Operação esquerda lacaniana
Para o autor, “o proletariado não é a priori um sujeito revolucionário”: pode, sim, transformar-se em sujeito de um antagonismo emancipatório, mas isto “exige a presença da construção política”. A expressão “esquerda lacaniana” poderia fundamentar uma ação cuja ética incorpore as críticas ao marxismo procedentes da teoria de Lacan.
O artigo é de Jorge Alemán e publicado no jornal Página/12, 17-02-2011. O texto foi extraído de uma intervenção sua feita no Congresso “Inconsciente e Filosofia. Uma nova maneira de pensar o político”, Colégio da Espanha em Paris, maio de 2010. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
A perspectiva de uma esquerda lacaniana – desenvolvida no meu livro Para una izquierda lacaniana. Intervenciones y textos (Ed. Grama, 2009) – foi questionada de três maneiras, como se pode ler em blogs e sítios da internet. O primeiro questionamento veio dos próprios lacanianos, que me dizem: como vai haver esquerda lacaniana quando é evidente a vocação cética de Lacan em relação a todo tipo de projeto de emancipação política? Ao longo de seu ensino, Lacan formulou uma série de advertências: a revolução é o retorno do mesmo; a crítica à propriedade, à família e ao trabalho reforçam a propriedade, a família e o trabalho; não há nenhuma civilização que consiga se curar de uma pulsão de morte irredutível; aqueles que sonham com as manhãs que cantam estão preparando as condições para que venha o pior; etc., etc., etc. E a isto se pode acrescentar a vocação solitária do próprio Lacan, essa vocação de homem de exceção, seu desgosto pela multidão, pelo número, e sua distância irônica em relação às construções sociais da esquerda. Assim que estou metido numa confusão por ter realizado esta espécie de oximoro, esta espécie de piada que é a expressão “esquerda lacaniana”.
Mas também vi nos últimos anos que muito destes argumentos lacanianos, destas reticências de Lacan para com as construções da esquerda, se deslizavam ideologicamente para um novo tipo de argumentação do individualismo liberal: uma argumentação mais laica, mais sábia, mais cética, mais cínica. E me parece lamentável entregar o ensino de Lacan às coações do individualismo liberal. Nisto, evidentemente, teve muito peso a herança da que provenho: herança de esquerda à qual me considero fiel, o que não implica reproduzi-la, mas tratar de reinventá-la. Assim que minha primeira questão é fazer valer, para a esquerda, aquelas observações de Lacan, com o propósito de que estas pontuações possam gerar na esquerda uma disponibilidade diferente. Além disso, esclareci aos meus colegas lacanianos que em nenhum momento tratei de formar um grupo referido à esquerda lacaniana, nem escola alguma com esse nome, e que eu mesmo não pertenço à esquerda lacaniana. Tudo o que se move em relação à esquerda lacaniana não se abre a nenhum ponto de identificação. Se há algo que me apaixona na operação esquerda lacaniana é o fato de ser refratária a toda identificação.
O outro ataque que vi na internet vem do campo marxista, enquanto esta colocação objetaria a luta de classes, a função histórica do proletariado, sua constituição como sujeito histórico. Nisto, sim, convém tomar a sério muitas observações de Jacques Lacan. Efetivamente, Lacan tem leituras de Marx onde mostra que o único fato de que a força de trabalho seja comprada e vendida como mercadoria não produz no proletariado – nem de imediato nem de maneira imanente – um sujeito suscetível de se transformar em um protagonista de um processo emancipatório. Uma das leituras que Lacan faz da famosa dialética hegeliana mostra que o escravo também goza.
