Teoria da revolução árabe: 5 apontamentos
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Bruno Cava
– 09/02/2011Posted in: Capa
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Por Horace Campbell, do Pambazuka News | Tradução: PassaPalavra | Cartaz construtivista de Alexander Rodchenko, 1924
“Foi uma parada da vitória – sem a vitória. Vieram centenas de milhares de pessoas, alegres, cantando, rezando, uma grande massa compacta de egípcios, subúrbio após subúrbio, aldeia após aldeia, esperando pacientemente para atravessarem as barreiras de “segurança popular”, envoltos na bandeira egípcia vermelha, branca e negra, com o símbolo da águia brilhando dourado ao sol. Eram um milhão? Talvez. Contado todo o país, certamente eram. Todos estávamos de acordo que se tratava da maior manifestação política na história do Egito, o último esforço para livrar este país do seu menos estimado ditador. A única falha foi que ao pôr do sol – e quem sabia o que a noite traria? – Hosni Mubarak ainda se proclamava “Presidente” do Egito.”
Foi assim que Robert Fisk, do Independent, do Reino Unido, capturou o clima de otimismo dos povos na Praça Tahrir (também chamada Praça da Libertação) no Cairo, antes de o punho velado da contra-revolução ter desencadeado seu chicote para reverter a iniciativa da insurreição popular no Cairo. Na terça-feira, 1º de fevereiro, havia mais de 2 milhões de pessoas reunidas na Praça Tahrir para exigir a demissão de Hosni Mubarak, e na quarta-feira, 2 de fevereiro, policiais à paisana e capangas armados, montados em camelos e cavalos, atacaram os cidadãos desarmados, procurando matar e brutalizar quem quer viver em liberdade. Mas o povo se manteve firme em suas posições e rechaçou os capangas do governo.
O povo do Egito concentrou a atenção do mundo, insuflando, com sua determinação, uma nova coragem em todos os povos oprimidos. A confiança que demonstram e o desprezo pelo medo inspiram povos oprimidos em todas as partes do mundo, e já ocorrem revoltas populares e protestos na Jordânia, no Iêmen e no Sudão. Não falta muito para que suceda o mesmo na Argélia, nos Camarões e na Líbia, onde começou a haver agitação e exigência de mudanças políticas e sociais.
Os povos do Egito e Tunísia deixaram sua marca no cenário mundial e inverteram o equilíbrio do poder em benefício das pessoas comuns. Restabeleceram a essência da participação democrática popular e colocaram num plano mais elevado as questões da política de inclusão. Esta mudança está dando de novo uma sensação de poder aos explorados de todo o mundo. Os povos oprimidos de todo o mundo sentem-se agora encorajados com a determinação mostrada pelos manifestantes.
Não há dúvida de que os jovens estão dando um novo significado à organização revolucionária e, ao mesmo tempo, expondo a superficialidade e a hipocrisia da postura “democrática” liberal dos imperialistas ocidentais. Foram estas mesmas forças liberais ocidentais que apoiaram o regime egípcio como um baluarte da “estabilidade e do antiterrorismo” na África do Norte e do Oriente Médio. Com os capangas e o pessoal da segurança do Estado atacando civis desarmados, a revolução egípcia enfrenta agora o desafio da quarta etapa da revolução: como aproveitar as noções da não-violência revolucionária para conseguir se manter firme e lutar contra as provocações internas e a externas. Neste equilíbrio precário, o exército será posto à prova quando os apoiantes externos do moribundo regime de Mubarak tentarem esmagar o espírito revolucionário do povo. Uma das tarefas mais importantes dos movimentos internacionais de paz e justiça é se oporem aos militaristas que tentarem aproveitar o momento de transição para fomentar guerras e intervenções militares.
