógrafo meses atrás, a doxa do crescimento, um meme que, como todo meme, se auto-replica viralmente. Daí surge que crescer produz um meme subsidiário, o meme do lucro que responde à ansiedade do curto-prazismo, a qual nos compele a trazer para o presente o máximo possível de resultado futuro da atividade econômica, face à incerteza que, no final da ponta, tem a ver com nossa finitude como seres vivos. Finitude da qual temos consciência, fato único entre o universo das espécies vivas… Nesse quadro, duplo motivo tem a economia para induzir ao consumo, para forçar um consumo sempre maior e mais diversificado: assegurar o crescimento econômico e o lucro a ele associado, e mitigar a ansiedade que nossa finitude provoca em nossa mente e coração. O consumo é o anestésico que nos dá a sensação de perenidade transitória – eu sei, um oximoro! –, que mitiga a sensação apavorante de que o deus Morte nos ronda o tempo todo. É o bálsamo com que o deus Mercado nos presenteia, favorecendo biologicamente a liberação de endorfinas que nos inebriam e que acalmam a luta interior entre Chronos, o tempo que urge, e Pluto, que mediante a posse do dinheiro nos empodera como se imortais fôssemos. Tem-nos faltado o norte de um sentido da vida construído na reflexão filosófica e no despertamento de nossas faculdades superiores, que muitos chamam de espiritualidade.”
Há vantagens, que costumam ser pouco valorizadas, em permanecer na posição de observador silente: pode-se ganhar o privilégio da palavra final, após colher no cesto das cogitações tudo o que se disse antes. Ou seja, de exercer a síntese ou, pelo menos, buscar uma convergência entre tudo que foi antes dito, na intenção de construir um sentido unificado e selador. Fernanda esteve atentíssima aos lances finais das trocas entre Luciane e Homero, nessa postura de observar e processar e, valendo-se disso, decidiu pronunciar-se, como sinalizara pouco antes. Segue-se a fala que ofereceu, a qual irrompeu sem mais anúncios.
“Somos educados na lógica do ‘fazer’ para atingir o ‘ter’, o ter que desemboca no consumo. O ‘ser’, afinal, se funde com o ‘ter’ e terminamos melancolicamente numa pérfida filosofia de segunda classe: ‘Consumo, logo existo!’. Ei, gente: ‘consumo consciente’, onde se encaixa isso? Acho que não se encaixa, a não ser como mais um lema que nos encanta mas nada transforma por mera falta de condições sistêmicas. É isso… só isso, acabei!”. E desligou o registrador digital das falas…
Seria desleal afirmar que “quem fala por último, fala melhor”, parodiando o dito famoso sobre o riso. Seria, na verdade, profundamente injusto para com a circulação de idéias lúcidas e instrutivas com que todos, inclusive a própria Fernanda, elegantemente esgrimiram em torno de tema tão controverso e ao mesmo tempo envolvente e fascinante. Mais apropriado seria dizer que ‘quem fala por último, encerra a conversa’ – e foi o que aconteceu, por tácito consenso.
Não satisfeito com a sua longa e inflamada peroração, Homero ainda tentou: “Como costuma dizer o Mário Sérgio Cortella, há que esperançar… uma vez que…”, mas as palavras se desfizeram no vazio, não adianta querer embarcar num trem que já partiu. À vista do inevitável, e sem nenhuma cerimônia, os três passaram ato contínuo a cogitar de passeios e distrações, implícito que ficou que o dever fora honrado e cumprida a proposta tão longamente acalentada e que teve de vencer percalço sobre percalço para se concretizar: Luciane tinha sido ouvida e tudo o que tinham a dizer fora dito.
Iriam no dia seguinte, que agora era hora das conversinhas descompromissadas ainda na beira da piscina – encomendadas ao mesmo garçom da água três margaritas, que ninguém é de ferro nem abstêmio –, fazer os percursos inescapáveis por aquela cidade-cidadela de Évora, Patrimônio Cultural da Humanidade, cujo topônimo provém de Eburianus, divindade dos celtas, povo que, juntamente com os romanos, embora em épocas mui distintas, por ali há milênios deixou marcas… tudo isso conforme capitulado no guia que Luciane de novo folheava. No roteiro que passaram a organizar, constava: 1) contemplar as ruínas romanas do Templo de Diana, 2) entrar e sair pelas cinco portas da muralha da cidade velha, 3) visitar nas cercanias – pai e filha pela terceira vez – o Cromeleque dos Almendres e o Menir da Oliveirinha, famosos megálitos celtas, 4) levar Luciane, quem sabe, à lúgubre capela dos esqueletos e, entre uma coisa e outra, 5) passar em revista, na região, as plantações de sobreiro, árvore cuja casca fornece ao mundo cortiça de primeira para a rolha dos melhores vinhos.
Vinhos? Ah! os do Alentejo estão entre os excelentes de Portugal e a eles, quem resistir pode? Bem, se no resto da curta temporada não desse para consumi-los, metamos lá, conscientemente, pelo menos que se o fizesse com moderação… Fim da história, quem quiser que conte outra!
Luciane Lucas dos Santos é pós-doutora pelo Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra (UC), sob a orientação do Prof. Dr. Boaventura de Sousa Santos. Integrou o Grupo de Economia Solidária (ECOSOL) do Núcleo de Estudos em Cidadania e Políticas Sociais do CES/UC. Concluiu o doutorado em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 2004. Publica suas produções no blog “Serve o Consumo para Pensar?” (http://monoculturadoconsumo.blogspot.com).
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COMENTÁRIOS
Anna Carolina - 13/04/2011 às 03:21
Pessoal, apenas uma crítica construtiva: seria interessante dividir esse tipo de texto "grandinho" em duas ou mais páginas, pois a leitura dessa forma fica cansativa de-mais na tela do pc. No mais, parabéns pela iniciativa e pelo texto! Abracos, Anna Carolina
(Outras Palavras)
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