Mas o que é mais importante, para Lacan, é que não há um fundamento que sirva como base de determinação em uma última instância, não há fundamento saturado conceitualmente: sempre há uma brecha, e isto é muito importante para a esquerda lacaniana; sempre há uma brecha ontológica, uma falha ontológica insuperável, incurável, entre o real e a realidade. Já sabem que, no ensinamento de Lacan, o termo real e o termo realidade não se recobrem. A realidade é uma construção simbólico-imaginária que vela o real, e quando este emerge, o faz sempre como deslocamento, como ruptura, como pesadelo, como angústia, como o ameaçador. Portanto, para Lacan não há nunca uma estrutura que possa ser saturada e totalizada conceitualmente. Toda estrutura é socavada a partir de dentro, interceptada, poderíamos dizer, por um resto que lhe é heterogêneo: por isso Lacan nunca aceitou a ideia marxista de uma estrutura que pudesse determinar em última instância a economia política e, portanto, a realidade do capitalismo.
Então, um primeiro ponto que a esquerda lacaniana deveria ter em conta é essa brecha: não é possível conceber a realidade de uma maneira homogênea. Quando Lacan fala do pré-ontológico da psicanálise, não quer dizer que a psicanálise seja deficitária do ponto de visto ontológico, mas que não há fundamento último que garante a totalidade da realidade; que se trata de uma ontologia esburacada, riscada. Esta brecha entre o real e a realidade é absolutamente insuperável, inclusive para a economia política. Sempre há um resto heterogêneo que a totalidade não pode conceitualizar.
Alguns marxistas me acusaram de que meu projeto de esquerda lacaniana pretenderia cancelar a atividade política do proletariado como sujeito histórico: nos meus textos mostro que, precisamente por essa brecha entre o real e a realidade, o que pode surgir – e sempre de maneira contingente, nunca garantida a priori – é um antagonismo, que não é em absoluto equivalente à luta de classes. O deslocamento entre o real e a realidade pode dar lugar a um antagonismo, mas apenas se este se constrói, se se inventa; nunca vem de maneira imanente, garantido. Também não está garantido que esse antagonismo, no caso de que emirja, tenha per se uma orientação emancipatória. Tudo isso exige a presença do que chamamos do político, a presença da construção política.
No marxismo clássico, a luta de classes constituía um a priori objetivo do proletariado como sujeito revolucionário. É preciso dizer que as revoluções históricas nunca tiveram esse sujeito já constituído: sempre foi preciso inventá-lo, às vezes com resultados não muito desejáveis. Em todo o caso, na formulação que eu fiz sob a rubrica “esquerda lacaniana”, a resposta ao marxismo é afirmativa, que nos interessa o antagonismo. E, me parece, isso se desprende dos ensinamentos de Lacan, que a “diferença absoluta” da qual ele fala não pode nunca estar encoberta pelas diferenças introduzidas pelas hierarquias do mercado. Quero dizer: a exploração da força de trabalho é um insulto à diferença absoluta.
Na sociedade lacaniana pós-capitalista, se a houvesse, que não tem nome nem sequer poderia ser nomeada como socialismo, haveria sempre diferença absoluta e, portanto, haveria neuroses, psicoses, transtornos, doentes, angustiados, suicidas; mas essa diferença encontraria por fim um âmbito de desdobramento que não ficaria colonizado pelas diferenças hierárquicas da ordem burguesa de exploração capitalista. Marcar a distinção entre a diferença absoluta e a ordem hierárquica do sistema capitalista não é a mesma coisa que supor um proletariado que tivesse em si mesmo, como classe, a capacidade para desconectar a maquinaria capitalista.
Lei do coração
Nada havia em Lacan que favorecesse a ideia de uma esquerda. Foi assumindo um legado pessoal como tratei de forçar e violentar as coisas para reunir estes dois termos, “esquerda lacaniana...”, como pontos suspensivos que assinalam o caráter conjetural desta formulação. Lacan citou em diversas ocasiões Hegel sobre a lei do coração e do delírio de presunção. Por trás da referência ao homem do prazer, para quem a ausência de um conceito do universal arruína sua relação com os prazeres e os torna mortíferos – nisto Hegel parece um grande teórico da vida contemplativa –, vem a “lei do coração”, onde se coloca em jogo a dimensão do universal: o coração tira de si mesmo a lei, que sai de sua própria subjetividade para encarnar-se como universal. Poderia ser este o caso do homem de esquerda: alguém que já não aceita a teleologia marxista, que já não aceita as leis da história; alguém que tenha compreendido a fundamentação metafísica da base marxista e a tenha desconstruído e que, já como esquerdista desfundamentado, tenta, a partir de sua própria singularidade, transformar a história e com sua singularidade, com sua lei do coração, fazer a lei.