Milhões na Praça da Libertação e por todo o Egito
Com milhões de pessoas a irromperem pelas ruas de Alexandria, Assuã, Cairo, Port Said, Suez e outras cidades egípcias, as manifestações de protesto contra a ditadura no Egito prosseguiram além da terceira etapa do processo revolucionário tunisino e trouxeram uma força inteiramente nova, a do poder dos números e do teste de meios criativos de autodefesa. Segundo certos relatos, na terça-feira, 1º de fevereiro, calcula-se que mais de 2 milhões de pessoas estariam nas ruas do Cairo, exigindo o fim do regime ditatorial de Mubarak. Outros milhões se reuniram em todas as cidades e comunidades do Egito. No nosso último artigo definimos três etapas fundamentais da revolução tunisina. Em nossa análise identificamos a primeira etapa como a auto-imolação e o sacrifício de Mohamed Bouzazi. A segunda etapa correspondeu à automobilização das forças populares de Tunis, levando à queda do governo de Ben Ali. A terceira etapa correspondeu às caravanas de libertação, quando até mesmo das partes mais rurais da Tunísia as pessoas deslocaram-se em suas caravanas rumo a Tunis, para acelerar o desmantelamento dos remanescentes do regime de Ben Ali.
A emanação maciça de energia popular exigindo justiça social não só propalou as idéias de libertação de cidade para cidade, mas também para além das fronteiras. Neste artigo buscamos compreender como a revolução da Tunísia se cruzou com o levantamento do Egito, e o que isso significa para as revoluções do século 21. No Egito, o povo mostrou muito claramente que a sua revolta é uma revolta popular de caráter revolucionário. Nos dois países, o caráter revolucionário potencial pode desenvolver-se ao ponto de ganhar as fileiras das forças armadas e policiais para criar uma sociedade nova, o que poderia ser a base de um salto qualitativo nas mudanças que acabem com a ditadura e a repressão brutal.
Uma coisa que se destaca em ambas as revoluções é que pessoas comuns e pessoas de todas as esferas da sociedade procuram pôr fim a um sistema que reprime a sua dignidade humana e gera medo e submissão. As revoltas egípcia e tunisina são também revoltas contra o capitalismo neoliberal e os remédios do FMI (Fundo Monetário Internacional) e das instituições de Bretton Woods, que impuseram receitas de miséria em nome da saúde econômica da sociedade. Não só a implementação de um programa econômico neoliberal, apoiado pelo FMI e o Banco Mundial em 2004-05, estimulou diretamente a desigualdade de renda e de condições de vida que os tunisinos e os egípcios estão agora tentando mudar, mas durante este período aquelas mesmas instituições “aplaudiram” os governos pelo sucesso desses programas, por terem alcançado taxas mais elevadas de crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) e terem aumentado o investimento estrangeiro. Assim como a Irlanda foi aplaudida pelo “êxito” do seu modelo econômico antes de implodir, é evidente que o “êxito” foi alcançado enquanto estavam aumentando o empobrecimento e o desemprego para a maioria dos cidadãos.
Tanto os tunisianos como os egípcios sofreram desemprego maciço, péssimas condições de vida, falta de habitação decente, exploração e baixos salários, corrupção estatal, repressão e brutalidade policial, inflação e outras formas de terrorismo de Estado. Esta situação ocorreu numa sociedade de bilionários, com despesas maciças no aparato de segurança do Estado e um clima geral que forneceu condições para os capitalistas acumularem grandes fortunas.
A desumanização dos jovens egípcios tem ido a par com a desumanização dos povos da região. Esta desumanização chegou mais longe no território palestino. E não foi por acaso que o mesmo governo egípcio que desumanizou aquelas pessoas ajudou Israel no bloqueio de Gaza, em um esforço para subjugar os palestinos pela fome.
A enorme discrepância entre ricos e pobres no Egito tornou-se agora evidente, fazendo esta rebelião ir além do discurso da mídia ocidental sobre a fúria, a raiva, o caos e o extremismo islâmico. A transformação operada na consciência dos povos egípcio e tunisino coloca as questões da transformação social no centro da política. Assim, para o povo do Egito não se trata simplesmente de acabar com Mubarak, mas também de acabar com o aparelho local e internacional que durante 30 anos manteve Mubarak no poder. É importante entender isto, porque uma das coisas que se diz é que estas pessoas estão se rebelando em nome de uma maior liberdade política e econômica, como se a pobreza e o desemprego tivessem sido causados por ditadores políticos “controlando” a economia. Ora, isto é falso. No âmbito dos programas neoliberais na Tunísia e no Egito, as economias foram “liberalizadas” e empresas estatais foram “privatizadas” com o argumento de promover liberdade econômica. Em tal contexto, as elites políticas e econômicas (locais e estrangeiras) foram capazes de se apoderar da maior parte de quaisquer proventos obtidos graças à maior liberdade econômica suscitada pela política neoliberal.
