O preconceito estético
Guilherme Montana
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Eu não me lembro do clima, talvez tenha chovido naquela tarde. Este dezembro, em Brasília, tem feito uma estação diferente a cada dia. Talvez tenha chovido mesmo, pois eu estava de carro, e não de bicicleta, como de costume. Durante aquela tarde, eu deveria executar uma simples tarefa. Reabastecer o guarda-roupa, coisa que homens só precisam fazer, quando precisam, uma vez por ano, e calibrar a estante "economia", uma seção da minha biblioteca a que deveria ter dado mais atenção em anos formadores. Adquirir roupas e livros era a tarefa. Acreditava que, por economia de tempo e paciência, o lugar onde eu os encontraria seria um shopping center. O raciocínio estava certo; mas a hora, errada. Dezembro. Gente por todos os lados comprando vale-presentes para amigos ocultos, meias e cuecas para maridos, chocolates (e vale-presentes) para esposas. Uma fauna variada e numerosa, lotando corredores, elevadores, lojas ― e enchendo a paciência de vendedores, que, por sua vez, enchem a dos clientes. Nem menciono as praças de alimentação, o círculo mais tenebroso de todo inferno center.
Mesmo assim, paciência era o que eu mais deveria ter. Lá estava eu, flanando por entre vários tipos, sem pressa, observando vitrines, conferindo preços. Mochila às costas para carregar as futuras compras, água de côco à mão para combater a secura. A diversidade que perambulava pelo shopping era, de alguma maneira, atraente. O mosaico humano é interessantíssimo. Um senhor perguntava ao filho, por telefone, qual era "a cor predileta da sua mãe" ― ele observava uma vitrine de lingerie. Um casal gay de rapazes trocava beijos enquanto a atendente do quiosque de pretzels, sorrindo um tanto envergonhada, tentava lhes entregar o pedido. Uma senhora, aparentemente setuagenária, estampava uma colossal interrogação no rosto enquanto o vendedor colocava, um ao lado do outro, patins cor de rosa sobre o balcão. Vestidas como atrizes de Sex and the City, duas moças, de aparência balzaquiana, passaram por mim, uma delas exalava um perfume conhecido, e que me dá alergia, enquanto a outra dizia "...pois eu prefiro o Vitor Belfort...". Em frente à loja de uma telefônica, a filha pré-adolescente instruía o pai sobre qual celular ele deveria comprar, tinha de ser um "bom pra quem gosta de viajar" ― não achei redundante a especificação que ela deu ao celular, que é um equipamento portátil de comunicação à distância, porque foi a última coisa que ouvi antes que entrassem na loja ―, mas jamais saberei a conclusão daquele raciocínio. Nem saberei se o marido comprou lingerie para esposa, e de que cor. Nem se a senhora na loja de esportes compraria os patins para alguma neta, o que seria clichê, ou se para ela mesma, o que eu acharia, além de clichê, o máximo. Nem se os rapazes gostaram do pretzel. Nem se as balzaquianas praticam alguma arte marcial. Estas cenas recortadas, contudo, é que são a graça.
Gosto da diversidade que algumas aglomerações proporcionam, ainda que observada em tão inquieta época do ano e no mais exasperante dos lugares. Mesmo assim, a missão ia sendo cumprida sem atropelos. Já havia passado por algumas lojas, comprado ali, despistado um vendedor irritante acolá. Então, quando entrei numa sapataria, me deparei com um espécime que há tempos não via e pensava que já estivesse sob ameaça de extinção. Eu, com meus próprios olhos, vi, à minha frente, respirando, uma mulher feia.
Inspirei fundo, expirei longo. Tomei um gole de água de côco. A feiúra hipnotiza. Fiquei olhando, atônito. Ouvi um vendedor se aproximando. Ele me perguntou o que procurava, se algum modelo ou marca específicos. Eu lhe disse, para me livrar dele, que queria um John Lobb, "qualquer modelo de tamanho 41". Duvidava muito que houvesse John Lobb Bootmaker naquela loja, mas ele partiu, muito solícito, para procurar. Não sei por quanto tempo procurou, uma dúzia de minutos, talvez mais. Mas isso não importava, porque eu fingia esperar por ele. O que eu queria mesmo era observar o milagre, aquele fenômeno, à minha frente, a mulher feia.
Hoje, relembrando aquele momento, não duvido que tenha ficado sob a vigilância das câmeras de segurança. Um jovem solitário, aparentemente em transe, carregando uma mochila nas costas, olhando (olhando?) fixamente para uma fêmea. Não duvido que alguns compradores, ao checar o interior da loja, tenham desistido de entrar porque me viram: eu, de olhar vidrado, absorto, impávido, assustador. Também não descarto a hipótese de que os demais clientes e os outros vendedores tenham se sentido, no mínimo, incomodados com a minha presença. Mas tenho certeza de que ela, a mulher feia, nem me percebeu. Ainda bem.
Lá estava, a feiúra. Jamais conseguirei descrever. Não saberia dizer a idade da criatura. Até porque feiúra não tem idade. Beleza também não. Também não sei a cor dela. O que também não importa, porque tanto a feiúra como a beleza não têm cor. Tento dimensioná-la e achar a altura dela, mas me perco, a sinapse não vem. Já vi mulheres feias mais altas e mais baixas que ela. E já vi belas de todas as alturas. Penso na cor do cabelo, na cor dos olhos, coisas que eu possa descrever para que você tenha uma noção de como era a figura. Mas quando tento digitar a cor com que minha mente colore a lembrança, ela muda; então tento digitar a nova cor, e ela muda novamente. Feiúra não tem cor. Mas eu e você já vimos a beleza sob todas as cores, alturas, formas, idades. Nós vivemos, nos termos de Umberto Eco, o politeísmo da beleza.
A mulher feia foi embora. Não lembro se carregava sacolas. Nem consigo descrever como se vestia. Ela sumiu na multidão de compradores. Neste momento, voltando à realidade, me apareceu o vendedor, dizendo que não havia "a marca que o senhor pediu". Agradeci, lhe desejei boas festas, saí andando lentamente em direção à livraria.
Nota do editor
Guilherme Montana mantém o Montana, Blog.
(Digest. Cultural)
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