domingo, 5 de fevereiro de 2012

Occupy W. Street

Criador do Occupy Wall Street quer novo partido nos EUA e reinvenção da esquerda

Muita gente nunca ouviu falar na revista Adbusters. Editada em inglês em Vancouver, no Canadá, a publicação com tiragem mundial de 120 mil exemplares tem como objetivo declarado desestabilizar as estruturas de poder existentes no mundo e forjar uma mudança na forma como as pessoas viverão no século 21. Missão impossível? O editor-chefe da revista, Kalle Lasn, garante que não. Foi com essa certeza que a modesta revista iniciou um movimento que promete abalar as estruturas do sistema politico norte-americano neste ano eleitoral.
Reprodução
Inspirado pelos acontecimentos da Primavera Árabe, Lasn e sua equipe criaram uma peça publicitária [imagem ao lado] em que uma bailarina pairava sobre o touro símbolo de Wall Street. O texto fazia apenas uma pergunta: “Qual a sua exigência?”, divulgava a hashtag #occupywallstreet e pedia para as pessoas levarem uma barraca para o centro financeiro de Nova York no dia 17 de setembro do ano passado.
O chamado catalizou a insatisfação, em especial dos jovens, com a crise econômica internacional, com a concentração de riquezas e com a influência cada vez maior das corporações sobre governos em todo o mundo. Milhares de pessoas atenderam ao pedido e ocuparam praças e outros espaços públicos nas principais capitais dos Estados Unidos e em mais de 1.500 cidades em 83 países. Lasn, um estoniano de 69 anos radicado no Canadá desde a década de 1980, ainda se surpreende ao analisar a dimensão do movimento. Nesta entrevista exclusiva ao Opera Mundi e à Carta Maior, ele fala da decepção com o governo de Barack Obama, explica por que é contra as corporações e como trabalha para criar um terceiro partido nos Estados Unidos.
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Como surgiu a ideia do Occupy Wall Street?
Quando começou a acontecer a mudança de regime na Tunísia, um momento muito excitante para o ativismo em todo o mundo e especialmente para nós, que vínhamos pedindo por esse tipo de revolução há 20 anos. Depois houve no Egito uma mudança de um regime duro instigada por jovens a partir do uso das mídias sociais e que levou as pessoas às ruas para exigir mudanças. Tudo isso nos fez pensar que nos Estados Unidos também há um tipo de regime. Não é como o do Egito, mas ainda assim é um regime que tem o poder, em que as megacorporações tem o poder de controlar Washington, o coração da democracia americana, e Wall Street, que tem o poder de controlar o destino econômico da América. Muitos jovens nos EUA sentem que todos os aspectos de suas vidas, como o tipo de sapato que compram, a música que escutam, ou a comida que comem, são de alguma forma controladas por poucas e poderosas megacorporações. Foi assim que começamos: precisamos de uma mudança de regime suave na América e como podemos realizá-la.
O que aconteceu depois de criado o slogan “Occupy Wall Street”?
O melhor a fazer era não tentar algo em Washington, mas sim em Nova York, e convocar as pessoas para ocupar o ícone do capitalismo global em Wall Street. Foi uma ideia muito poderosa naquele momento, quando muita gente odiava Wall Street pelo que aconteceu em 2008. Uma vez decidido que queríamos ocupar Wall Street, criamos um pôster, com a hashtag #occupywallstreet e assim que lançamos o feed no twitter as coisas começaram a ficar loucas. Passamos a divulgar os briefings táticos, enviando mensagens para as 90 mil pessoas que integram nossa rede global de ativistas e, aleluia, a ideia ganhou vida própria e agora estamos montados em um tigre.
O senhor se surpreendeu com a força do movimento?
Sabíamos que em Nova York seria uma grande explosão, um big bang. As pessoas estavam se organizando e bastante excitadas. O movimento chegou a Chicago e depois a Los Angeles, começou a cruzar fronteiras aqui no Canadá e, em meados de outubro, de repente havia mais de mil ocupações em todo o mundo. Nós apenas ficamos boquiabertos assistindo a tudo isso na Al Jazeera.
Gerrit van Aaken/Flickr.com

O senhor acompanha o avanço do movimento por outras cidades e países?
Sim, mantemos contato próximo com o máximo de pessoas possível. É como montar um tigre e é difícil monitorar todos eles, mas estamos em contato com as pessoas que organizaram as coisas originalmente no Zuccotti Park, com gente na Espanha, com ativistas em Londres e conhecemos muitos anarquistas na Grécia e pessoas de esquerda na Itália. Temos essa grande rede de contatos e as pessoas estão nos mandando informações o tempo todo de uma maneira muito efetiva.
O senhor é o líder do movimento?
Não, mas como iniciamos o processo e tivemos a ideia original, temos credibilidade. Há um ‘brainstorm’ global permanente acontecendo e a Adbusters faz parte dele. Uma das coisas maravilhosas, misteriosas e mágicas desse movimento é que ele nasceu sem liderança, sem demandas. Mas, como você sabe, sempre há líderes. Eles podem não se considerar líderes, mas no Zuccotti Park sempre havia alguém responsável pela área de mídia, outros encarregados da cozinha e trabalhando para que todos comessem bem. Os seres humanos por natureza têm os seus líderes. Por isso o movimento é complexo, um tipo de dança entre não ter líderes mas ter líderes, não ter demandas mas ainda assim ter demandas
É como o anarquismo?
Sim, é como o anarquismo. Você nunca sabe para onde está indo. É louco, muda todos os dias, mas há um tipo de liberdade, de espontaneidade. É como tocar jazz, como se todos os ocupantes fossem músicos que tocam uma música diferente a cada dia. Algumas vezes cantamos juntos e outras, separados. Improvisação é o nome do jogo e é por isso que o movimento tem sido um incrível sucesso ao lançar uma coalizão primeiro nos EUA e depois em outros países.
Qual sua avaliação do governo do presidente Barack Obama?
Todos acreditamos em Obama e na visão que ele apresentava. Mas assim que assumiu o poder ele começou a recuar em todas as decisões importantes que precisavam ser tomadas, como a questão dos presos em Guantánamo, a regulamentação do mercado financeiro e mesmo em relação à guerra no Afeganistão. Obama sempre ficou em cima do muro e não mostrou a ousadia que parecia ter. Ele deve ser reeleito, mas sem o apoio entusiasmado dos jovens americanos. E também porque os candidatos republicanos não têm carisma, visão e parecem um bando de perdedores.
Adbusters pretende apoiar Obama, como na eleição anterior?
Nós o apoiamos no passado. Ficamos tão impressionados com a visão dele sobre a direção que os EUA deveriam seguir, da política externa, mas estamos desiludidos. Este ano lutaremos pela criação de um terceiro partido nos EUA. Por muito tempo as opções políticas no país eram a Pepsi-Cola ou a Coca-Cola, os Republicanos ou os Democratas. As garrafas parecem diferentes, mas o conteúdo e o sabor são parecidos. A discussão sobre a plataforma do partido começará na Internet e se conseguirmos alguns milhões de pessoas para apoiar o novo partido faremos uma convenção. Não há qualquer chance de vencermos as próximas eleições, mas acho que podemos fazer o papel do desmancha-prazer e, em quatro ou cinco anos, teríamos possibilidades reais de nos tornarmos uma nova e poderosa voz política nos EUA.
Seria um partido de esquerda?
Não será necessariamente de esquerda porque a linha tênue que separa a esquerda da direita está em desordem há algum tempo. O fato é que tanto simpatizantes do Occupy Wall Street como do Tea Party estão desiludidos com o rumo dos EUA. De certa maneira, emocionalmente não há grande diferença entre o Tea Party e o pessoal do Occupy Wall Street. É claro que o pessoal do Tea Party, a direita política, odeia o governo e quer derrubá-lo. E nós não nos preocupamos com o governo, desde que seja eficiente, mas odiamos as corporações. Por isso acredito na possibilidade deste terceiro partido ser um estranho híbrido, unindo pessoas da esquerda e da direita.
Como vocês pretendem financiar o novo partido?
Há um grupo de pessoas tentando lançar um partido na Internet que conseguiu levantar alguns milhões de dólares com pessoas que acham excelente a ideia de um terceiro partido. Foi o que aconteceu com Obama. Ele surpreendeu todo mundo quando foi eleito ao conseguir doações de baixo valor de um grande número de pessoas. É possível para os jovens americanos enviar 25 dólares aqui, 50 dólares ali e com isso levantarmos milhões de dólares para realizar uma convenção. Também podemos conseguir milhões de dólares de alguns gatos ricos e gordos.
Atacar as instituições financeiras não é demogagia? Os bancos não são importantes?
A economia global e o atual paradigma econômico, neoliberal e neoclássico, estão totalmente no abismo. Temos uma economia global em que algo entre 1 trilhão e 3 trilhões de dólares são negociados diariamente em derivativos, swaps e todo tipo de instrumentos financeiros. Esse valor é 50 vezes maior do que as transações comerciais que significam alguma coisa para a economia real, para as pessoas de verdade, para os empregos de verdade. As pessoas que trabalham no mercado financeiro criaram um espécie de cassino global. São pessoas que colocam dinheiro aqui e dez minutos depois o transferem para outro lugar. 90% da economia mundial refere-se a fazer dinheiro em cima de dinheiro ad nauseum, sem nada real. Por isso há um sentimento muito forte no Occupy Wall Street de que esse cassino global precisa ser desmontado.
O problema então é o modelo, e não que o senhor seja contra os bancos
Não somos contra os bancos. Bancos são bancos, sempre estiveram e sempre estarão na praça. É claro que precisamos dos bancos, mas não precisamos que os bancos se tornem parte do cassino global. Precisamos de bancos que peguem dinheiro de quem tem dinheiro e o empreste para as pessoas comprarem uma casa ou começarem um negócio. Não precisamos que os bancos comecem a operar derivativos, swaps e nem que façam parte desse cassino global. Os bancos têm um papel que no momento está totalmente distorcido. Por isso os Estados Unidos estão em declínio. Por muitos anos pensou-se que poderíamos mandar nossas fábricas para a China, Indonésia e várias partes do mundo e, com a mão no mouse, apostar dinheiro no mercado financeiro à vontade. Só que agora começam a descobrir que isso não é uma fundação muito sólida para uma economia vibrante.
Mas e as pessoas que se beneficiaram do crédito fácil e irresponsável oferecido pelos bancos? Elas não têm sua parcela de culpa, ao tomar empréstimos que não tinham condições de pagar?
A única forma de a economia crescer num período em que os EUA mandavam suas fábricas para a China, Índia e Indonésia era apostar no mercado financeiro. Por isso os bancos estavam desesperados para emprestar para qualquer pessoa, inclusive desempregados. Gente sem condições de tomar empréstimos altos estavam recebendo empréstimos altos. Foi uma espécie de disfunção dentro do sistema americano, um problema cultural. De repente a cultura americana está ficando rota e eu responsabilizo algumas pessoas que tomaram aqueles empréstimos tanto quanto responsabilizo os bancos e o sistema financeiro. Eles são imorais.
O que leva alguém que nasceu na Estônia, viveu na Austrália, Japão e se radicou no Canadá a fazer política nos Estados Unidos?
Viajei muito quando tinha 20 e poucos anos. Fui à Índia, Afeganistão, Panamá e, para mim, o mundo é o mundo. Tudo está conectado e pude ver como as pessoas em alguns dos países mais pobres do mundo estavam sofrendo e levando uma vida terrível por causa da forma como o primeiro mundo tratava o terceiro mundo. Todos vivemos no mesmo mundo, e o que acontece com o Goldman Sachs ou o que algumas pessoas fazem em Wall Street pode me fazer sofrer aqui no Canadá, podem te fazer sofrer no Brasil, na Índia. Vivemos num mundo globalizado e temos que nos acostumar a isso. Não há nada estranho nem engraçado sobre uma pessoa que nasceu na Estônia e vive no Canadá lutar por um sistema diferente nos Estados Unidos.
Qual é o principal desafio para o movimento hoje?
Agora temos que saltar sobre o cadáver da velha esquerda política. A nova esquerda, formada por jovens liderados pela cultura da Internet, fez algo mágico acontecer e saltou sobre o cadáver da velha esquerda. O grande desafio agora é dos jovens de esquerda de todo o mundo, que precisam criar uma rede de contatos, fazer ‘brainstorms’ e descobrir se terão a coragem, a energia, as ideias e os programas para promover uma profunda transformação no capitalismo global. A esquerda terá a coragem, o poder e a resiliência para finalmente quebrar com esses terríveis 30 anos em que nos tornamos um bando de pessoas que choram, reclamam, apontam culpados, pessoas totalmente inefetivas que não fizeram coisa alguma? Esse é o grande desafio.
O senhor tem medo de ser preso?
Não.
Não acha que isso pode acontecer? Ser processado?
Bom, não sei. Moro no Canadá e tenho que ir aos Estados Unidos. Da próxima vez que eu cruzar a fronteira...diabos...talvez eu seja preso. Da última vez eu disse: ‘OK, na próxima semana tenho que ir a Seattle”. E pensei comigo: ‘Bom, eu provoquei muitos problemas nos EUA e talvez eles tenham me colocado numa lista de terroristas ou de pessoas procuradas pela polícia’. É muito desapontamento, há um regime brutal agora nos EUA, que usam mísseis por controle remoto para matar os próprios cidadãos acusados de terrorismo. Há uma ala da direita muito poderosa nos EUA. É muito assustador, portanto talvez eu pense duas vezes na próxima vez que tenha que ir. Talvez eu toque um tipo especial de jazz (risos).
(Operamundi)