Desde o assassinato de Khaled Said em Alexandria, no último verão, até à autoimolação do tunisiano Mohammed Bouazizi, apareceu uma nova geração de jovens capazes de usar as ferramentas de redes sociais para mobilizar a imaginação de outros jovens de modo a erguerem-se contra a brutalidade policial. Sabemos agora que o espancamento policial de Khaled Said em junho de 2010 desencadeou “protestos inflamados no Cairo e em Alexandria e reinvindicações de justiça propagaram-se em blogs e sites de redes sociais”. Com a implementação de novas ferramentas de organização dos jovens através da mídia social e com os esforços de segurança coletiva do povo para defender as suas comunidades no Egito, há um padrão de auto-organização, que contém o gérmen de uma nova estratégia para as revoluções do século 21. A forma como este gérmen se desenvolverá depende do grau em que a organização da não-violência revolucionária e da autodefesa se enraíze até conseguir fazer frente à violência estatal organizada, que foi desencadeada para desestabilizar a revolta popular.
Revoluções sem revolucionários autoproclamados
Khaled Said foi morto porque ousou denunciar a gravidade da corrupção da polícia e dos agentes do partido no poder, o Partido Nacional Democrático (PND). Originariamente fundado por Anwar Sadat para conferir legitimidade a uma ditadura militar, o PND tem dominado a vida política, expulsando outras forças sociais do centro do palco político legal. Mubarak dominou este partido e tratou-o como seu feudo pessoal, prometendo que faria do seu filho o herdeiro, como se o Egito se tivesse tornado uma monarquia. Este exemplo de um líder usurpando o papel desempenhado pelo partido em uma sociedade comprometeu o significado e a essência dos partidos políticos como instrumentos de organização popular.
Até agora, uma característica saliente das revoluções na Tunísia e no Egito tem sido a ausência de partidos de vanguarda ou de personalidades como líderes das revoltas. Durante o século 20 predominou a noção de que as revoluções necessitavam de um partido de vanguarda ou de grupos compostos pelos setores mais avançados da classe operária e da intelectualidade na sociedade. No passado, esta vanguarda tinha de estar preparada para travar lutas armadas para conquistar o poder de Estado. A tese fundamental sobre a necessidade de a revolução ser dirigida pelos elementos mais avançados da classe operária foi explicitada por Lênin em dois importantes documentos, Que Fazer? e O Estado e a Revolução. Estes documentos constituíram um guia para os revolucionários e houve revoluções vitoriosas na China, em Cuba e no Vietnã. Estas revoluções diferiram das deformidades do vanguardismo desenvolvido na União Soviética sob Stalin e copiadas por Mubarak. As experiências negativas do vanguardismo não se limitaram a déspotas como Mubarak e Stalin. Pessoas que não eram socialistas nem comunistas em sociedades como o Zaire de Mobutu e o Irã praticaram o vanguardismo. O caso do Irã tem uma especial importância porque os Mullahs adotaram algumas das táticas do vanguardismo, com resultados desastrosos para o povo do Irã após a derrubada do Xá, comprometendo assim os objetivos emancipatórios do processo revolucionário. Como se as experiências do vanguardismo tivessem sido estudadas pelos jovens do Egito e da Tunísia, eles tiveram o cuidado de não promover nenhum indivíduo ou partido que pudesse comprometer ou personalizar a sua luta pela liberdade. Esses jovens esforçaram-se por desenvolver a confiança e a cooperação entre as redes de forças sociais em luta pela liberdade.
