quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Drummond

Drummond e a política
.
Por Adelto Gonçalves, de Santos, São Paulo




Carlos Drummond de Andrade

I

Que o poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) sempre procurou passar à posteridade a imagem de um intelectual modernista, esforçando-se para apagar o seu passado de engajamento na cena política do país, não é novidade. Mas como usava, ainda que não ostensivamente, as boas relações de que desfrutava com os poderosos especialmente nas décadas de 30 e 40, isso não havia sido bem delineado até agora.

É o que faz o professor Roberto Said em A angústia da ação: poesia e política em Drummond, ao traçar um retrato muito mais nítido, sem retoques, do homem Carlos Drummond de Andrade do que aquele que se tinha até aqui, completando, de certa maneira, a biografia que José Maria Cançado (1952-2006) escreveu, Os sapatos de Orfeu (São Paulo: Página Aberta, 1993; Editora Globo, 2006), aliás, o único estudo do gênero que temos até hoje.

Nesse notável estudo biográfico, Cançado já havia chamado a atenção para o oxímoro “dessemelhante absoluto”, criado pelo próprio poeta, que define a personalidade dúbia e hesitante de Drummond, que parecia não pertencer a nada, mas que, por isso mesmo, mostrava-se “condenado a participar de tudo”. Com base nisso, Said procura desenvolver a ideia borgeana do duplo: assim o poeta e o funcionário público Drummond constituiriam uma dupla personalidade, embora a mão que escrevia um arrojado poema modernista fosse a mesma que preparava discursos para políticos conservadores que de modernos só tinham aquilo mesmo: o discurso.
II

Para o leitor que desconhece a biografia de Drummond, é preciso que se diga que, mesmo em linhas gerais, o que foi a adesão do poeta ao grupo político que chegou ao poder com o golpe civil-militar de 1930, que, até hoje, alguns historiadores distraídos ainda chamam de Revolução de 30. Antes disso, porém, é preciso dizer que esse golpe nada teve de modernizante no sentido de que tenha representado uma revolução para um Brasil arcaico. Pelo contrário. Não passou de rearrumação entre elites carcomidas, pois não há nenhuma prova de que algumas das conquistas trabalhistas que viriam com a Era Vargas não teriam se dado se a velha política do café-com-leite tivesse permanecido no poder por mais uma ou duas décadas.

Quem já leu as crônicas de Lima Barreto (Toda Crônica, v. I (1890-1919), v.II (1919-1922. Rio de Janeiro: Agir, 2004) sabe como eram odiados os cafeicultores paulistas que mandaram e desmandaram durante a República Velha (1889-1930). Lá se vê, por exemplo, um cronista indignado com os “assaltos” que as elites paulistas faziam às burras do erário nacional, a pretexto de levantar subsídios e empréstimos a juros maternais, que quase sempre não pagavam, embora o café fosse considerado a grande riqueza nacional. Que riqueza era essa que necessitava de tanta subvenção?, questionava o cronista, revoltado.

O pretexto para o golpe foi que as eleições de 1930 teriam sido fraudadas, com a escolha do paulista Júlio Prestes (1882-1946) para suceder a Washington Luís (1869-1957). Mas o governo também fazia a mesma acusação aos oposicionistas da Aliança Liberal. E ambos os lados tinham razão. Quem podia fraudava: a contagem dos votos dependia da vontade política do manda-chuva de cada Estado ou região. Depois, em 1932, os oligarcas de São Paulo tentaram dar o contragolpe, a pretexto de defender a reforma eleitoral e a convocação de uma Assembléia Constituinte. Que 77 anos depois o governo de São Paulo ainda convoque a população para comemorar essa derrota é coisa que causa espanto e que só se explica pela necessidade que as elites têm de fabricar heróis.

Mesmo assim, este articulista, particularmente, acredita que, fosse como fosse, o Brasil teria tido um futuro um pouco melhor se a oligarquia paulista tivesse continuado à frente do país. Pelo menos era uma gente, ao menos em público, mais refinada e preocupada em construir um regime democrático, ainda que fosse a democracia dos que vivem no andar de cima.