Capitalismo

FST 2012: Boaventura vê capitalismo e suas sete ameaças
publicado em 30/01/2012

Por Antonio Martins
Fonte
Outras Palavras, em 28/01/2012
Sociólogo afirma, em Porto Alegre, que só é possível enfrentar crise ambiental atacando também desigualdade e declínio da democracia
“Por cinco séculos, a Europa procurou ensinar ao mundo sua forma de enfrentar as crises e vencê-las. Fez isso com ideias e guerras, com missionários e genocídios. Mas se esqueceu que detinha apenas uma parte do conhecimento. Fechada em si mesma, não pode mais aprender. Por isso, está à beira de um abismo, do qual dificilmente escapará.
No meio da manhã desta quarta-feira (25/4), o sociólogo português Boaventura Sousa Santos está abrindo uma conferência para cerca de trezentas pessoas, que participam do Fórum Social Temático (FST), em Porto Alegre (sul do Brasil) e municípios de sua região metropolitana. O FST é um desdobramento, em pequena escala, dos Fóruns Sociais Mundiais (FSMs), lançados na mesma capital em 2001. Debate um assunto específico (“Crise capitalista, justiça social e ambiental”). Reúne cerca de 10 mil pessoas. Mas mantém, como todas as edições do FSM, a mesma aposta num futuro de democracia radical, relações sociais baseadas na garantia dos direitos humanos e fim das hierarquias internacionais que dividem o planeta entre “centro” e “periferia”.
Outra cidade brasileira, o Rio de Janeiro, sediará, em junho, a conferência Rio+20, da ONU. Por isso, a crise ambiental é um tema-chave em Porto Alegre. Boaventura discorda da abordagem que se dá tradicionalmente a ela. “Um primeiro problema é a disputa pela definição da natureza da crise”, diz ele. “Vê-la como mera mudança climática é muito reducionista. A crise é econômica, financeira, energética, ambiental, civilizacional”. O sociólogo chega, então, ao primeiro ponto central de sua análise. “Como disse Marx, as microirracionalidades do capitalismo conduziam à marcroirracionalidade da vida”.
Nos próximos 50 minutos, a fala densa de Boaventura tentará destrinchar as “sete ameaças” em que se desdobra esta marcoirracionalidade. Na plateia, dezenas de pessoas registram seus argumentos em cadernos, fotografam a sociólogo com câmeras ou celulares ou simplesmente acompanham a exposição de suas ideias.
Das ameaças elencadas por este professor das universidades de Coimbra (Portugal) e Madison (Estados Unidos), quatro estão diretamente relacionadas à crise da democracia; as outras três, à desigualdade e, em particular, ao poder que as grandes corporações alcançaram para contornar os poderes tradicionais e se apropriar da riqueza coletiva por meio de mecanismos sobre os quais as sociedades não conseguem ainda incidir.
A primeira ameaça é, para Boaventura, a desorganização do Estado. “O capitalismo, em sua forma atual, já não precisa da democracia”, diz ele. Por isso, dois países da Europa (Itália e Grécia), além do Banco Central Europeu, são governados por “vice-reis”, antigos executivos do banco de investimentos Goldman Sachs. E os Estados, que durante séculos basearam seu poder na arrecadação de impostos, agora eliminam tributos e se orgulham de manter suas funções apoiando-se nos mercados financeiros.
“Mas as dívidas que eles fazem precisam ser pagas um dia, e os cidadãos estão sendo chamados a contribuir pesadamente para este pagamento”, pensa o sociólogo. O pior, no caso europeu, é um desenvolvimento particular da “síndrome de Estocolmo”, fenômeno que leva as vítimas de um sequestro a se identificarem com seus algozes. “Para vocês, na América Latina, o que estamos vivendo é um déjà vu. Para sair da crise, América Latina, Ásia e África, aprenderam a desobedecer. A Europa não quer fazê-lo porque sempre se viu como parte dos que comandam…”.
Em paralelo à desorganização do Estado, caminha a desconstrução da democracia, segunda identificada por Boaventura. “O regime democrático costumava ser mais que o direito elementar de depositar um voto numa urna. Significava ter acesso a saúde, educação, bem-estar. Esta parte da democracia foi sequestrada pelo neoliberalismo. E já nem precisam de ditaduras, porque a própria democracia tornou-se uma ditadura, neste aspectos. Está emergindo um totalitarismo gradual, diferente do fascismo. Os direitos mais elementares são cortados. As sociedades conservam-se formalmente democráticas, mas socialmente fascistas”.
Os dois outros riscos relacionados com o sistema político são criminalização da dissidência e a recolonização da diferença. Para abordá-los, Boaventura refere-se a um caso conhecido dos que o escutam. A cerca de mil quilômetros de Porto Alegre, o Brasil viveu, neste domingo (22/1), um ataque brutal do Estado a um direito social. Dois mil soldados da Polícia Militar desalojaram, em nome do direito à propriedade, 6 mil pessoas que haviam ocupado e transformado em bairro, o Pinheirinho – uma área abandonada, pertencente a um grande especulador nos mercados financeiros.
“O que ocorreu no Pinheirinho”, diz o sociólogo, “é uma pequena mostra do que se passa num continente onde os mapuches chilenos são aprisionados por resistirem ao desmatamento e às mineradoras, onde os indígenas são mortos no Peru quando querem defender suas terras das transnacionais que cobiçam o subsolo”. Ele prossegue: “Além de criminalizar os dissidentes, o sistema que reenquadrar os diferentes. Ao contrário do que podíamos pensar, racismo está de volta e com força. Não há sinal de que sexismo tenha terminado, nem de que as diferenças sexuais sejam respeitadas”. Estas manifestações são resquícios da dominação colonial, que agora derivou em preconceito”.
Para Boaventura, este reaprisionamento do Estado e ataque à democracia está relacionado com três movimentos do capital para apropriar-se da riqueza produzida coletivamente. O primeiro é a devastação acelerada da natureza, tema da Rio+20. “Ela é real é importantíssima, mas não existe sozinha. Nos últimos vinte anos, grandes transnacionais – principalmente as que atuam com transgênicos, agronegócio, medicamentos, conquistaram poder inédito. Nos Estados Unidos, por exemplo, elas são capazes de manter três lobistas para cada membro do Congresso”.
Boaventura não crê no chamado “capitalismo verde”. Ele apoia esforços como o de buscar fontes limpas de energia, mas pensa que serão vãos, caso as sociedades não evoluam para novas formas de produção e consumo. “E aqui – diz – as metrópoles terão um papel fundamental, porque é onde viverá, em breve, a maioria dos habitantes do planeta. O consumo responsável precisa ir além de guardar convenientemente o lixo. Ele precisa identificar os componentes dos produtos onde há sangue – meu celular, por exemplo, produzido com componentes extraídos dos territórios de antigas comunidades africanas. E pode empregar a força coletiva das metrópoles para distinguir o que não merece ser consumido ou produzido”.
A segunda ameaça relacionada a ataque a direitos sociais é a desvalorização do trabalho, ou empobrecimento generalizado dos povos. “Falamos do precariado (os trabalhadores que não têm direitos sociais) e do ciberiado (os que são obrigados a se manter todo o tempo ligados à internet, para produzir). O problema é que esta confusão entre tempo de trabalho e tempo livre s está produzindo dividendos para o capital. Trabalha-se no escritório, no ônibus, em casa. Os tempos livres, quando existem, estão todos colonizados pelo consumo. Passa-se o tempo em shopping centers – e depois, trabalhando novamente, para pagar as contas do consumismo…
“Em paralelo, há um regresso às formas de exploração que foram, no passado, caracterizadas como ‘acumulação primitiva’ de capital. Expulsam trabalhadores de suas terras. Eliminam-se direitos, como salários, subsídios, pensões. Isso é um terrorismo de Estado, promovido pelos Estados em tempos chamados de… ‘democráticos’!”.
A sétima ameaça é, para Boaventura, a comercialização do conhecimento. “Tenta-se fazer o que não se conseguiu até agora, que é destruir pensamento crítico. As Universidades – inclusive parte das que são públicas – valorizam o conhecimento segundo seu valor de mercado. Não se considera mais a curiosidade científica. Nos Estados Unidos, em certos departamentos de Biologia, há professores que só se promovem se ao seu lado houver uma empresa financiadora. Eu pergunto: qual o valor das humanidades, da poesia ou da literatura, neste sistema?”
Boaventura vê novos desafios para os movimentos que se articulam em torno do Fórum Social Mundial, nesta nova fase. “Estou em Porto Alegre para relançar, num conjunto de seminários, a Universidade Popular dos Movimentos Sociais. As oficinas que começamos a realizar mostram claramente que movimentos precisam se articular como nunca fizeram antes. Mulheres com operários, lésbicas com os que constroem a economia solidária, camponeses e pequenos empreendedores, muitas outras combinações. Se as ameaças estão bem articuladas, os movimentos também precisam preparar-se para isso.
Segundo o sociólogo português, três desafios podem inspirar estas articulações: os de democratizar, descolonizar, desmercantilizar.
“Democratizar exige radicalidade”, diz ele. E explica: “Defino socialismo como sinônimo democracia sem fim, em todos os espaços. Não apenas nas instituições – mas no trabalho, em casa, na cama, Os partidos têm de entender que não têm o monopólio de representação política. Nem os movimentos, aliás, o têm. Estamos caminhando para um tempo de presenças. Presenças coletivas na rua, ocupando espaços que o capital reivindica, não ligadas necessariamente a um movimento instituído.
“Já no esforço por desmercantilizar a vida, as cidades têm papel enorme. É preciso retirar da esfera do comércio mercantil dimensões como as a cultura, a mobilidade urbana, as vivências, a sociabilidade. Os resultados são imediatos. Por exemplo: a cultura, que está sendo banalizada, ressurge imediatamente como espaço de resistência, quando tratada como um direito e uma inspiração humana”.
Ao abordar a descolonização, Boaventura – que apoia os governos de Dilma Rousseff na presidência do Brasil e do governador Tarso Genro, no estado do Rio Grande do Sul, lança-lhes algumas alfinetadas. “O Brasil, que tem criado tantos bons paradigmas, não pode estar ao lado do neoliberalismo, nem orgulhar-se do ‘novo’ Código Florestal, ou de abreviar os processos de licenciamento ambiental para apressar algumas grandes obras”.
O sociólogo confessa, ao final: “Sou um otimista trágico. Acredito nas mudanças do mundo, mas sei que elas custarão enorme esforço, mobilização, às vezes dores”. Ele faz previsões para os anos 2010: “sta década vai exigir líderes mais esclarecidos, mais imaginativos; e movimentos sociais mais aguerridos. A luta contra fascismo social faz-se nas instituições, mas também na defesa, nas ruas, de uma democracia sem fim.
A fala de Boaventura ocorreu no âmbito de uma das principais atividades do FST: um seminário organizado em Canoas, pela rede que organizada o Fórum de Autoridades Locais de Cidades de Periferia (FALP). Criada em 2006, no I FALP, realizado em Nanterre (periferia de Paris), esta articulação promoveu um segundo encontro em 2010, em Getafe (periferia de Madri). Prepara um III FALP em Canoas, em junho de 2013.. Será o primeiro no hemisfério Sul. Espera-se que reúna mais de mil autoridades, de 200 metrópoles do planeta. O seminário inaugurado dia 25 é preparatório para a atividade do próximo ano.
A conferência do sociólogo foi antecedida por exposições de autoridades gaúchas e brasileiras. O presidente da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, Adão Villaverde, destacou a importância de adotar, a partir das cidades de periferia, dinâmicas de democracia participativa. “Está em nosso poder criar estruturas de partilhamento. Não significa deixar de tomar decisões, de ser positivos. Mas temos várias experiências de participação real e podemos multiplicá-las”, frisou.
O prefeito de Nanterre, Patrick Jarry, saudou a disposição de Canoas, de sediar o III FALP Sustentáveis”. Sobre a valorização das periferias de metrópoles, destacou: “Não queremos ser os invisíveis de um planeta que está se tornando majoritariamente urbano. O olhar da periferia, seus desejos e escolhas não podem ser submetidos. Para que outro mundo seja possível, nossos territórios de periferia jogarão um papel essencial”.
Muito aplaudido por um público formado principalmente por habitantes de Canoas, o prefeito da cidade, Jairo Jorge, citou o escritor italiano Italo Calvino, para quem “não importam numa cidade suas 7 ou 77 maravilhas. Mas as respostas que dá a suas perguntas”. Frisou que “há novas perguntas, para novos problemas. As mudanças climáticas, por exemplo, não derrubam apenas as pedras das cidades. Elas tragam vidas, que estão na maioria das vezes na periferia das regiões metropolitanas”. Concluiu afirmando que “é preciso debater uma agenda que apresente voz da periferia. Ela significa propor um novo conceito: o metrópoles solidárias, democráticas, sustentáveis – e livres de preconceitos.