À medida que a revolução egípcia ganhou força, o laureado com o Prêmio Nobel, Mohamed El Baradei, deixou Viena e aderiu ao movimento, oferecendo-se como um dos líderes da revolta popular. No sétimo dia da revolta popular, a aglutinação das forças de oposição em torno de El Baradei constituiu um ato de defesa, pois a mídia ocidental vinha a colocar insistentemente o estigma do extremismo islâmico no que era uma oposição pacífica à ditadura.
Essas experiências fazem com que seja fundamental enunciar a importância das revoluções realizadas sem autoproclamados revolucionários e líderes. No Egito, jovens e mulheres do Movimento 6 de Abril surgiram para organizar e inter-relacionar as redes de redes sociais. Pode-se admitir que eles estavam cientes das lições positivas e negativas do vanguardismo, seja na antiga União Soviética ou no Irã. Por isso ouvimos a palavra de ordem nas ruas do Egito: «esta é a revolução de todas as pessoas».
Sabemos agora que esta revolta no Egito ocorreu depois de alguns anos de trabalho paciente e consistente de jovens, tanto homens como mulheres, que se organizaram no que hoje é chamado de Movimento 6 de Abril. Este é um grupo de jovens que usou o instrumento de rede social, Facebook, para apelar para que os jovens do Egito apoiassem as lutas dos trabalhadores. Desde 6 de abril de 2008 esses jovens vêm se reunindo e se organizando para criar um movimento que se ligue às comunidades por todo o Egito e que se ligue a ativistas de base em outras partes do mundo. Ao estabelecerem os princípios de compartilhar e cooperar em vez da competir, estes jovens do 6 de Abril esforçam-se por ser mais eficazes na construção de um novo tipo de campanha para uma mudança política.
Em meu livro Barack Obama e a política do século 21 apresentei os princípios do Ubuntu – uma filosofia da humanidade compartilhada – como ideal revolucionário básico para o século 21. O cerne desta idéia é a luta para nos tornarmos humanos e para nos elevarmos acima das hierarquias humanas, das divisões e xenofobia e das compartimentações. Os ecos do Ubuntu repercutiram nas ações e nas palavras das pessoas comuns na primeira linha das revoluções da Tunísia e do Egito. Em algumas ocasiões, durante os protestos, quando setores islâmicos se manifestavam gritando “Allah Akbar!” [Deus é o maior!], um cântico mais alto surgiu, fazendo ouvir “muçulmanos, cristãos, ateus, somos todos egípcios”. Por detrás destes cânticos houve atos concretos de cristãos que se ofereceram para organizar a segurança dos muçulmanos enquanto eles rezavam durante as manifestações. Estas pequenas ações de Ubuntu e do reconhecimento da humanidade de cada um têm que ser celebradas, promovidas e difundidas por toda a África e no Oriente Médio para que ocorra a transformação no século 21.
Os jovens prosseguiram uma longa tradição de lutas oriunda da população trabalhadora do Egito. Em África, é no Egito que se encontra um dos mais fortes movimentos sociais em prol da paz e da justiça. Umm Kalthum ainda é reverenciada em suas canções nacionalistas de autodeterminação e dignidade. Importantes pensadores e ativistas egípcios, como Samir Amin e Nawal El Saadawi, são nomes familiares entre os progressistas de todas as partes do mundo. Com a idade de oitenta anos, Nawal El Saadawi, em particular, falou em nome de milhões de mulheres, narrando como ela havia sido presa duas vezes – uma vez nas celas do regime e outra vez na prisão que é a sociedade egípcia. Seu livro Mulher no Ponto Zero tem uma declaração apelando para as mulheres em todas as partes da África e do Oriente Médio “se mobilizarem contra a opressão de gênero”.
Os jovens e as mulheres que noite e dia têm se organizado são os herdeiros de tradições de organização devidas aos sindicalistas, escritores, jornalistas, agricultores, artistas, intelectuais progressistas, mulheres, forças religiosas e homens e mulheres de negócios patriotas. O vigor dessas forças sociais é tão notável que os elementos dominantes tiveram de recorrer à violência. O bloqueio ao acesso da internet e o fechamento de serviços de telefonia celular [telemóveis] e da mídia não-governamental foram apenas as manifestações mais modernas de uma longa tradição de repressão, que pôs militaristas conservadores no topo da hierarquia política no Egito. Anwar Sadat foi explícito em seu empenho para reverter os esforços populistas de Gamal Abdel Nasser, um dos principais nacionalistas do período da luta pela independência em África. Quando Sadat foi assassinado a tiros por elementos de dentro do próprio exército, Hosni Mubarak assumiu a presidência em 1981.