Sem dúvida, a facção que afastou temporariamente a oligarquia paulista do poder político – mas não do poder econômico – era mais atrasada, de concepções arcaicas. Com Getúlio Vargas (1882-1954), um fazendeiro da fronteira sulina que havia sido ministro da Fazenda do governo deposto, acostumado a cometer toda a sorte de arbitrariedades, foi o Brasil profundo que se instalou no Palácio do Catete e nas demais instâncias do poder, com tudo o que isso representava: mandonismo, ditadura, perseguições, tortura dos adversários políticos.

Mas que isto não sirva para dourar os brasões das elites paulistas: o que unia as facções oligárquicas em luta era a avidez por propinas, lucros exorbitantes e favores do Estado, sem que se incomodassem com o fato de que essa política levava à mendicância as classes subalternas ou as atirava à aventura de uma guerra civil, se isso fosse necessário para defender seus privilégios. Tal como hoje, para essas elites, o poder sempre representou um butim a ser dividido.

E foi a uma dessas facções que Drummond colocou a serviço a sua pena, ajudando-a a alcançar e exercitar o poder, preparando-lhe um discurso modernizante. Estes são os fatos, ainda que os intelectuais procurem explicações mais rebuscadas para o ato. Não foi, portanto, um papel de que alguém, no fim da vida, pudesse se orgulhar. Talvez isso explique por que Drummond sempre procurou escamotear o passado, como se quisesse reescrevê-lo ou torná-lo menos importante. Mas que não foi politicamente discreto esse papel, não foi, ainda que o poeta tivesse uma personalidade tímida.
III

Como se sabe, Drummond era amigo de adolescência de Gustavo Capanema (1900-1985), a quem conheceu em 1916 no colégio. Foi Capanema quem o levou para o funcionalismo público em 1930 e para o Ministério da Educação e Saúde em 1934. Durante anos, Drummond foi chefe de gabinete do ministro Capanema, atuando muito mais na sombra como faz todo aquele que ocupa esse cargo.

Said lembra que Drummond sempre procurou rebater a acusação de que havia trabalhado a serviço de uma ditadura, alegando que não passara de um burocrata. Não é o que os documentos mostram, embora, no fim da vida, procurasse apagar a nódoa, atribuindo a sua participação na ditadura mais aos vínculos afetivos que o ligavam a Capanema.

Um exercício de dialética porque o poeta não seria um homem tão tolo assim que não soubesse o que faziam nos porões do governo a que servia. Até porque ninguém chega a um alto cargo estatal, se não se render às exigências do poder.

A importância da obra de Said está em mostrar que as “fissuras vividas” por Drummond não são externas ao seu texto poético, “mas, ao contrário, condições de possibilidade para a sua realização”. De fato, não existia até aqui uma obra que tivesse investigado tão a fundo os envolvimentos do poeta com a política, atividade que começou ainda em Belo Horizonte na década de 1920, quando foi redator-chefe do Diário de Minas, órgão conservador, que deixou em 1929 para dirigir a campanha da Aliança Liberal no Minas Gerais, jornal oficial do Estado.

Vitorioso o movimento golpista, Drummond tornou-se o assessor mais importante do interventor Gustavo Capanema, até que, em 1934, com a ascensão do amigo a ministro, transferiu-se para o Rio de Janeiro. Como observa Said, no centro político e cultural da Nação, o poeta iniciou uma decisiva etapa em sua vida, consolidando sua carreira no funcionalismo, além de ocupar espaço nos principais jornais da capital da República, especialmente nos Diários Associados, de Assis Chateaubriand (1892-1968), que, por influência do todo-poderoso Capanema, pagavam-lhe pela sua colaboração.