(Outras Palavras)

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Armas Nucleares

Armas nucleares: da hipocrisia à alternativa
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Enquanto alguns dos países mais armados do planeta apontam o dedo para o Irã, campanha da sociedade civil sugere abolir de fato os artefatos atômicos — e deixar de dividir o mundo entre as nações que têm as bombas e as outras. Discurso de Lula apoia proposta
(05/04/2010)
(atualizado em 14/4/2010) _ Assim, que terminou ontem (13/4), em Washington, a Cúpula de Segurança Nuclear (Nuclear Security Summit), convocada pelo governo dos Estados Unidos, a mídia internacional chamou atenção para... Teerã. Iniciativa de Barack Obama, a cúpula tem importância real. Seu objetivo é evitar que a ameaça da explosão de armas atômicas se multiplique, num mundo em que o uso da energia nuclear crescerá e em que a há, de fato, grupos terroristas dispostos a praticar qualquer tipo violência, em nome (ou a pretexto...) de suas causas. Mas, muito antes de produzirem efeitos, os compromissos assumidos por 46 países estão sendo empregados para ampliar as pressões dos EUA e Israel contra o desenvolvimento de tecnologia nuclear pelo Irã – que não possui, até o momento, nenhuma arma atômica.
Esta distorção pode ser explicada, em boa medida, pela existência, desde 1968, do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP). Apesar de seu nome cativante, ele é intrinsecamente injusto – e por isso tem se mostrado cada vez menos eficaz. Divide o planeta em duas classes de países: de um lado, os que podem se armar com os dispositivos de destruição da vida mais poderosos já criados pelo ser humano; de outro, todos os demais.
Entre 3 e 28 de maio próximos, uma conferência da ONU, em Nova York, debaterá a revisão do TNP. Um conjunto de organizações da sociedade civil está aproveitando esta oportunidade para defender uma proposta pacifista fundamental. A ideia é substituir o tratado hoje existente por um Convênio sobre Armas Nucleares que proíba a produção de armas atômicas por qualquer país; e que estabeleça um cronograma claro para desmantelar os estoques hoje existentes. Ao discursar em Washington, em 13/4, o presidente brasileiro defendeu explicitamente algo idêntico: "a completa e irreversível eliminação de todos os arsenais".
A necessidade de um compromisso internacional que supere o TNP pode ser compreendida num conjunto de textos disponíveis na Biblioteca Diplô. O primeiro deles é Sessenta anos de armas nucleares, escrito em novembro de 2005, por Georges Le Guelte. Ele narra, em suas diversas fases, o esforço travado pelos países que detêm armas atômicas para evitar que outras nações o façam – e revela como este jogo representa um risco crescente para a humanidade.
Primeiros a desenvolver a energia atômica e as armas nucleares, os Estados Unidos proibiram, mostra Le Guelte, a divulgação de qualquer informação relativa às novas tecnologias, entre 1942 e 1954. Nesse ano, a União Soviética explodiu sua primeira bomba, somando-se imediatamente aos norte-americanos na busca da exclusividade. A tentativa voltou a fracassar. Doze anos depois, quando foi assinado o TNP, mais três nações dominavam o ciclo completo de produção de armas atômicas: Reino Unido, França e China.
Mas os sucessivos fracassos não os impediram de insistir no mesmo erro. O TNP divide explicitamente o mundo entre os “Estados dotados de armas” – que haviam conseguido explodir algum engenho até 1º de janeiro de 1967 – e os que “deveriam se comprometer a não tentar obtê-las, e a colocar todas as suas instalações nucleares sob o controle da Agência Internacional para Energia Atômica (AIEA)”.
A desigualdade era tão flagrante que, num primeiro momento, a grande maioria das nações recusou-se a aderir ao TNP. Algumas, como Alemanha, Japão e Itália, denunciaram abertamente seu caráter de submissão. O acordo só adquiriria algum peso internacional em meados dos anos 1970: o avanço dos movimentos pacifistas (e a inexistência de uma alternativa) acabou sendo utilizado pelos defensores do TNP para apresentá-lo como o “acordo possível”. O número de aderentes cresceu então sem cessar, até chegar aos 187 países hoje firmantes.
Por trás desta aparente unanimidade, porém, o armamento prosseguiu. O chamado “clube atômico” foi engrossado, declaradamente, por Índia, Paquistão e Coreia do Norte. Israel assumiu a condição única de um Estado com armas nucleares não-declaradas. Este número tende a aumentar rapidamente, argumenta o mesmo autor em No embalo da globalização sem lei. Novas tecnologias (como o enriquecimento de urânio por meio de centrífugas) tornaram o processo de produção mais acessível e dissimulável. Pelo menos Alemanha, Bélgica, Holanda, Suíça, Japão e Coreia do Norte acumularam quantidades de plutônio e urânio enriquecido capazes de produzir armas rapidamente. O mesmo poderia ocorrer com Irã, Arábia Saudita, Egito, Síria e Turquia – sem falar de Brasil e Argentina, que também adquiram conhecimentos técnicos importantes. Ainda mais grave é o fato de os Estados Unidos terem adotado, em janeiro de 2002, uma Revisão da Postura Nuclear (Nuclear Posture Review) que permite a seu presidente utilizar as armas atômicas como outras quaisquer, a depender apenas de considerações sobre a missão militar a ser alcançada.
Dois outros textos da Biblioteca chamam atenção, em particular, para a hipocrisia adotada por Washington em relação ao Irã. Em janeiro de 2005, Walid Charara sugeriu, em Quando os Estados Unidos provocam um confronto, que a oposição norte-americana ao suposto interesse de Teerã em armas nucleares pode ser apenas um pretexto. O que os EUA desejariam, na verdade, é a derrubada do regime de República Islâmica. Já em O direito à tecnologia, Cyrus Safdari associa o contencioso entre os dois países à tentativa dos EUA de privar o adversário do uso pacífico da energia nuclear. Ele lembra: ao contrário do que geralmente se supõe, as reservas petrolíferas do Irã estão em declínio e a necessidade de diversificar as fontes de energia é real.
Se o TNP é tão injusto, que significa exatamente a alternativa de um Convênio sobre Armas Nucleares, que proíba sua pesquisa, teste e armazenamento por qualquer país? Para responder a esta pergunta, a Biblioteca sugere, em primeiro lugar Desarme Nuclear: há llegado la hora. Produzido por Dimity Hawkins, e publicado pela Agência IPS, o artigo relata que, além de apoiada por uma coalizão de organizações da sociedade civil, a hipótese de um novo acordo foi aprovada, em mais de uma ocasião, por mais dois terços das nações presentes à Assembleia Geral da ONU. (Antonio Martins)
(Outras Palavras)

Assassinatos

Assassinato seletivo: serve para provocar a guerra

EUA e Israel criam nova doutrina dos 'assassinatos seletivos preventivos'
Por Reginaldo Mattar Nasser
Está circulando pelos blogs e redes sociais trecho de um programa de TV paga em que um dos comentaristas, Sr Caio Blinder (assista aqui e aqui) ) , apoia o “assassinato” de cientistas que participam do “programa de enriquecimento de urânio do Estado Terrorista iraniano”. Argumenta que é “preciso matar gente agora” para evitar mais mortes do futuro, além do que, acrescenta, “você intimida outros cientistas”. O tema já foi intensamente debatido nos EUA, em 2007, quando o professor de direito Glenn Reynolds criticou o presidente Bush por não fazer o suficiente para parar o programa nuclear iraniano (vejam só Bush acusado de ser soft demais!) e, em seguida, defendeu que os EUA deveriam assassinar líderes religiosos e cientistas nucleares iranianos com o objetivo de intimidar o governo do Irã. Portanto, se nos EUA a justificativa para esse tipo de crime não é algo incomum, no Brasil - salvo engano meu - é a primeira vez que aparece publicamente nos meios de comunicação e por isso julgo necessário tecer algumas considerações.
Casos
"90% das mortes de norte-americanos no mundo ocorrem devido à utilização de armas e munições produzidas no próprio EUA. Portanto, somos tentados a concluir que os responsáveis pela indústria bélica (armas leves) nos EUA deveriam ser assassinados, pois evitaria a morte de milhares de norte-americanos"
No dia 11 de Janeiro de 2012, Ahmadi Roshan, engenheiro químico da usina de enriquecimento de urânio de Natanz, foi assassinado nas ruas de Teerã após explosão de uma bomba em seu carro. É mais um de uma série de acontecimentos similares. Em dezembro de 2011, sete pessoas morreram em uma explosão em Yazd. Em 28 de novembro, uma bomba explodiu nas instalações nucleares em Isfahan. Em 12 de novembro, 17 pessoas foram mortas por uma explosão perto de Teerã.. Em 29 de novembro de 2010, o cientista Shahriari foi morto da mesma forma como Roshan, com uma bomba plantada em seu carro. Em todos os casos as autoridades dos EUA e de Israel negaram veementemente qualquer envolvimento.
Mas qual é o problema? De forma declarada ou encoberta tanto EUA, como Israel, sempre adotaram a tática do assassinato seletivo. Desde 11 de setembro, o governo dos EUA tem realizado operações similares (“assassinatos seletivos”) mesmo fora dos campos de batalha do Afeganistão e do Iraque, como no Iêmen, Paquistão, Somália, Síria e possivelmente em outros lugares, causando a morte de mais de 2 mil supostos terroristas e de incontáveis vítimas civis. A justificativa está fundamentada numa autorização legal, aprovada na Câmara e no Senado, atribuindo ao presidente o poder para adotar as medidas que julgue necessárias para impedir ou prevenir atos de terrorismo internacional contra os Estados Unidos.
Nova doutrina
É importante notar que até pouco tempo atrás a justificativa para assassinar civis pressupunha a participação direta desses nas hostilidades. Quando se diz que um assassinato seletivo é "necessário" entende-se que matar era a única maneira de evitar um ataque iminente. Mas no caso dos cientistas é praticamente impossível afirmar que matá-los era necessário para impedir o Irã de lançar um ataque nuclear iminente contra Israel ou qualquer outro país. A não ser que haja uma nova doutrina em formação: “assassinato seletivo preventivo”
Voltando ao porta-voz brasileiro dos fundamentalistas norte-americanos, o sr. Blinder, que é uma pessoa bem informada, sabe que além da quantidade e qualidade de urânio ou plutônio, a produção de armas nucleares também requer os meios para levá-las ao seu destino (mísseis e ogivas). Portanto, é um projeto que envolve grande quantidade de cientistas, engenheiros e operadores. Levando à extremidade lógica o argumento dos fundamentalistas, será preciso assassinar mais algumas centenas ou mesmo milhares de pessoas. Claro, com o nobre objetivo de evitar mais mortes! Aliás, 90% das mortes de norte-americanos no mundo ocorrem devido à utilização de armas e munições produzidas no próprio EUA. Portanto, somos tentados a concluir que os responsáveis pela indústria bélica (armas leves) nos EUA deveriam ser assassinados, pois evitaria a morte de milhares de norte-americanos? A ser levada a sério essa proposta (assassinato de cientistas), não é improvável que os congressos científicos internacionais acabem se convertendo em um verdadeiro festival de tiroteios e bombas. Aliás, o suposto efeito da intimidação, pressuposto dessas ações, está gerando um efeito oposto. Cerca de 1.300 estudantes universitários iranianos pediram para mudar as suas áreas de estudo para o campo das ciências nucleares após o assassinato. Veja só Sr Blinder! Será preciso eliminar esses estudantes também porque um dia eles serão cúmplices do projeto nuclear iraniano!
Obama
Dentro da mesma linha de raciocínio o proprietário do Atlanta Jewish Times, Andrew Adler, pediu desculpas na semana passada depois de sugerir que o assassinato do presidente Obama era uma opção que deveria ser considerada pelo governo israelense, conforme relatado pelo Huffington Post (veja aqui). De acordo com Adler, Israel tem apenas três opções disponíveis para se manter seguro: 1. atacar Hezbollah e o Hamas, 2. destruir as instalações nucleares do Irã; 3. assassinar Obama!
Estranhamente o “assassinato seletivo” ocorreu três dias após a afirmação do secretario de Defesa dos EUA de que era improvável que os iranianos estivessem tentando desenvolver uma arma nuclear e no momento em que governo iraniano reiniciava as negociações com o grupo (P5 +1) para autorizar a realização de uma visita de delegados da Agência Internacional de Energia Atômica em seu pais.
Fica claro que o objetivo do assassinato dos cientistas é provocar uma forte reação da linha dura iraniana justificando, dessa forma, os famosos ataques preventivos. De acordo com reportagem na Foreign Policy (leia aqui), que teve acesso a memorandos elaborados pelo governo Bush, a Mossad usa as credenciais da CIA para recrutar membros da organização Jundallah (considerada terrorista pelo governo dos EUA) para lançar ataques contra o Irã. Como notou o analista internacional, Pierre Sprey, vivemos um daqueles raros e perigosos momentos da história, quando o “Big Oil” e os israelenses estão pressionando a Casa Branca na mesma direção. A última vez que isso aconteceu resultou na invasão do Iraque.
Reginaldo Mattar Nasser é professor de Relações Internacionais da PUC (SP) e Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP.
(C. Amigos)

Pensamentando

Depois do fim do mundo


Escrito por Gilvan Rocha
Qua, 08 de Junho de 2011 17:19

Em sentido figurado, podemos afirmar que o fim do marxismo foi anunciado tantas vezes quantas vezes foi o fim do mundo pelos apocalípticos. O primeiro anúncio do fim do marxismo partiu de certo senhor de nome Eugênio Duhring. A Engels foi dada a tarefa de responder a esse senhor, e daí nasceu um dos maiores clássicos da literatura socialista, sob o título de Anti-Duhring, e Duhring desapareceu de cena.

Outro momento de comoção foi o advento do imperialismo como decorrência do desenvolvimento do capitalismo, que trouxe algumas mudanças de natureza quantitativa. Sociedades de capital aberto, diminuição da fome na Europa Ocidental e o crescimento da atividade parlamentar foram as novidades que provocaram certa confusão.

Eduardo Bernstein anunciou que o marxismo teria que ser revisado, pois fora concebido em outra fase do capitalismo, quando não se conhecia esses novos fenômenos. Ainda bem que ele mereceu pronta resposta, dentre outros, da genial Rosa Luxemburgo.

Disse ela: as sociedades de capital aberto não significam a democratização do capital em oposição à concentração deste, como houvera anunciado Marx. Essas sociedades serviam e servem para que o grande capital se aposse das poupanças feitas pelas massas populares, na vã ilusão de se tornarem, também, capitalistas.

Quanto à tese do Sr. Bernstein de que a miséria crescente, anunciada por Marx como característica do capitalismo, havia diminuído, Rosa mostrou que ela havia apenas sido transferida geograficamente. Quanto à via eleitoral, como meio para impor a superação do capitalismo, esse senhor demonstrava não entender a diferença entre governo e poder.

Noutro momento, o marxismo foi descaracterizado com a imposição do "marxismo-leninismo", que substituiu os princípios do socialismo científico por um conjunto de dogmas.

Na verdade, quem mais andou perto de impor o fim do marxismo foram os 90 anos de hegemonia do stalinismo, e aí estamos certos de que o fim do socialismo, sua derrota completa, será, inevitavelmente, o fim do mundo.

Gilvan Rocha é membro do Centro de Atividades e Estudos Políticos – CAEP.

Blog:www.gilvanrocha.blogspot.com/


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Sexo
Em busca do que é trans
Esta coluna quer percorrer o poder subversivo do desejo de irromper as ruas com o corpo errado, com a roupa errada, com o gesto errado, com a velocidade errada. Ali há desejos de romper amarras, de balançar os fascismos estabelecidos, há desejo mais forte do que a disciplina e o controle
Fabiane Borges, Hilan Bensusan
(29/02/2008)
Eu expliquei para o doutor Grinder, com a voz que eu uso para explicar como fazer para que o mingau de maizena não fique embolotado:
— Meu distúrbio de identidade de gênero? É que eu não consigo ser nem só homem e nem só mulher, qualquer um parece pouco. Não parece razão suficiente para uma dysphoria?
Para alguém que sempre quis ser uma super-heroína, ser a femme fatale, ou ser o amante de todas as femmes fatales, ou de todas as velhas que ainda ardem de vontade, e os estranhos de sexualidade duvidosa, e também estar com os homens indiscriminados — eu queria ser tudo isso, tudo. Parecia que para alguém como eu, que sempre quis ser poderosa e preparado, era evidente que qualquer das duas opções sexuais postas no mercado era pouco, pouco demais. Assim como eu levantava alterado todos os dias e passava duas horas tentando fazer meu tornozelo se acostumar com as sapatilhas de ponta, eu queria minha genitália com tudo o que eu decidira na tora que eu tenho direito — e mais peitos e tira peitos e pierce nos peitos e nos glúteos – e o doutor Grinder era quem botava barreiras entre meu desejo de ter o corpo que eu precisava para viver a minha vida e a cirurgia:
— Bi, ele falou, você já experimentou ser uma pessoa bissexual?
— Uma mulher bissexual? Uma mulher bissexual é uma mulher, não é?
Eu nasci com os trejeitos de heroína incontida, anatomia é destino e no meu destino quem manda, bem, sou eu mesma e não tem pra ninguém. Eu e o bisturi do doutor Grinder; eu disse: não é sobre o que eu faço, é sobre o que eu sou e eu não tenho medo do perigo e nem da angústia de ultra-ser um corpo envaginado, de sobre-ser um corpo com tromba, quero me enfiar e ser enfiado. Quero poder ser bicha, poder ser toda lésbica e passar noites lambendo e esfregando tratando meu pinto ereto como se fosse um clitóris e com meus dois sexos passar anos no celibato se eu quizer e sem espelhos. Quero uma genitália com direito a tudo e esta volúpia merece encontrar a faca.
— Você não acha que está querendo demais?
Agora ele ficava fominha, meu desejo é muito pra faca dele? Meu desejo ele não dá conta, o bisturi dele broxa com tanto tesão de "dar" uma "enfiada"!! O que fazer? Procurar um mago polonês cavalgando pelo Atacama com os trechos mais judaicos da bíblia no dorso e uma matula com tâmaras secas e um bisturi de condão?
O mercado suga a força dos desejos. O poder subversivo do desejo trans é o poder de escapar da ordem estabelecida e invoca a força daquilo que rompe. Política, política, política
* * *
Riki Wilchins (em Birth of the Homosexual, em Read My Lips) imagina uma pessoa de nariz grande querendo uma cirurgia para diminuir o nariz. O médico pergunta por que: eu sempre me senti uma pessoa de nariz pequeno aprisionada no corpo de uma pessoa de nariz grande. O médico não pode fazer a cirurgia enquanto não tiver um diagnóstico de um psiquiatra que ateste que aquela é, apesar das aparências, uma pessoa de nariz grande. A política dos corpos é a política da viabilidade da vida – da aceitabilidade de certas formas de vida. Muitas vezes a política dos corpos é pensada em termos de identidades: corpos implicam identidades, genitálias implicam identidades sexuais (melanina implica identidades raciais etc.). As identidades permitem um reticulado de nós contra eles. Promovem a política das torcidas, a política das filiações: agir em nome de um grupo que é demarcado mais ou menos antes de qualquer política. Identidades são uma forma de política entre muitas: uma forma de biopolítica, uma forma de manejo de corpos, uma forma de controle de sexualidades.
Esta coluna gira em torno de políticas da sexualidade e da sexualidade das políticas. Aqui surgem discussões sobre intersexo e toda a interface entre o pessoal, o biológico e o político. Nos interessa o que é trans: transgressor, transexual, transformista, transitório, transviado, excessivo. Aqui aparecerão feminismos, gêneros, diferenças sexuais, troca de órgãos, troca de corpos, troca de desejos. Transformações, cirurgias, esculturas hormonais — e o confinamento dos desejos pela medicalização, pela precarização que bloqueia os excessos, pelo medo. Os desejos pertencem à ordem dos contatos, dos contágios, das contingências que perpassam os corpos — cada poro de cada corpo está em disputa. Políticas as células, políticos os hormônios, políticas as dobras, políticos os neurônios. O que constitui um órgão sexual? Não acreditamos mais no esgoto a céu aberto que separa a alma da genitália. Queremos imaginar uma genitália sem órgãos, uma genitália que, como quis a Alex, do filme XXY, não precisa decidir: não precisa ser submetida aos contornos de nenhum órgão pré-imaginado. Nesse espaço surgem as distopias, as utopias e as heterotopias das constituições sexuais: os paus lésbicos, os prazeres minúsculos, as bucetas contrácteis, as máquinas de fazer orgasmo. Esbarramos com cyborgues, com mutantes, com nomadismos sexuais, as Dasputas e outras que fazem valer o zarô, cada centavo do eqüe. Não estamos à procura de novas identidades – queremos o esquizo que fica posto em baixo do tapete de todas as formas de sexo. Nos interessam as identidades que surgem: nem aquelas que se mantêm e nem aquelas que se corróem. A política dos corpos está contaminada de devires: aquilo que ainda não é, mas desponta, aquilo que coabita no emaranhado ecológico que forma os desejos, aquilo que pode vir a ser – a potência empapuçada de ato. Corpos podem ser usados, interferidos, operados, simulados, desviados. E só quando encontramos órgãos é que a anatomia é destino.
Esta coluna quer percorrer o poder subversivo do desejo de irromper as ruas com o corpo errado, com a roupa errada, com o gesto errado, com a velocidade errada. Ali há desejos de romper amarras, de balançar os fascismos estabelecidos, há desejo mais forte do que a disciplina e o controle – é a força da singularização que escapa das matrizes de inteligibilidade, das expectativas das interpretações e dos cálculos de qualquer mercado. E se liga! É um instante. O poder subversivo do desejo trans é o poder de escapar da ordem estabelecida e invoca a força daquilo que rompe. Política, política, política. O mercado suga a força dos desejos, cria um perfil do consumidor – que é sua matriz de inteligibilidade. Sem a matriz não há ordem, não há expectativa. A matriz é a política: dela sai a heterosexualidade compulsória, a vontade de família e propriedade (não necessariamente nessa ordem) e a binaridade dos sexos.
Anne Fausto-Sterling (The five sexes) já famosamente diagnosticava: pelo menos cinco sexos, três dos quais jogados no limbo da cirurgia de normalização. Tem uns que evocam eleven. É a força dos desejos que move as brechas nas matrizes – não há subversão sem desejo. Nesta coluna não há obsessões com porcas e parafusos fixos, pois nem somos feitas de aço inoxidável e nem de desejos curáveis. Esquizo. O esquizo escapa. Que tal eu virar Elke Maravilha e depois Barack Obama e depois Herculine Barbin e depois Max Ernst com formas de Carla Peres antes de você terminar de gozar? Não aceitamos a tirania das monoidentidades e queremos passar a portar mais de um equipamento sexual, seremos portadores de mais de uma fissura retroativa em mutação, portadores de mais de uma carteira de identidade – uma para cada órgão do corpo que formos inventando. Que é de lixo que somos feitos; no lixo da ordem estabelecida está aquilo que irrompe contra ela – queremos ser pinto no lixo, reciclados em cotovelo, tornozelo virado da mãe do avesso, toda provisória. Ciclados, reciclados, metareciclados, transreciclados, ciclosexuais. Inventar as sexualidades que nem existem. No meio do mercado, ah, ele que corra ou nos socorra!
(Le Monde Diplomatique)

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

O. Médio

Primavera Árabe só deu outra cor à censura
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por Simba Shani Kamaria Russeau, da IPS
Cairo, Egito, 31/1/2012 – Os esforços dos regimes do Oriente Médio e do norte da África, para impedir o fluxo de informação durante as revoltas populares do ano passado, deixaram uma grande quantidade de jornalistas mortos, feridos ou detidos. Hoje, a censura continua. “No começo da Primavera Árabe, o controle de informação foi uma prioridade para as autoridades”, contou à IPS a pesquisadora para o Oriente Médio e a África do Norte da organização Repórteres Sem Fronteiras, Soazig Dollet. “Os governos tratam de censurar a cobertura da repressão lançada pelas forças de segurança contra os protestos, impedindo o acesso à internet e bloqueando os telefones celulares, bem como atacando jornalistas locais e internacionais”, denunciou.
O levante popular na Tunísia, em janeiro de 2011, que levou à queda do presidente Zine al-Abidine Ben Ali, deu origem a uma onda de protestos que rapidamente se propagou pelo resto do mundo árabe. No dia 25 daquele mês, foi a vez do Egito, quando manifestantes começaram a reclamar o fim do regime de 30 anos do presidente Hosni Mubarak. Após o êxito de Egito e Tunísia, outros países como Bahrein, Marrocos, Líbia, Iêmen e Síria lançaram suas próprias revoltas.
A imprensa teve um papel fundamental informando sobre as manifestações e a consequente repressão, mas os profissionais correram sérios riscos quando as autoridades trataram de bloquear a propagação de notícias. Um informe da Repórteres Sem Fronteiras diz que pelo menos 20 jornalistas foram mortos e 553 agredidos ou ameaçados na Primavera Árabe, o que fez do Oriente Médio e do norte da África uma das regiões mais perigosas para os trabalhadores da imprensa.
“Os regimes dos países onde houve levantes populares tentaram, no começo, censurar a informação”, apontou Ayman Mhanna, diretor-executivo da Fundação Samir Kassir. “Começaram bloqueando o acesso a redes sociais como Facebook e Twitter, mas depois se deram conta de que podiam abrir esses sites para controlar quem escrevia e o que escreviam. Depois restringiram o acesso a jornalistas estrangeiros e independentes, a menos que estivessem totalmente sob seu controle”, disse Mhanna à IPS.
“A situação melhorou um pouco, salvo na Síria e no Bahrein. No primeiro país, os jornalistas estrangeiros só entram furtivamente, a menos que aceitem trabalhar sob controle das autoridades, que, por outro lado, não garantem sua segurança. A morte de Gilles Jacquier (no dia 11) é um exemplo disso”, afirmou Mhanna. “No Bahrein, a situação é muito difícil. Os países do Conselho de Cooperação do Golfo têm interesses em bloquear a revolução nesse país. Todos os meios de comunicação opositores estão censurados, e os que são afinados com o regime distorcem totalmente a informação”, ressaltou.
Defensores dos direitos humanos consideram o Oriente Médio e o norte da África uma das regiões com maior censura pela abundância de controles, leis, normas, hostilidades, detenções e restrições físicas. Disposições legais de todo tipo são usadas para deter jornalistas, acusando-os de prejudicar a reputação do Estado, freando, assim, denúncias de corrupção contra funcionários públicos. As autoridades do Bahrein utilizaram a Lei de Imprensa de 2002 para censurar. O Código Penal da Síria criminaliza a propagação de notícias no estrangeiro. Além disso, Egito e Síria têm leis de emergência que permitem perseguir e deter sem o devido processo jornalistas, trabalhadores de imprensa em geral e ativistas políticos.
“Durante o regime de Mubarak houve muitas formas de censura, como pressão sobre os editores, proibições de impressão de determinados números em particular, confisco de edições diárias, hostilidades contra jornalistas e apreensão de seus pertences”, contou Ramy Raoof, diretor de mídia na internet para a Iniciativa Egípcia de Direitos Pessoais. “Estas coisas continuam ocorrendo, mas com diferentes funcionários. No lugar do pessoal do Ministério do Interior, entra o do sistema militar. Por exemplo, no dia 22 de fevereiro de 2011, uma carta da Marinha enviada aos jornais egípcios dizia, de modo resumido, que não publicassem nada sobre o exército”, afirmou Raoof à IPS.
“Os códigos de imprensa da maioria dos países árabes pretendem respeitar a liberdade de imprensa, mas na realidade deixam amplos espaços para serem violados pelos regimes da vez. Alguns de seus artigos, como ‘desmoralizar a nação’, são usados muito nos últimos tempos na Síria. Acusar ativistas de traição ou de cooperar com inimigos estrangeiros é outra acusação à qual se recorre frequentemente”, esclareceu Mhanna.
No entanto, um ano depois do começo da Primavera Árabe, quando vários países lutam para construir um futuro democrático e em outros continuam ocorrendo manifestações reclamando democracia, ainda é difícil para os jornalistas fazerem seu trabalho.
Agora “os jornalistas podem expressar suas opiniões com maior liberdade porque quebraram a barreira do medo. Porém, continua sendo perigoso expressar sua opinião onde as revoluções conseguiram derrubar o regime ou onde cresce o peso de grupos religiosos extremistas”, alertou Mhanna. “De certa forma, mudou a natureza da censura. Agora, são perigosas as consequências do que escreve ou diz um jornalista”, acrescentou.
Envolverde/IPS

Paris

Chéri à Paris: Procura-se creche no Brasil
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admin
– 30/01/2012Posted in: Destaques

“Brincar? Esse tipo de atividade, a gente não estimula. Imagina se ela cai e se machuca. É muito arriscado, querido”
- Bom dia.
- Bom dia.
- Sabioquié? Tô procurando uma creche para a minha filha e me falaram muito bem de vocês.
- Pois o senhor veio ao lugar certo. Sua filha vai adorar a gente. Qual a idade da pituba?
- De quê?
- Da tchutchuquinha, da guria, da piá, da…
- Da criança?
- Isso.
- 1 ano e 9 meses.
- Que coisa mais fofa, 21 meses de pura traquinagem, de noites mal dormidas, de cocô mole, de…
- Escuta, será que a gente podia visitar o estabelecimento?
- Mas só se for agora, campeão.
- É agora mesmo, porque se você quiser me mostrar quando eu não estiver aqui não vai adiantar de muita coisa.
- Pois bem. Esta é a maravilhosa sala de estímulos. Tem atividades pra desenvolver a criatividade, pra exercitar a lógica e pra aprender a calcular a raiz quadrada de cabeça e em menos de 5 segundos.
- E ali?
- Ali é o incrível laboratório de línguas. Sua filha já fala?
- Um pouco. Diz umas coisas em português e em francês.
- Francês?
- Isso, ela é pariense.
- Meu querido, francês já era, babau, ficou démodé, se é que você me entende. Paris está decadente, só interessava às pessoas nascidas no século XIX, que adoravam fazer bico, dizer “uh la la” e levantar o dedo mindinho enquanto bebiam uma taça de vinho. Hoje em dia, c’est fini. Aqui sua filha vai ter aula de inglês e espanhol de manhã, de chinês e árabe depois do almoço e noções de russo e de hindi à tarde.
- Russo e hindi?
- É claro. É papel dos educadores preparar a criança para o mundo globalizado. Nunca ouviu falar nos BRICs? Mas depois voltamos ao assunto, pois virando à esquerda chegamos à fabulosa horta orgânica.
- Vocês plantam o que servem na cantina?
- Quase isso, capitão. Quem planta são as crianças. Elas capinam, preparam a terra, jogam as sementes, regam, espantam as pragas, colhem e lavam tudo. E depois ainda picam as cebolas pro almoço, pois eu sempre choro quando tento fazer isso.
- Elas não choram?
- Claro que sim, mas elas já choram o tempo inteiro, então ao menos agora têm um motivo real.
- E aquela enorme caixa preta? Que treco é esse?
- Mais respeito. Ali é o must. O top. The best thing in the whole damn world. Trata-se da Fantastic Black Box, única na América Latina. Há apenas cinco em todo o mundo e é claro que em Paris não tem uma dessas.
- E do que se trata?
- Trata-se de uma caixa sensorial. Cinco minutos ali dentro e sua filha nunca mais será a mesma. A gente liga 435 eletrodos no corpo da criança e ela vai entender na hora de onde veio e qual o seu papel na terra. Vai, inclusive, saber se passará ou não no concurso para o Senado em 2032. Assim poderá dirigir seus esforços para coisas que darão realmente certo em sua vida, sem perder tempo com bobagens que não a levarão a lugar algum.
- !?
- Impressionante, não?
- E depois de todas essas atividades ela vai pro parquinho brincar?
- Brincar?
- Isso. Escorrega, trepa-trepa, gangorra.
- Olha, esse tipo de coisa a gente não estimula aqui não. Imagina se ela cai e se machuca? Ou se fica presa em cima de uma árvore? A gente não saberia o que fazer. É muito arriscado, meu querido, muito.
(Outras palavras)

Pensamentando

Até onde irão os Indignados?
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admin
– 31/01/2012Posted in: Capa

Manuel Castells aposta: ao recuar, quando ação se desgastou, movimento revelou maturidade surpreendente. Assumiu novas formas. Reemergirá, quando crise exigir