A ditadura de Mubarak foi uma aliança entre os opressores locais e os EUA e Israel para derrotar as demandas legítimas dos povos do Egito. Nunca houve um momento na história dos povos do Egito no século passado em que eles não estivessem se organizando e reclamando melhores condições de vida. Com a consolidação do regime militarista, os partidos políticos foram banidos, os líderes foram presos, mortos ou enviados para o exílio e a expressão política genuína foi sufocada. Os jovens estudaram as lições positivas e negativas da organização política para forjar novas ferramentas de luta política.
Auto-organização revolucionária e não-violência revolucionária
Todos os casos de jovens, tanto homens como mulheres, de ricos e pobres estarem se organizando nas comunidades assinalam o nível de consciência social e política que tem motivado as pessoas a se mobilizar para defender seus interesses. Esses milhões de egípcios não têm medo de lutar por seus direitos. Essas pessoas têm dado mostras de uma liderança revolucionária crucial e têm desenvolvido táticas que já conquistaram a maioria do povo egípcio para a causa da revolução. Neste processo, minaram a coesão da classe dominante política e econômica egípcia, formada com o auxílio do complexo militar-industrial e dos elementos da Wall Street dos EUA. Não foi por acaso que, quando a revolução se estava expandindo, os chefes do exército egípcio estavam em Washington em consulta com o estado-maior conjunto das forças armadas dos EUA. Os bilhões [milhares de milhões] de dólares obtidos dos cidadãos dos EUA para apoiar a ditadura de Hosni Mubarak suscitaram divisões nas forças armadas egípcias, criando uma classe de oficiais cujos interesses se aliavam aos dos EUA e de Israel, contra os interesses dos egípcios. É para este grupo que os líderes dos EUA e da Europa se estão a voltar a fim de quebrar a coesão das forças revolucionárias nas ruas. Com a mídia ocidental apresentando a revolta popular como cenas de caos e raiva, o regime de Mubarak lançou elementos armados nas ruas para se encaixar na imagem ocidental convencional, enquanto tentava destruir o poder popular que havia ocupado a Praça Tahrir [Praça da Libertação]. Quando as forças estatais atacaram a Praça Libertação, as pessoas se mantiveram firmes, defendendo-se. Centenas foram feridos, mas este teste trouxe a quarta etapa importante da revolução: a reconsolidação das forças populares para afiar as ferramentas revolucionárias da não-violência e autodefesa.
Estas forças revolucionárias nas ruas compreenderam as divisões sociais internas das forças armadas e fizeram apelos diretos aos soldados. Estes apelos condizem não apenas com as ferramentas de organização, mas também com as formas de organização. Tendo conceituado [conceitualizado] antecipadamente a auto-organização, os revolucionários ultrapassaram o governo, de tal modo que mesmo quando a internet foi encerrada as táticas de auto-organização deram lugar a meios sofisticados e criativos de comunicação. Foi esta organização sofisticada que derrotou as tentativas do governo para esmagar o movimento de massas. Esta organização sofisticada será também necessária se as forças contra-revolucionárias escolherem a guerra como a melhor arma para reverter a revolução.
Na verdade, o modelo de organização e liderança revolucionárias nas revoluções tunisina e egípcia neutralizou até agora as conspirações de elementos contra-revolucionários do Egito e dos EUA, que estavam empenhados em utilizar a propaganda antiislâmica e contraterrorista para derrotar as revoltas populares. A centralidade das forças armadas egípcias para conferir legitimidade ao regime no Egito tem sido invariável nos últimos 50 anos. No entanto, no auge da Guerra Fria os EUA passaram a apoiar os fundamentalistas egípcios mais conservadores, a fim dos EUA reforçarem os seus objetivos na Guerra Fria. Talvez os leitores mais jovens não se lembrem de que foi no Egito que os EUA recrutaram muitos dos seus combatentes Mujahideen para lutar contra a União Soviética no Afeganistão. Os combatentes Mujahideen também foram mobilizados contra os sindicalistas, os socialistas, as mulheres e outras redes de justiça social no Egito. O sectarismo e o fundamentalismo serviram tanto os ditadores quanto os seus apoiadores imperialistas.