No Ministério da Educação, Drummond permaneceria até 1945, ano em que assumiu, por influência política, obviamente, a Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), órgão pelo qual se aposentou. É de lembrar que, ao final da Segunda Guerra Mundial, Drummond demitiu-se do cargo, afastando-se do governo Vargas, mas sem romper com o amigo Capanema. Foi por essa época, quando havia fortes pressões em favor da redemocratização do país, que teve uma breve e tumultuada passagem pelo jornal A Tribuna, do Rio de Janeiro, órgão do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Como provavelmente logo concluiu que aquilo não iria levar a nada, a não ser a complicações em sua vida pessoal, retornou ao funcionalismo público, ao mesmo Sphan.
IV

Resultado de pesquisa desenvolvida junto à correspondência de Drummond no acervo da Fundação Casa de Rui Barbosa, do Rio de Janeiro, este trabalho acadêmico revela também o extenso papel político exercido pelo funcionário público, estabelecendo sua participação em favores do Estado a boa parcela de escritores e críticos do Modernismo, desde pedidos de emprego até interferência direta em projetos ou questões mais complexas, como a construção do edifício do Ministério da Educação, a cargo de Oscar Niemeyer (1907) e Lúcio Costa (1902-1998), ou na feitura dos painéis internos do mesmo prédio, entregues a Candido Portinari (1903-1962).

Diz Said que, ao longo dos anos de 1930 e 1940, período das cartas pesquisadas, Drummond aparece não só como o poeta de maior prestígio na literatura brasileira, “mas sobretudo como um intelectual influente, que, ao se valer de seus poderes na máquina pública, traçava em torno de si complexas relações de débitos e créditos simbólicos, revertidos, direta ou indiretamente, para o próprio Estado”. E para si mesmo, acrescente-se.

Mesmo assim, o poeta nunca se reconheceu como um intelectual cooptado, como membro de uma intelligentsia nem tampouco como mediador de projetos culturais, diz Said, deixando claro que seus argumentos convenceram até um crítico do quilate de Antonio Candido (1918) que, ao lhe conferir uma posição política progressista, defendeu que a inserção nos quadros públicos estatais não implicaria necessariamente uma submissão ideológica ao regime nem tampouco uma posição política conservadora. Para Candido, como chefe de gabinete do ministro da Educação, Drummond teria vivido a fase mais ativa de sua militância intelectual de poeta comprometido com os ideais de esquerda.

Said cita também Sérgio Miceli, autor de Intelectuais e classe dirigente no Brasil: 1920-1945 (São Paulo: Difel, 1979) e Intelectuais à brasileira (São Paulo: Companhia das Letras, 2001), que procurou desconstruir a aura de transgressão absoluta que foi conferida ao Modernismo, defendendo que o campo literário foi cooptado pelo campo político, o que incluiria, obviamente, Drummond, apesar do esforço dialético de Antonio Candido e do próprio poeta em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo à época da publicação do primeiro livro.

Said, porém, preferiu não se alinhar com nenhuma das duas teses, procurando, isso sim, demonstrar como a trajetória de Drummond assinala os dilemas a que estavam submetidos os escritores de sua geração. O resultado é uma imagem de Drummond um pouco diferente daquela que costuma ter quem apenas se limita ler seus poemas. Nem melhor nem pior, porém, mais humana, ao expor suas fraquezas e contradições.
V

Graduado em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 1996, Roberto Said tem mestrado (2002) e doutorado (2006) cursados no Programa de Pós-Gradução em Estudos Literários da Faculdade de Letras dessa instituição. Realizou estágio de doutorado na Universidade de Buenos Aires (2004). Concluiu recentemente pesquisa de pós-doutorado (2008) no Acervo de Escritores Mineiros (UFMG). Tem experiência na área de Letras, Comunicação e Cultura brasileira, com ênfase em Teoria da Literatura, Literatura Brasileira, História e Memória Cultural, atuando principalmente nos seguintes temas: literatura comparada, modernidade, pós-modernidade, filosofia, nação, biografia, memória cultural, arquivos e acervos literários. Organizou recentemente o livro Margens teóricas: memória e acervos literários (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008).

25/7/2009

Fonte: ViaPolítica/O autor

A ANGÚSTIA DA AÇÃO: POESIA E POLÍTICA EM DRUMMOND, de Roberto Said. Curitiba: Editora da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Belo Horizonte: Editora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), 142 págs. 2005.

E-mails: editora@ufpr.br
editora@ufmg.br

Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage: o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003).

E-mail: adelto@unisanta.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário