A benzedeira da tapera dos Azambuja
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Um conto de Cláudio Noronha, de Porto Alegre
Vivia em uma tapera em ruínas. De idade avançada, incerta, dizia ser da mudança do século. Sara era seu nome. Bíblico. Copiado de alguém que conhecera, ou pego para uso porque de fato gostara. Documento, nenhum. Profissão, benzedeira. De doença ruim, de praga jogada e de mau olhado. Escassa clientela naqueles anos que antecediam a virada do segundo milênio.
O rosto encarquilhado escondia em ilhas de cabelos e verrugas um par de olhos cor de mate. A boca, pateticamente ornada pelos raros dentes que sobraram, ocupava-se em mascar fumo. Cusparadas intermitentes desfaziam-se dos bagaços. Pouco tempo sobrava para falar. Quando o fazia, brotava da caverna de seu peito um som gutural, quase um estertor.
Aquele paciente terminal, quando menino, tinha sido levado, por parenta crédula, até os fundões de um campo de propriedade da família Azambuja, local dessa tosca vivenda, para benzer uma hérnia. A crença nos poderes terapêuticos da anciã jamais foi apagada da mente daquele homem. Agora, se debatia em luta desigual contra a morte, fustigado por dores lancinantes. Nos devaneios próprios da morfina, pedia que o levassem para uma benzedura, num dos confins de Encruzilhada do Sul. Acreditava piamente que, assim, Deus poderia aguardá-lo por mais uns anos.
Consultados os médicos que o atendiam e verificada a possibilidade da ambulância chegar até o ermo local, decidiram atender as súplicas do moribundo. Um primo encarregou-se de consultar a preta velha sobre a conveniência da visita. Ela não se recordava do doente, por certo, mas relutou muito até aceitar recebê-lo. Algo a intrigava. Não foram as notas de dinheiro oferecidas que a fizeram mudar de idéia. Ela, cabalmente as recusou. Foi por sua compaixão pela humanidade, sua aliada de todo o sempre.
A lenta e ruidosa aproximação da camioneta, driblando pedregulhos e buracos, em marcha lenta, por si só foram suficientes para provocar no íntimo daquela exaurida anciã uma agonia ofegante. Ao divisar a cadeira de rodas que começava a se aproximar, seus olhos estaquearam-se, escarrou, às golfadas, as sobras do tabaco que recém mascara. Levantou-se a muito custo. Firmou aquele traste mambembe em um arremedo de bengala e colocou sua mão no ombro do visitante. Deu início às rezas, assim presumiram os circunstantes. Suas palavras eram inaudíveis. Nisso, começou a ventar forte.
As três testemunhas do ocorrido narraram, posteriormente, o súbito calor, seguido de um calafrio, que sentiram naquele momento. O corpo inerte da curandeira caiu sobre o enfermo, que acabara de debater-se, exangue. Aquelas quase carcaças, já tão consumidas pela doença e pela idade, faziam com que duas viagens do veículo fossem prescindíveis.
29/1/2011
Fonte: ViaPolítica/O autor
Noronha é contista e enófilo. Assinou a coluna Boca de Bacco em ViaPolítica.
E-mail: ccnoronha@planitrade.com.br
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