Por Manuel Castells | Tradução: Daniela Frabasile

O movimento de indignados, que surgiu em 2011 na Espanha, Europa e Estados Unidos, é uma lufada de ar fresco em um mundo que cheira a podre. Expuseram nas redes sociais e em acampamentos o que muitos pensam: que os bancos e os governos criaram a crise; que as pessoas sofrem com ela; que os políticos apenas representam a si mesmos; que os meios de comunicação estão condicionados; que não existem vias para que o protesto social se traduza em verdadeiras mudanças, porque na política tudo está amarrado – e bem amarrado, para que as mesmas pessoas de sempre continuem cobrando e as mesmas pagando.
Por isso, durante meses, dezenas de milhares de pessoas participaram de assembleias e manifestações e por isso a maioria dos cidadãos (até 73%, na Espanha) compartilha de suas críticas. E tudo isso de forma pacífica, exceto a violência resultante de ações policiais excessivas, que levaram os responsáveis a julgamento. O movimento teve a maturidade de levantar os acampamentos quando sentiu que as ocupações já não repercutiam e que só os ativistas participavam das assembleias diárias.
Mas o movimento não desapareceu. Apenas se difundiu pelo tecido social, com assembleias de bairro, ações de defesa contra injustiças – como a oposição a despejos de famílias – e extensão de práticas econômicas alternativas: cooperativas de consumo, banco ético, redes de intercâmbio e outras tantas formas de viver de maneira diferente para viver com sentido.
Ainda assim, os indignados, que em algum momento chegaram a assustar as elites pela possibilidade de contágio, sofreram perseguição midiática, policial e política. Isso criou a impressão de que o movimento se limitou a alguns jovens idealistas ou alguns poucos exaltados. Basta isolar os grupos e deixar que se cansem. Os partidos de ultra-esquerda tentaram pescar em águas turbulentas, para realimentar suas hostes minguadas, mas viram que os novos rebeldes já têm claro que por esse caminho não conseguirão as mudanças pelas quais lutam. Apesar da hostilidade dos poderosos, o movimento continuou, manteve sua deliberação em assembleias, comissões pela internet, e segue contando com participação popular quando surgem iniciativas concretas, e aparece à superfície o trabalho cotidiano daqueles que não aceitam que tudo continue igual.
A determinação de criar novas formas de ação transformadora sem liderança formal e sem organizações burocráticas traz dificuldades consideráveis. Por um lado, não valia a pena chegar até aqui para voltar a reproduzir um modelo de ativismo que já fracassou repetidamente. Por outro, o essencial é estabelecer um vínculo entre a deliberação e ação, além de conectar-se com os 99% que o movimento quer representar. Buscando novas vias, o 15-M está abrindo um debate profundo sobre como continuar agindo e inovando no que diz respeito a organização e elaboração estratégica. Em 19 de dezembro, depois de uma discussão em assembleia, a Comissão de Extensão Internacional da Porta do Sol de Madri decidiu suspender sua atividade e se declarar em reflexão ativa indefinida.
“O espaço público que havíamos redescoberto voltou a ser substituído por uma soma de espaços privados… O êxito do movimento depende de que sejamos de novo os 99%. Ainda que não tenhamos a resposta do que deve vir depois, que forma pode assumir o reinício de que necessitamos, entendemos que o primeiro passo para escapar de uma dinâmica equivocada é romper com ela: parar, deter-se e tomar perspectiva”, foi a argumentação.
Mesmo que esta atitude não reflita necessariamente o sentimento de outras assembleias e comissões do 15-M, é significativa. Evidencia a capacidade de autocrítica e autorreflexão que caracteriza esse movimento. Somente assim pode se constituir um novo processo de mudança que não desnaturalize seus objetivos de democracia real nas formas de sua existência. Porque onde se chega depende de como se faz para chegar, qualquer que sejam as intenções. Se a questão é como se conectar com os 99%, como se opera essa conexão?
O essencial em qualquer movimento social é a transformação mental das pessoas. Poder imaginar outras formas de vida. Romper a subordinação e a manipulação midiática. Sentir que muitos pensam como um mesmo. Esquecer o medo de afirmar seus direitos e opiniões. Nesse sentido, existem múltiplas indicações de que as pessoas estão mudando, de que o 15-M fez visível a indignação e alimentou a esperança, e que ainda que haja menos participação nas assembleias de ativistas, muitas pessoas estão buscando, de múltiplas maneiras, ocupar espaço no cotidiano e estabelecer vínculos com experiências similares.
Têm claro que a mudança não passa por eleições como as últimas, na Espanha. O triunfo da direita reunida no PP, ampliado por uma lei eleitoral não representativa do voto, foi muito menos relevante (400 mil votos a mais que em 2008), que a queda do Partido Socialista. Ela expressa o esgotamento dos que supostamente representariam os “de baixo”. Também deixa claro que a crise vai piorar, sem que ninguém saiba como lidar com ela.
Diante deste impasse, as pessoas buscam suas próprias soluções. Contando com redes de solidariedade cada vez mais numerosas. E apoiando as ações reivindicativas onde surgem. Essa transformação mental e essas múltiplas mudanças cotidianas podem ser ativadas em níveis mais amplos, em formas a ser descobertas, conforme se for quebrando a normalidade. Não se trata do velho mito comunista do súbito colapso do capitalismo, mas simplesmente de saber que a economia europeia afunda na recessão, que a cobertura social se dilui, que a política tradicional patina e que os cidadãos continuam indignados e são cada vez mais conscientes.
No 15-M existe essa consciência. Como a água, ela irá encontrando suas próprias vias até que se torne torrente – quando a situação se fizer crítica. Ainda bem: porque a alternativa a esse protesto pacífico e construtivo é uma explosão violenta e destrutiva.


(Outras Palavras)

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Mabelle M. Arruda

É a minha Bellzinha, a musa e inspiradora desse blogue!

Pensamentando

Todo mundo é bonito
Ana Elisa Ribeiro




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Não é bem assim, eu sei. O que é bonito para você? Não sei. Não me perguntem o que vejo em todo mundo que me parece prazeroso, mas eu vejo. Melhor: eu tenho visto. Não é sempre assim. Talvez eu não tenha me apercebido de que os detalhes costumam ser melhores do que o conjunto da obra. Às vezes o contrário: o todo é melhor do que as partes, sem ser sequer a soma delas. Não é. E isso sem falar no jeito, no charme ou na ginga, na aura ou no clima, que fazem com que a beleza aumente ou diminua. Isso sem falar que a trilha sonora melhora muita cena. Que o título amplia o sentido do texto. Que a qualidade da tinta nem sempre sustenta o quadro.

Dia desses falávamos, em dois ou três num conversê à toa, dentro de um carro ou numa mesa de bar, não me recordo, sobre o padrão. Não, não era nada disso. Era um almoço pós-trabalho, num restaurante comum em Brasília, quando tivemos tempo de falar de coisas cotidianas. E ali estávamos dois mineiros, um carioca, um paulista e um paraibano falando da beleza, das pessoas e dos delírios de lindeza. Na diversidade de nós mesmos, ali, naquela mesa tão improvável, já fazíamos parte da amostragem propensa aos gostos e às modalizações mais outras. Um paraibano de olhos claros, um carioca muito magro, um paulista de cabelos lisos, um mineiro forte e uma mineira Frida Kahlo. E dizíamos do que a publicidade reforça que a cultura não deixa. Neste mundo de imprudentes padrões A ou B, a nossa existência genotípica desobediente ajuda a atrapalhar as campanhas para que sejamos mais ou menos iguais. Quem não levou uma foto da atriz ao cabeleireiro? Faça assim, por favor? Meus resultados foram sempre trágicos porque meu cabelo é brasileiro, enquanto a atriz era europeia. Quem não invejou um braço, uma perna ou um peito? Mas quem é que traz essas sensações de que o que eu tenho não serve de modelo? Que o digam estas sobrancelhas atípicas, que às vezes querem que eu desbaste... mas só quando não estão na moda. Minha alegria mais sossegada é quando Malu Mader, Patrícia França ou Marisa Monte estão na moda, saem nas capas e dão entrevistas. As sobrancelhas cheias podem dormir em paz, até a próxima novela.

É dizer que bonita é a lourona peituda. É dizer que bacana é o macho polígamo. É dizer que magrelas são preferíveis a gorduchas. É dizer que cabelos lisos são o sonho de consumo de um país inteiro de encaracoladas. É dizer que homens altos estão em falta. É dizer que não gosto de artifícios e mal uso batom. É dizer que homens preferem as carnes aos ossos. E assim fomos tecendo uma tarde inteira de recomeços sobre a beleza.

Se a publicidade reforça um estilo Juliana Paes ou Carolina Dieckman, nossas vidas vão nos ensinando as rechonchudas que comem hambúrguer com batata frita. É na estria que a mulher se confirma? Não. É na celulite, muito desconhecida dos rapazes, que não sabiam nem diferenciar coisa de outra. São aquelas rajadas ou aquelas bolinhas? Eu quero é pegar.

E lá íamos nós atravessando as bonitezas todas, quando chegamos à negação do padrão publicitário. Sentimos muito, Gisele, mas a minoria é só no banheiro. Aqui pra nós só vemos coxas que balançam e peitos de todos os tamanhos e jeitos. Caímos na gargalhada ao lembrar que sobrancelhas, cílios e bocas têm seus afetos e delícias. Todos.

De presente, dias depois, assisti a um evento em que várias pessoas, dos mais variados tipos, apresentavam trabalhos diante de mim. A belíssima diversidade deles, todos jovens, me dava esperanças de um conceito menos único no mundo das verdades, das pessoas palpáveis, das relações possíveis. Lá estavam rapazes e moças de todos os tamanhos, corpos e jeitos. Gaguejavam quando estavam nervosos e fugiam do meu olhar quando podiam. Exibiam ali, a despeito de suas roupas quase iguais, sua singularidade. De meu proveito era reparar-lhes as mãos (que sempre olhei em todo mundo, sem exigir que fossem tratadas), os narizes e os cabelos. Cores e modos, espáduas e gestos. Esse reparo me lembrava a Carta de Caminha ao rei, quando o escrivão descrevia as índias, com suas vergonhas saradinhas e seus cabelos pretos. O nariz adunco de uma moça atraiu meus olhos mais do que o resto, enquanto o pescoço da outra parecia feito de cera. O rapaz de largos ombros contrastava com o amigo de ralos cabelos muito pretos, penteados à moda do mais recente cantor famoso ou ator estreante, não sei ao certo. Enquanto os dois falavam, a moça de boca fina fazia comentários ao rapaz de lábios perfeitos.

Nem só de jovens vive a beleza. E se isso fosse reforçado, talvez tivéssemos mais educação para envelhecer bem (e deixar os outros envelhecerem em paz). Das mais belas mulheres que vi de perto na vida consta uma, uma única, que sustenta (imagino que a alto custo moral) jeitosíssimos cabelos brancos. Brancos e cinzas. Sem tintas e sem retoques. Belíssima. A mais bela mulher que já testemunhei. E não apenas porque não seja mais jovem e nem porque tenha os cabelos cuidadosamente brancos, mas porque é de um charme avassalador. Nada dos vestidos segunda pele, nada da vulgaridade que se expõe em toda festa, nada da máscara para atrair pequenos contentamentos meio falsos, nada. Apenas um corpo que vive e uma mente brilhante. Daí o brilho dela transbordar daquele jeito, a despeito de as propagandas só nos bombardearem com o que é apenas efeito.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 9/12/2011
(Dig. Cultural)

Poesia

Passagem da noite

É noite. Sinto que é noite
não porque a sombra descesse
(bem me importa a face negra)
mas porque dentro de mim,
no fundo de mim, o grito
se calou, fez-se desânimo.
Sinto que nós somos noite,
que palpitamos no escuro
e em noite nos dissolvemos.
Sinto que é noite no vento,
noite nas águas, na pedra.

E que adianta uma lâmpada?
E que adianta uma voz?
É noite no meu amigo.
É noite no submarino.
É noite na roça grande.
É noite, não é morte, é noite
de sono espesso e sem praia.
Não é dor, nem paz, é noite,
é perfeitamente a noite.

Mas salve, olhar de alegria!
E salve, dia que surge!
Os corpos, saltam do sono,
o mundo se recompõe.
Que gozo na bicicleta!
Existir: seja como for.
A fraterna entrega do pão.
Amar: mesmo nas canções.
De novo andar: as distâncias,
as cores, posse das ruas.
Tudo que à noite perdemos
se nos confia outra vez.
Obrigado, coisas fiéis!
Saber que ainda há florestas,
sinos, palavras; que a terra
prossegue seu giro, e o tempo
não murchou; não nos diluímos!
Chupar o gosto do dia!
Clara manhã, obrigado,
o essencial é viver!

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

(Poemblog)