Tanto Hegel como Lacan explicam que, uma vez que a lei está fora de si mesmo, se torna estranha, hostil. A primeira coisa que essa lei faz é matar seus próprios fundadores, contra-atacar aqueles que a constituíram. Na minha própria análise desta esquerda lacaniana, não pude deixar de atravessar a interrogação sobre se eu mesmo não estava cativado por essa lei do coração; sim, enquanto já não aceito que haja leis objetivas como as que Marx postulava, minha esquerda lacaniana não é capturada pela lei do coração. E Lacan se referiu à lei do coração como “a fórmula geral da loucura”: a questão, então, é como fundar um ato político sem paranoia, como fundar uma relação com uma ordem que não seja paranoica, com uma lei que não esteja capturada pelo que Hegel chamou de delírio de presunção, pela qual, quando a lei que alguém mesmo fundou se torna hostil, é declarada inimiga. Ainda não tenho uma resposta para isto, salvo que para correr o risco da fórmula da loucura, da lei do coração, é preciso apostar em uma experiência política.
A emancipação já não pode vir acompanhada da ideia de que há um poder exterior que nos submete. A emancipação tem a ver sempre com o próprio sujeito e com sua própria relação com o super ego. Como explica muito bem Freud, é preciso buscar as razões pelas quais as civilizações absolutamente injustas perduram muitíssimos anos mais no fantasma “Pegam uma criança”, no fantasma masoquista, do que nos aparelhos ideológicos do Estado ou nos mecanismos das sociedades disciplinares ou de controle. É preciso investigá-lo naquelas que classicamente se chamaram servidões voluntárias, no papel que cumpre o gozo na fixação em determinadas estruturas. Por exemplo, o capitalismo é um movimento que muda o tempo todo, mas que está fixado libidinalmente no relançamento da falta e do excesso. Então não vejo possível não transitar pelo risco da lei do coração, e a única maneira que, penso, pode nos prevenir do contra-ataque inevitável da hostilidade da lei que nós mesmos fundamos é aceitar, assim como Lacan propôs em sua leitura de Antígona de Sófocles, que uma experiência ética sempre requer, pelo menos em sua matriz, responder a uma instância que nos demanda algo excessivo; algo que nos supera.
Miséria do excesso
Convém recordar uma tese de Lacan, em relação com o que ele denominou de discurso capitalista, que poderíamos resumir da seguinte maneira: a essência da economia não é econômica. Lacan estabelece uma homologia entre a mais-valia marxista e o que ele chama de mais-de-gozar. Há algo que poderia ilustrar esta homologia. Quando se vai hoje às favelas da Argentina, do Rio de Janeiro ou às cidades perdidas do México, se descobre que a pobreza já não é um menos, já não é uma carência: a pobreza está dominada pelo excesso. Na pobreza, ou melhor, na miséria, há drogas, armas, relógios falsos, objetos. Há todo um regime de circulação de objetos. Houve uma mutação e, da definição de pobreza como não satisfação das necessidades materiais, se passou a uma definição, se vocês me permitem, lacaniana da pobreza, que poderíamos formular nestes termos: a miséria é estar a sós com o mais-de-gozo sem nenhum recurso simbólico. A nova miséria é o consumo do objeto de gozo sem nenhum tipo de laço social que o enquadre.