É imperioso observar que uma das lições positivas tanto do Egito quanto da Tunísia é a unidade do povo ultrapassando as demarcações regionais. Neste processo, as mulheres da Tunísia e do Egito destacaram-se entre os setores mais avançados e esclarecidos da revolução. Durante décadas, as mulheres egípcias têm vindo a lutar contra um governo que reprime o fundamentalismo islâmico, mas usa as idéias do fundamentalismo islâmico para dominar as mulheres. As imagens de mulheres decididas definindo os objetivos do movimento de massas que varre o Egito e a Tunísia continuam a inspirar as mulheres na África e no Oriente Médio. Queremos reiterar que a luta pelos direitos reprodutivos, pela integridade física e a oposição à opressão sexual elevou a luta democrática para além dos direitos à liberdade de expressão, de reunião e de organização dos trabalhadores.
Acerca das revoluções do século 21 na África e no Oriente Médio
As revoluções egípcia e tunisina alteraram agora os cálculos políticos e as considerações sobre a política e a revolução. Não só essas revoluções transformaram a consciência do povo, mas deram origem também a um novo surto de energia criativa e tornaram-se uma escola de novas técnicas revolucionárias para o século 21. Estas energias podem ser traduzidas em inúmeras ações voltadas para transformações revolucionárias em toda a África e Oriente Médio. Não há dúvida de que as mudanças nas condições econômicas que as pessoas estão exigindo não serão obtidas graças aos tipos de reforma financiados por doadores estrangeiros para promover “maior” liberdade econômica. Elas só serão alcançadas se os povos elegerem novos líderes e governos com coragem para implementar políticas econômicas alternativas que se concentram na abordagem das condições de vida, em oposição aos interesses dos investidores estrangeiros e das elites locais.
A revolta no Egito chegou a um ponto em que as forças contra-revolucionárias estão em desordem e não podem acompanhar o ritmo da mudança. Existe um modelo de efusão popular que se difunde da Tunísia e do Egito para todas as sociedades sob regime ditatorial na África e no Oriente Médio. A tarefa dos progressistas é celebrar as lições positivas de auto-organização e os ventos de auto-emancipação soprando através da África. Os progressistas não podem estar à margem e têm que descobrir as suas próprias formas de se mostrarem solidários para com as pessoas que estão sendo dizimadas nas ruas.
Explicamos o que estamos aprendendo com algumas das características destas revoluções do século XXI. As características mais importantes que até agora destacamos são:
1. As revoluções são feitas por pessoas comuns, independentemente de partidos de vanguarda e de revolucionários autoproclamados.
2. O caráter das redes de redes sociais independentes e a sofisticação das ferramentas da revolução.
3. A liderança das pessoas comuns que se automobilizaram para a revolução.
4. A construção de uma não-violência revolucionária para autodefesa.
5. As idéias revolucionárias do povo, cujo objetivo final é ser seres humanos dignos e não robôs nem fanáticos de ditadores.
Cabe agora a nós, progressistas, apoiar e aderir a este modelo de revolução, para iniciar um salto qualitativo além do neoliberalismo, do capitalismo, do militarismo e da ditadura na África e no Oriente Médio.
Horace Campbell é professor e escritor. Mantém o site www.horacecampbell.net. Escreveu Barack Obama e a política do século XXI: um momento revolucionário nos EUA, publicado pela Pluto Press.
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About the Author
Bruno Cava é escritor, engenheiro e bacharel em direito. Mestrando em filosofia política do direito, autor de "A Vida dos Direitos" (2008), escreve em vários sites e publica o blogue Quadrado dos loucos.
(Le Monde Diplomatique)
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