Alzheimer ainda esconde
os crimes de Reagan
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Por Argemiro Ferreira
Ronald Reagan no cinema
Há cinco anos acompanhei por dever de ofício (em meio à campanha presidencial que reelegeria George W. Bush) as homenagens a Ronald Reagan, que morrera depois daquilo que ele próprio, já paciente de Alzheimer, chamara de seu “longo adeus”. Foram sete dias de eventos solenes, menos relevantes pelo que se disse do personagem do que pelo que revelaram sobre os EUA e sua sociedade.
Na foto do alto, Reagan aparece – no papel de um ainda jovem George Armstrong Custer, o general celebrizado como matador de índios na ânsia de chegar à Casa Branca – no filme Santa Fe Trail, de 1940, ao lado do galã Errol Flynn como Jeb Stuart, companheiro de Custer em West Point e rival do amigo na disputa pelo coração de Olivia de Havilland. Os dois são mandados ao território do Kansas para derrotar o abolicionista John Brown, retratado como vilão sedento de sangue (saiba mais sobre o filme aqui).
No crepúsculo da vida, ao longo de sua última década, Reagan perdera gradativamente a memória e até a consciência da própria identidade – numa redoma, imune a críticas. Bem antes disso já havia suspeita de que confundia a realidade com seus filmes e a ficção de Hollywood. Os excessos derramados na semana de despedida me levaram na ocasião a recordá-lo não como a figura heróica e íntegra, mas como o Reagan real, diferente daquilo que ele próprio achava e, claro, do que seus adeptos ideológicos diziam dele.
Agora, como naqueles dias, talvez só concordemos todos num ponto: de fato, ele era um bom comunicador. Admito que estava certo ao dar esta resposta aos que uma vez acharam absurda a pretensão de um ator de tornar-se presidente: “Absurdo é alguém ser presidente sem ser ator”. Ironicamente, Reagan chegou à Casa Branca sem ter de matar índios: bastou-lhe viver na tela o papel de quem o fazia na esperança de chegar lá (saiba mais sobre o verdadeiro Custer aqui).
Aquele galãzinho de segunda?
Ao contrário do que disseram dele há cinco anos e vão dizer de novo sexta-feira, data do aniversário da morte, não foi herói. Nem íntegro. Foi ator e sempre teve um script. Em Hollywood era galã do segundo time – abaixo de Errol Flynn, mocinho de Santa Fe Trail, que no final fica com Olivia de Havilland; ou de Robert Cummings, galã de Kings Row. Foi coadjuvante nesses dois filmes, como ainda no marcante Knute Rockne, All American.
Esses foram três filmes importantes na carreira dele. Num era o Custer jovem, antes da guerra civil e das matanças de índios. No segundo tinha a perna amputada por um médico sádico; e ao acordar da anestesia, fazia a pergunta que se tornaria o título de sua autobiografia: “Onde está o resto de mim?” No terceiro, como o astro de futebol americano George Gipp (The Gipper), da equipe de Notre Dame, disse na cama, segundos antes da morte, a frase repetida à exaustão, anos depois, nas campanhas dele: “Ganhe uma para o Gipper”.
Num dos discursos eleitorais das homenagens de 2004, George W. Bush o elogiou por só interpretar good guys, bons sujeitos. Com isso Bush arriscou-se a perder os votos de atores de talento mais versátil, que também adoram viver bad boys na tela. Reagan de fato preferia ser bonzinho e galã, mas em seu último papel no cinema - The Killers, de 1964, foi bandido e mau caráter. Segundo Kirk Douglas contou em sua autobiografia The Ragman’s Son, Reagan nunca se conformou em ter de esbofetear Angie Dickinson numa cena. Mas depois desse filme, estava pronto para a carreira política.
O caráter e o desmemoriado
No dia-a-dia Reagan podia ser alegre e bem humorado. Uma ex-funcionária da Casa Branca contou na ocasião que sempre se sabia quando ele chegava – pelas risadas das pessoas nos corredores por onde caminhava. Mas é difícil acreditar na sacrossanta integridade dele, de que fala com ênfase sua ex-redatora de discursos Peggy Noolan no livro When Character Was King.