Isto confirma a hipótese de Lacan sobre o discurso capitalista, que se caracteriza por efetuar um movimento circular onde não se pode estabelecer de entrada corte algum – por isso é um absurdo lógico falar de “luta anticapitalista” –, que se autopropulsa a partir de dentro, é ilimitado e funciona com uma vontade acéfala que não pode ser cortada em nenhum ponto. Guarda uma homologia estrutural com a pulsão, e não com o desejo (penso que Deleuze e Guattari, ao se aproximarem desta questão, não diferenciaram desejo de pulsão). O discurso capitalista assinala uma estrutura que se caracteriza pela impossibilidade de estabelecer em que lugar se pode efetuar o corte.
Por isso, é o discurso que mais convida – como costuma acontecer nas estratégias neoliberais – à sua naturalização, a perder de vista seu caráter histórico, a apagar seu caráter contingente. Pois bem, é preciso marcar uma diferença entre o mais-de-gozo e a mais-valia: pensava-se que a mais-valia, através do processo histórico, seria abolida com o advento de outro modo de produção e de uma nova relação com a propriedade dos meios de produção; o que Lacan ensina sobre o mais-de-gozo é que não há nenhuma realidade histórica que o abole. Caso se tenha que pensar em um projeto emancipatório, este terá que incluir uma permissão para o mais-de-gozar; terá de ser um processo emancipatório que não abole as condições do mais-de-gozar.
A política apagada
Na posição que trato de propor, a construção do antagonismo é inevitavelmente política e não há, a priori, uma recusa do Estado, nem da democracia nem das instituições. Outra coisa é advertir que a democracia liberal rechaçou o antagonismo: as sociedades do consenso forcluíram – para utilizar uma expressão forte de Lacan – o antagonismo, de tal modo que produziram, cada vez mais, o que Lacan chamava de “o ódio pelo gozo do Outro”. No seminário “De um discurso que não fosse semblante” (1971), antecipou que, ao contrário do nacional-socialismo que explicitou sua ideologia racista, iríamos ver, cada vez mais, um ódio racial desconhecido. Em 1969, prognosticou que nosso futuro de mercados comuns europeus nos faz conhecer níveis de racismo até então desconhecidos. A tese de Lacan é que, para ser racista, já não nos falta nenhum tipo de articulação ideológico-política, mas que o racismo se produz na própria constituição do sujeito. Um dos motivos pelos quais esse ódio está aumentando é que as sociedades marcadas pelo paradigma do consenso – onde se disputam interesses corporativos, interesses de grupo, interesses de consumidores, interesses de proprietários, interesses de vítimas, interesses de prejudicados, etc. – apagaram do campo da experiência a dimensão da política.
Se algo caracteriza o que poderíamos chamar genericamente de pós-democracia, é que a política deixou de ser uma experiência subjetiva, e o resultado desta forclusão da política é o aumento do ódio, o aumento do ódio racial que vai desde o “choque de civilizações” até a guerra contra o fundamentalismo, incluindo o ódio ao vizinho. Este ódio sem articulação política é um dos sintomas mais claros de que o antagonismo não opera politicamente. E, como disse antes, este antagonismo deve ser construído politicamente porque não surge imanentemente – nem como acreditava Marx nem como acreditaram depois Michael Hardt e Antonio Negri – das próprias estruturas. Exige a construção política.
Para ler mais:
• ''Psicanálise é a medicina da alma do nosso século''. Entrevista com Elisabeth Roudinesco
• O Outro, o ódio, a linguagem e a violência. Entrevista especial com Jean-Pierre Lebrun
• Melman discute ética. Como tratar o desejo em uma lição
• O direito ao gozo e a violência. Entrevista especial com Mario Fleig
• 'O homem contemporâneo não sabe o que é desejar, só sabe o que é consumir'. Entrevista especial com Jean-Pierre Lebrun
• A função do pai, hoje. Uma leitura de Lacan. Revista IHU On-Line n. 267
(Inst, Humanitas Unisinos)
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