Capitalismo

Uma introdução ao problemático conceito da caridade

Artigo aborda a caridade e seus usos convenientes pelo capitalismo
Por Fábio Py Murta de Almeida
Alguém saiu do ônibus vindo, um tanto desengonçado, em minha direção. Sentou-se ao meu lado. Sem problemas, pois em pouco tempo chegaria o ônibus que eu esperava para poder ir à Zona Sul do Rio. Agora, o curioso é que, além de sentar ao lado, o sujeito se aproximou quase que se encostando à minha perna. Comecei a ficar cismado.
Chegou perto a ponto de eu poder escutá-lo, sem que precisasse falar alto ou de gritar. É compreensível, pois a quantidade de carros e obras atrapalha qualquer conversa. Olhando o ilustre desconhecido de rabo de olho, um pouco mais detidamente (sem que ele percebesse), observei que trazia uma bengala na mão. Ora, devia ter alguma dificuldade na visão porque, embora usasse óculos fundos, seus olhos não fixavam num ponto. Concluí que podia enxergar, uma vez que, do contrário, não conseguiria atravessar a rua, saindo de um ônibus, e vir sozinho ao meu encalço. Disfarçando e olhando um pouco mais suas características, percebi que era magro a ponto de os ossos aparecerem; suas veias pareciam querer saltar da pele. Talvez isso fosse até sorte, pois seria mínima a sua preocupação com a moda.
"Percebi que era magro a ponto de os
ossos aparecerem; suas veias
pareciam querer saltar da pele. Talvez
isso fosse até sorte, pois seria mínima
a sua preocupação com a moda"
Na curiosa cena, ele, um meu total desconhecido, cruza as pernas e levanta a voz para que eu o escutasse: “chama o 49”. Ofereço um “como?”, apenas para ver se entendi bem. Sem dificuldade e/ou constrangimento, rompe o silêncio, repetindo: “chama o 49”. Fala sem pedir. Indica o que quer, vai direto ao ponto. Diz o que precisa. Não faz propaganda: tranquilo e resolvido. Antes que alguém crie algum sentimento de contrição, por ter dificuldade de visão, digo logo: não era abatido. Era magro, mas nada de fraco. Sabia o que queria. Mais até do que seu ouvinte-observador. Mesmo nos poucos momentos juntos, posso dizer que ele não era um “coitado”. Tanto é que ele me impõe uma função. Também, ao contrário do que o senso comum cristão-ocidental-capitalista incentiva, não buscava a “caridade”. Como me disse nas poucas palavras, queria (apenas) ir ao restaurante popular. Para isso, o 49 deixaria em frente.
Permitam-me ratificar: de fato, não pediu nada. Não queria vintém. Queria apenas a indicação de/para parar o ônibus. Deve ser por isso que pouco disse. Não deu muita bola para minhas palavras lançadas ao ar. Limitou-se a indicar que ia pegar o ônibus para não andar no Sol, indo comer no “popular” – no restaurante popular. Assim, tive de mudar um pouco de direção. Tinha de me preocupar com o bendito 49, para depois pensar em ir ao meu compromisso, para o qual eu já estava atrasado. Tomei para mim a tarefa, contando os ônibus, para ver se o transporte desejado passava. Daí, em alguns minutos (que mais pareciam horas), depois de vários ônibus, vem o desejado 49. Levanto e faço o sinal para o motorista que percebe o alguém na minha companhia, parando o ônibus de que precisávamos (ele precisava, não eu). Assim, sem pedir nada, sem apoiar, sem pedir a mão, seguiu para o ônibus. O máximo que me disse foi um “Feliz Natal”, ao que eu prontamente respondi.
Levando em consideração o trato com este “quase-amigo”, devo confirmar minha inconformidade com as narrativas do gênero. Isso porque, se fosse um discurso ligado ao senso comum dos proponentes cristãos, diria que a mensagem central do relato é de “ajuda ao próximo”. Fatalmente, sobre o prisma assistencialista-cristão, se diria que devemos ser “caridosos” com os outros, fazendo o bem para os “carentes” e “necessitados”. Neste tal senso, é um imperativo ético uma ação/ajuda como a minha. Afinal, “fazer o bem” é o dever dos homens e mulheres. Contudo, confesso que esse foco não me seduz. Esse não é o tom. Isso porque essa falácia esconde detalhes dos jogos sociais implicados por trás da nomenclatura-símbolo: “caridade”.
Sobre e junto a ela argumenta-se que é um valor imprescindível ao cristão. É que o caso do quase-amigo (e também, de todos os casos) bem pouco de substancial promove em termos de melhoras para o outro. Isso porque a “caridade” é um conceito que possibilita ao outro a migalha, um nada da parte daquele que tem. A equação é a seguinte: os que tanto têm normalmente dão algo como “favor”, mantendo a sonegação de todos os direitos que os menos favorecidos têm. Concordando com isso, Michel Lowy1 é um dos que acreditam que o conceito de “caridade”, cunhado pelo complexo de tradições religiosas de traços cristãos, é um conceito importante para a manutenção do modus de vida liberal-capitalista. Por trás dele há a sonegação dos direitos mais básicos da humanidade, em prol de poucos que muito têm.
Anexada à ideia-símbolo de “caridade”, se ambienta a percepção do valor pró-ativo da “ajuda”. Principalmente nas religiões de traços cristãos, é imperativo ser um “ajudador”. Interessante é isso, pois, pensando em direitos humanos, tal título é difícil de ostentar, visto que já nasce caduco. Só seria válido se permitisse ao sujeito (e todos os quase-amigos imagináveis que passam por nós todos os dias) os mesmos direitos que os meus. Que, além de comer também nos restaurantes não-populares, todos pudessem ir e vir, sem precisar anunciar, ainda que nos sussurros, sua gritante necessidade. Assim, não basta apenas buscar “ajudadores”, que sejam cooperativos na ínfima ação de colocar alguém no ônibus, mas sim permitir acessos iguais. Isso sim seria digno de ser chamado de “ajuda”, pois transformaria a situação de meu quase-amigo e de todos os demais. Exigência demais?!
"Hoje, após tal
experiência, vejo quão
sério é a qualificação da
“caridade”. Ela que é
carregada como slogan
por diversas tradições
cristãs responsáveis em
aprofundar e ampliar dia-
a-dia mais e mais a
desigualdade social"
Penso que não, pois, embora admita que sem tal contato pequeno e rápido jamais eu poderia ultrapassar o medíocre mundinho de mim mesmo, olhando mais detidamente para as pessoas e suas questões, vejo que, como eu, elas também merecem a dignidade de uma vida bem melhor. Só pude olhar esse detalhe por que um “quase-amigo” cruzou minha história pela manhã, deixando-me desconcertado. Assim, agradeço a ele por ajudar na aproximação de detalhes pelos quais eu nunca havia adentrado. Hoje, após tal experiência, vejo quão sério é a qualificação da “caridade”. Ela que é carregada como slogan por diversas tradições cristãs responsáveis em aprofundar e ampliar dia a dia mais e mais a desigualdade social – marca do sistema capitalista no qual estamos chafurdados. Ao invés de permitirem mais acessos, como correntemente afirmam, suavemente ajudam a manter um status quo já mundializado, onde há um verdadeiro acinzentamento na percepção de que milhões de sujeit@s, pesso@s, coleg@s, quase-amig@s e amig@s têm diariamente suas vidas sonegadas.
Enfim, nessa linha de raciocínio, a “caridade” e seus conceitos afluentes não são um conjunto de idéias restauradoras e dignas da humanidade, mas apenas fazem parte das formas mais belas e dóceis de não se re-ver um sistema onde apenas uns poucos amigos – uma certa elite – se (a)firmam. Atentando para uma lógica de adormecimento para amplos direitos recusados, justamente por conta de um sistema capitalista-cristão, permito-me por hoje pensar em tom de denúncia, já que a estratégia das elites brasileiras e mundiais, ao usarem o conceito de “caridade”, permitiu isso, uma vez que o utilizaram e utilizam apenas para docilizar os corpos e amansar as vidas, com pequenas acomodações, numa farsa forjada para a justificação de um admirável modo de vida “caridoso” do capitalismo globalizado.
1 - Michel Lowy, “Ética católica e o espírito do capitalismo: o capítulo da sociologia da religião de Max Weber que não foi escrito”, Cultura Vozes, Petrópolis: Vozes, v.92, nº01, 1998, p.86-100.

Fábio Py Murta de Almeida é professor de história da Faculdade Batista do Rio de Janeiro (Fabat) e articulador do blog Hyperlink
(Caros Amgos)

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Inprensa

Diretor do Le Monde: “Não existe neutralidade da imprensa”
Foto: Ramiro Furquim/Sul21
RESPONSÁVEL PELO JORNAL FRANCÊS ABERTAMENTE DE ESQUERDA, O LE MONDE DIPLOMATIQUE, IGNÁCIO RAMONET AFIRMA QUE UM JORNAL QUE DIZ SER OBJETIVO TENTA ESCONDER SEU PONTO DE VISTA; LEIA ENTREVISTA FEITA DURANTE O FÓRUM SOCIAL TEMÁTICO
Por Jornal Sul 21
30 de Janeiro de 2012 às 08:59
Samir Oliveira _Sul 21 - O diretor de redação do jornal francês Le Monde Diplomatique, Ignácio Ramonet, acredita que a mídia deveria se posicionar claramente sobre a linha ideológica e política que segue. Doutor em Sociologia e professor de Teoria da Comunicação, o jornalista, que comanda um periódico abertamente de esquerda, diz que não existe a tão aclamada neutralidade da imprensa.
“Um jornal que diz que é objetivo é um jornal alinhado à direita e que tenta esconder seu ponto de vista”, explica. Ramonet entende que os veículos de comunicação deveriam deixar claras as posições políticas e ideológicas que defendem. “Não tenho nada contra um jornal ser de direita, acho interessante que existam. Mas que fique claro que representa o ponto de vista dos empresários, da burguesia e da classe conservadora”, aponta.
O jornalista esteve em Porto Alegre na semana passada para participar das atividades do Fórum Social Temático e mesmo com uma apertada agenda encontrou tempo para conversar durante meia hora com a reportagem do Sul21. Nesta entrevista, ele analisa também o papel das esquerdas na crise capitalista que assola a Europa e contrapõe a situação no velho continente ao momento vivido pela América Latina. “A América Latina está construindo o Estado de bem-estar social, enquanto na Europa ele está sendo destruído”, compara.
Sul21 – O senhor escreveu o livro A tirania da comunicação. Quais os propósitos por trás da atuação jornalística dos grandes veículos e comunicação?
Ignácio Ramonet – O jornalismo está vivendo várias crises. A primeira delas é a dominação pelos grandes grupos globais. Esses grupos são multimídia, detêm televisões, imprensa escrita, rádios e sites. E se comportam como atores da globalização, o que faz com que não tenham a mesma relação direta com os leitores. A segunda crise jornalística foi criada pela internet. Em muitos países, a imprensa escrita está desaparecendo, sendo substituída pelos meios digitais. E aí vem também uma crise econômica, porque o modelo de sustentação da imprensa escrita não funciona mais. Caíram a publicidade e as tiragens.
Sul21 - A internet não trouxe benefícios ao jornalismo?
Ramonet – O problema é que temos dois modelos – o impresso e o digital – e nenhum deles funciona. Provavelmente, o que vai prevalecer será o modelo digital, até porque a informática se aprimora cada dia mais nos países em desenvolvimento. Uma consequência do advento da internet é o que os cidadãos podem intervir muito mais do que antes. O público não é mais passivo, hoje existe a possibilidade de comentar e de difundir a informação. Isso também afeta o trabalho do jornalista, que acaba possuindo um papel diferente, não está mais num pedestal. Não é mais só o jornalista que fala. A relação hoje em dia é muito mais interativa. Por outro lado, isso gera uma crise de identidade: se todo mundo pode ser jornalista, o que é, de fato, ser jornalista? Onde está a especificidade de um jornalista, se qualquer pessoa pode sê-lo?
Sul21 – A internet, com a força das redes sociais, está se convertendo numa ferramenta efetiva contra o monopólio da informação pela mídia tradicional?
Ramonet – O panorama está mudando. A internet pode romper os monopólios? Sim, pode ser que seja possível. Mas não acredito que se deva pensar que se alcançará uma fase de democratização da informação. O que há é uma ilusão de democratização, já que hoje em dia todos podemos produzir e difundir informação. Há uma noção de que estaríamos nos auto-informando. Mas, na realidade, todos são auxiliados pelas fontes centrais de informação. Então há uma maior participação das pessoas, mas ainda existem os monopólios. E esses monopólios já integram o Facebook, o Twitter e possuem suas páginas digitais. A democratização existe, mas os monopólios não se enfraqueceram. No fundo, o que está mudando é a defesa das pessoas contra a tentativa de domesticação levada adiante pela mídia dominante. Do ponto de vista ideológico, o objetivo dos grandes meios de comunicação é domesticar a sociedade. Com as novas ferramentas digitais e com as redes sociais, surge um modo de se defender disso.
Sul21 – Aqui no Brasil a mídia se diz imparcial e desprovida de objetivos políticos. Nenhum jornal da imprensa tradicional se qualifica abertamente como de esquerda ou de direita. O senhor, como diretor do Le Monde Diplomatique, um jornal de esquerda, avalia que é necessário haver maior transparência quanto à posição ideológica da mídia?
Ramonet – Acredito que são os leitores que dão identidade a um jornal. O jornal não diz “somos de esquerda”. Mas, sem dúvida, a neutralidade não existe. Um jornal que diz que é objetivo é um jornal alinhado à direita e que tenta esconder seu ponto de vista. Não tenho nada contra um jornal ser de direita ou de centro-direita, pelo contrário, acho interessante que existam. Mas que fique claro que representa o ponto de vista dos empresários, da burguesia e da classe conservadora. Não acredito que se possa dar a informação de maneira objetiva. Existem fatos objetivos, mas o comentário sobre eles será sempre diferente. E é importante que seja assim, desde que se jogue com as cartas na mesa.
Sul21 – O governador Tarso Genro disse num evento do FST que a esquerda precisa perder o medo da mídia e enfrentar temas que a imprensa “mastiga de forma negativa”. É exagerada a cautela dos políticos em relação à mídia?
Ramonet – Os meios de comunicação têm uma função absolutamente indispensável numa sociedade democrática. Mas não são partidos políticos e não devem pensar que o são. Se querem se transformar em partidos, que se apresentem nas eleições. O papel crítico da mídia é indispensável na democracia. Mas não podem confundir crítica com oposição. Na América Latina muitos veículos de comunicação que têm dominado a vida intelectual acreditam que são mais importantes que os partidos políticos. Nesse continente, os latifundiários da imprensa são os novos amos das consciências. Acreditam que podem domesticar a população e não aceitam a autonomia do poder político.
Sul21 – O senhor entende que a esquerda não está conseguindo propor alternativas ao capitalismo. A esquerda também é culpada pela atual crise do sistema?
Ramonet – Claro que sim. A esquerda europeia, por exemplo, não apenas não propôs nenhuma alternativa, como tem se prestado a legitimar as políticas impostas pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Central Europeu. A esquerda social-democrata, quando estava nos governos, deu provas de sua incapacidade, até mesmo teórica, de enfrentar essa crise. Não apenas é uma crise econômica, é também uma crise das esquerdas.
Sul21 – E qual a alternativa, já que a esquerda tradicional não está dando conta?
Ramonet - Existem outros partidos de esquerda que estão decididos a adotar políticas diferentes, por exemplo, mudando a relação com o Banco Central Europeu, que não permite ajuda aos países. Há partidos que dizem que se deve obrigar o Banco Central a ajudar, que é preciso adotar uma política de estímulo, não apenas para reduzir o déficit, mas para promover crescimento econômico. Mais ou menos como faz Barack Obama nos Estados Unidos, e ele não é nenhum revolucionário. Mas está promovendo uma política de estímulos, uma política neo-keynesiana e não conservadora. Existem forças propondo uma mudança efetiva, mas elas ainda não estão nos governos europeus.
Sul21 – Aqui no Brasil existem outros partidos de esquerda que propõem ações não previstas no programa do governo federal. Mas alguns deles defendem, inclusive, uma ditadura do proletariado. Até que ponto é possível buscar alternativas mais à esquerda sem incorrer no totalitarismo?
Ramonet – Não faz mais sentido falar em ditadura do proletariado. A história já passou por isso. Hoje, qualquer alternativa deve partir do respeito aos mecanismos democráticos. Quando eu falo de outras esquerdas, não estou falando de esquerdas fora da esfera democrática. A esquerda dentro da democracia é a única que interessa. É a única que pode ser realista e que pode trazer soluções num panorama totalmente democrático.
Sul21 – Como o senhor avalia o contexto político da América Latina, mais especificamente da América do Sul, onde a maioria dos países é governada pela esquerda?
Ramonet – Para muitas esquerdas no mundo, a América Latina é algo que está funcionando. Aqui implementam políticas originais. Não seguem os ditames do FMI, promovem políticas de integração continental, de inclusão social e não de exclusão. A América Latina está construindo o Estado de bem-estar social, enquanto na Europa ele está sendo destruído. E, lá, as esquerdas participam dessa destruição. A América Latina, pela primeira vez na história, aparece para toda a esquerda mundial como uma prática na qual podem se inspirar.
Sul21 – Pode surgir daqui uma saída para a crise capitalista?
Ramonet – A América Latina está num período de construção do Estado de bem-estar e de classes médias. É a mesma situação que viveu a Europa após a Segunda Guerra Mundial. A América Latina lembra a Europa que o Estado é um ator importante, não somente os mercados. Na Europa os mercados governam e os estados e a política não conseguem se impor. E a América Latina lembra o mundo inteiro que a política ainda vale, que os dirigentes políticos ainda valem e que, por consequência, a política e as eleições ainda têm sentido. Na Grécia, na Itália e na Inglaterra os jovens se revoltam. Estão indignados, porque consideram que os políticos não fazem nada e são cúmplices das soluções propostas pelos mercados. A América Latina mostra ao mundo que é possível o Estado se impor aos mercados.
Sul21 – Mas há diferenças entre as esquerdas que governam na América Latina. Venezuela, Bolívia e Equador intensificam reformas e mudanças anticapitalistas que países como Brasil, Argentina e Uruguai não parecem dispostos a implementar.
Ramonet – Essa suposta oposição entre as esquerdas na América Latina é muito mais uma invenção dos meios de comunicação ocidentais, que têm interesse em criar oposições artificiais. É evidente que cada país é diferente, mas globalmente todos estão fazendo políticas de inclusão social. Cada um com seus métodos, mas estão construindo o Estado de bem-estar e uma democracia participativa. Tudo isso tem muito mais semelhanças do que diferenças. É claro que há diferenças, mas não há oposição. Toda a América Latina vai pela primeira vez na mesma direção, isso é muito importante.
Sul21 – A Europa está dominada hoje por governos conservadores. Inglaterra, Alemanha, França, Grécia, Itália e Espanha são governados pela direita e implementam soluções reacionárias e autoritárias para sair da crise. Este ano tem eleições na França, se a esquerda vencer o país pode se tornar uma luz no fim do túnel europeu?
Ramonet – Se essa esquerda que tem possibilidade de ganhar as eleições se comportar de maneira diferente da esquerda que estava no poder na Grécia, na Espanha, em Portugal… Se agir da mesma forma, não haverá nenhuma mudança. É bem provável que François Hollande (do Partido Socialista) possa ganhar a eleição. Fará uma política diferente? Muitas pessoas desejam isso. Mas será que ele poderá fazer algo diferente? Os mercados permitirão? A Alemanha permitirá? Não sabemos. O que é seguro dizer é que se a França muda sua política de maneira racional, mas atrevida, terá uma grande influência no mundo inteiro e na Europa. E isso pode mudar as coisas, inclusive numa aliança com a América Latina.
(De um emeio recebido)