Em Caça às Bruxas – macartismo, uma tragédia americana, tentei resumir a história contada por Dan E. Moldea no livro Dark Victory – Ronald Reagan, MCA and the Mob. Usando seu cargo de presidente do Screen Actors Guild, o sindicato dos atores de cinema, ele abriu uma exceção para permitir à MCA, então apenas agência de artistas, entrar no negócio da produção de filmes, claro conflito de interesses. Tal negociata marca o início da fortuna de Reagan, pois graças ao privilégio a firma acabaria tornando-se dona da Universal e um dos quatro grandes impérios de Hollywood (saiba mais aqui).
Chegaram a ficar depois sob controle da MCA (que ao nascer era ligada à Máfia) 60% de toda a indústria de entretenimento. O escândalo do favorzinho especial de Reagan, traindo a confiança dos filiados do sindicato, foi largamente recompensado nos anos seguintes. As relações promíscuas de Reagan com a MCA chegaram a ser investigadas depois, mas já então era muito tarde. E no Grande Júri que conduziu o inquérito ele se safou jurando que já não se lembrava de nada.
Foi também a falta de memória que o salvou na investigação do escândalo Irã-Contras. Ao depor, depois de deixar a presidência, a resposta de Reagan a quase 200 perguntas foi simplesmente a mesma: “Não me lembro”. Em Firewall, seu livro sobre a investigação do caso (capa ao lado), o promotor especial Lawrence Walsh disse que acreditou nele, pois Reagan de fato parecia esforçava-se para lembrar. Mas era impossível pois já estava com Alzheimer (saiba mais aqui sobre o escândalo).
O dedo-duro T-10 no FBI
Também Colin Powell, que tinha trabalhado no Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca e há cinco anos ainda era secretário de Estado, sugeriu que Reagan já tinha a doença. “Começava a contar suas famosas histórias, que todos conhecíamos bem. De repente, não se lembrava do final. A gente ajudava e dava os detalhes que ele tinha esquecido”, disse Powell. Esse o presidente celebrado durante sete dias em 2004.
Mas outras coisas Reagan pode ter tentado convenientemente esquecer durante quatro décadas. Por exemplo, o detalhe de ter sido “dedo duro” do FBI, sob o codinome T-10 (Olivia de Havilland, a amiga que aparece com ele num fotograma de Santa Fe Trail, fazia a mesma coisa: era a T-9). Entregava nomes de atores que suspeitava de esquerdismo, numa época em que os delatados perdiam o emprego. Em certos casos isso podia gerar tragédias familiares e até suicídios. Só em 1988, numa entrevista à BBC, Reagan finalmente reconheceu ter tido esse papel indecente.
Como escondeu o fato durante tanto tempo (mais de 40 anos), supõe-se que não se orgulhava do que fez, ao delatar colegas de profissão. Mas se afinal admitiu a verdade também pode ter sido simplesmente porque já tinham sido revelados alguns documentos secretos do FBI, em processos com base na Lei de Liberdade de Informação, sugerindo que de fato ele fora alcaguete. Esse era o verdadeiro Reagan.
Nas homenagens de cinco anos atrás, outros fatos esquecidos foram o apoio dele às ditaduras militares da América Latina, os banhos de sangue na América Central e a omissão ante o apartheid sul-africano. Faltou lembrar ainda o envio de fuzileiros em 1983 ao Líbano (241 foram mortos em atentado), a invasão dois dias depois da minúscula ilha de Granada (100 mil habitantes) no Caribe pela máquina de guerra do Pentágono, o ataque aéreo que matou a filha de cinco anos de Kadafi na Líbia, etc.
(Clique abaixo para ouvi-lo pedir, na cena dramática da sua morte no filme Knute Rockne, “mais uma vitória para o Gipper” – e depois, clicando em outras imagens, uma seleção de discursos e outros momentos de Reagan).
(Blog do Miro)
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