Clacso

A memória como direito e tarefa civilizatória
No debate "Direitos Humanos, Justiça, Lutas e Memórias", promovido pelo Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais (Clacso), em Porto Alegre, Boaventura Sousa Santos defendeu que "o grande desafio do direito à memória é que é o direito ao futuro, mas também ao passado e ao presente". E Leonardo Boff definiu a memória como uma prática subversiva que aponta os que fizeram as atrocidades e restitui a dignidade das vítimas.
Maria Inês Nassif
Porto Alegre - "Se não tiver vaias e aplausos no Fórum Social Mundial, não será Fórum Social Mundial". Com a frase, a ministra da Secretaria dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, acabou acenando a bandeira branca à multidão que lotou o auditório da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), no início da noite de sexta-feira (27), no evento "Direitos Humanos, Justiça, Lutas e Memórias", promovido pelo Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais (Clacso). Maria do Rosário foi a terceira a tomar a palavra, depois que o auditório lotado consagrou, com palmas, o cientista político Emir Sader e o teólogo Leonardo Boff. Depois dela, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos veio em seu socorro, lembrando que o governo brasileiro era cheio de contradições internas e que o público que a vaiava deveria fortalecê-la para que cumprisse os compromissos assumidos em seu discurso, de luta pelos direitos humanos. "Eu confio 100% no que ela disse", afirmou Boaventura.

O conflito com a plateia, que até então a aplaudia, começou quando a ministra citou os povos indígenas dentro das políticas de direitos humanos do governo. "Belo Monte, Belo Monte", gritaram alguns presentes. Antes dessa menção, quando começava a descorrer sobre as populações vulneráveis que precisavam da atenção do Estado para garantia de direitos, algumas pessoas lembraram: "Haiti". Na segunda provocação, a ministra reagiu.

"Não me provoca Haiti ou Belo Monte. Irei daqui a dois dias ao Haiti para reiterar que não faremos com os haitianos o que outros países fazem com
brasileiros imigrantes. O que ofende a sensibilidade humana é quando os imigrantes são tratados como escória, e não como parte da humanidade", disse a ministra. Afirmou, ainda, que estava sob responsabilidade de sua pasta a transição da missão de caráter militar que o Brasil hoje mantém naquele país em missão humanitária. Nesse momento, ganhou mais aplausos que vaias.

O placar virou no momento seguinte, quando ela falou de Belo Monte. "Belo Monte tem que ser pensado a a partir do entendimento global de uma agenda de desenvolvimento para o país", disse, incluindo nesse pacote as reformas urbana e agrária. E, enfim, lembrou os episódios da reintegração de posse do bairro Pinheirinho, em São José dos Campos. "Pinheirinho é a marca da intolerância", afirmou, assinalando, enfim, um compromisso com a plateia:

"Diante de vocês, eu digo que unós faremos tudo para que cada projeto da agenda de desenvolvimento seja constituído com autonomia tecnológica, soberania e respeito aos povos originários", concluiu, para ouvintes ainda divididos.

Pinheirinho também esteve presente nas intervenções de outros convidados, como uma herança trágica e cultural de um passado autoritário, do qual a memória foi subtraída. "Pinheirinho é o passado, o presente e n ão queremos que seja o futuro", afirmou Sader. "Nós todos somos Pinheirinho", reiterou o presidente da União Nacional dos Estudantes, Daniel Iliescu.

O sociólogo Boaventura de Sousa Santos afirmou que "o grande desafio do direito à memória é que é o direito ao futuro, mas também ao passado e ao presente". Diferenciou o direito à memória do direito à história. "O direito à história é o direito às histórias silenciadas pelo saber e pelo poder oficial. São aquelas histórias que aprendemos nas escolas e que vigoram como sendo a verdade dos tempos. A isso chamo de sociologia dos ausentes", disse. É o silêncio em relação aos oprimidos, discriminados e ao sofrimento humano.

"O direito à memória é outra coisa. É o direito a vivências e experiências pessoais que constituíram a subjetividade [de indivíduos], e que eles têm que lembrar e serem respeitados por isso", explicou. Segundo Boaventura, a verdade histórica existe para essas pessoas, mas a subjetividade dessa memória permite apenas o seu conhecimento, jamais sua transmissão. "A verdade para eles está inscrita nos seus corpos, no seu sofrimento. Essa memória é intransmissiva porque as dimensões do sofrimento nunca se pode transmitir, mas pode ser reconhecida." O silenciamento, neste caso, também "torna impronunciável a revolta".

Propondo-se a ampliar o tema do direito à memória para o plano mundial, Boaventura inscreveu a escravatura como o episódio até hoje submerso pelo esquecimento. "Esta é uma história muito complexa, porque não é apenas dos financiadores europeus, mas a história dos africanos que escravizaram suas populações para vendê-las aos europeus". O peso dessa ausência de memória, segundo ele, até hoje resulta em revoluções, na África e na Ásia, e o colonialismo, todavia, é uma história que só começa a ser contada.

O colonialismo degradou colonizados e colonizadores, afirmou Santos. "Vejam a desgraça na Europa, que ficou cinco séculos a dizer às pessoas as virtudes da democracia e do desenvolvimento, e agora, numa crise econômica e financeira, não tem uma solução para os seus problemas e não sustenta a democracia". A Europa, que impôs o colonialismo ao mundo, agora está colonizada, mas por outros reis, disse Boaventura. Segundo ele, os primeiros ministros da Grécia e da Itália e presidente do Banco Central Europeu são, todos eles, ex-funcionários da Goldman Sachs.

Leonardo Boff afirmou que "a memória é subversiva porque aponta os que fizeram as atrocidades e restitui a dignidade das vítimas". E é uma "tarefa civilizatória". "Famílias tem direito não apenas à memória resgatada, mas dos restos que sobraram de sua dignidade, ossos e corpos. Para que nunca mais se esqueça e nunca mais aconteça", concluiu o teólogo.
(Carta Maior)

Clarice

Respirar junto, é respirar junto … Porque existe uma lógica na vida, nos acontecimentos, como existe num livro. Eles se sucedem, é tão fatal que seja assim. Porque se eu pegasse um fragmento e quisesse colocar mais adiante, eu não encontraria onde colocar. É como um quebra-cabeça. Eu pegava os fragmentos todos e ia juntando, guardava tudo num envelope. Era um pedaço de cheque, era um papel, um guardanapo […] Eu tenho algumas coisas em casa ainda, dela, e até com cheiro de batom dela. Ela limpava o lábio e depois punha na bolsa […] de repente, ela escrevia uma anotação. Depois de coletar todos estes fragmentos, comecei a perceber, comecei a numerar. Então, não é difícil estruturar Clarice, ou é infinitamente difícil, a não ser que você comungue com ela e já tenha o hábito da leitura.”
Esse manuscrito inédito de grande interesse para a obra de Clarice me foi comunicado por seu atual detentor.

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