domingo, 31 de março de 2013

Chomsky

Havia alternativa? Chomsky revisita o 11 de Setembro
A resposta ao 11 de Setembro, um ataque maciço a uma população muçulmana, conduziu os Estados Unidos à 'armadilha diabólica' estendida por Bin Laden. O resultado foi que Washington continuou a ser o único aliado indispensável de Bin Laden, mesmo após a sua morte. Gastos militares grotescamente aumentados e dependência da dívida... pode ser o mais pernicioso legado do homem que pensou que poderia derrotar os Estados Unidos. O artigo é de Noam Chomsky.

Noam Chomsky



Estamos a aproximar-nos do 10º aniversário das horrendas atrocidades do 11 de setembro de 2001, que, como se diz habitualmente, mudaram o mundo. No dia 1° de Maio deste ano, o presumível mentor do crime, Osama Bin Laden, foi assassinado no Paquistão por um comando militar de elite dos EUA, os SEALs da Marinha, depois de ter sido capturado, desarmado e indefeso, na Operação Geronimo.

Uma série de analistas observaram que Bin Laden, apesar de ter sido finalmente morto, obteve importantes sucessos na sua guerra contra os EUA. “Ele afirmou muitas vezes que a única maneira de expulsar os EUA do mundo muçulmano e derrotar os seus sátrapas era atrair os americanos para uma série de pequenas mas caras guerras, que acabariam por arruiná-los”, escreve Eric Margolis. “'Sangrar os EUA', nas suas próprias palavras.

Os Estados Unidos, primeiro sob George W. Bush e depois sob Barack Obama, correram diretamente para a armadilha de Bin Laden... Gastos militares grotescamente aumentados e dependência da dívida... pode ser o mais pernicioso legado do homem que pensou que poderia derrotar os Estados Unidos” – particularmente quando a dívida está a ser cinicamente explorada pela extrema-direita, com a conivência do establishment democrata, para minar o que resta de programas sociais, de educação pública, de sindicatos, e, em geral, das restantes barreiras à tirania empresarial.

Logo se tornou evidente que Washington estava inclinado a realizar os mais fervorosos desejos de Bin Laden. Como discuti no meu livro “9-11”, escrito pouco depois da ocorrência dos ataques, qualquer um que conhecesse a região poderia reconhecer “que um ataque maciço a uma população muçulmana era a resposta às orações de Bin Laden e dos seus seguidores, e conduziria os Estados Unidos e os seus aliados a uma 'armadilha diabólica', nas palavras do ministro dos Negócios Estrangeiros francês”.

O analista sênior da CIA responsável por perseguir Osama Bin Laden desde 1996, Michael Scheuer, escreveu pouco depois que “Bin Laden tem dito com precisão as razões que o levaram a desencadear a guerra contra nós. [Ele] pretende mudar de forma drástica as políticas dos EUA e do Ocidente em relação ao mundo islâmico”, e com um amplo sucesso: “As forças e as políticas dos EUA estão a provocar a radicalização do mundo islâmico, algo que Osama Bin Laden vem tentando fazer com sucesso substancial, mas incompleto, desde o início dos anos 90. O resultado, parece-me justo concluir, é que os Estados Unidos da América continuam a ser o único aliado indispensável de Bin Laden.” E possivelmente continuam a sê-lo, mesmo após a sua morte.

O primeiro 11/9
Havia uma alternativa? Há todas as probabilidades de que o movimento jihadista, muito do qual altamente crítico a Bin Laden, pudesse ter sido dividido e minado após o 11/9. O “crime contra a humanidade”, como era correctamente chamado, poderia ter sido abordado como um crime, com uma operação internacional para deter os presumíveis suspeitos. Na época esta ideia foi reconhecida, mas a sua execução sequer foi considerada.

Em “9-11”, citei a conclusão de Robert Fisk de que “o crime horrendo” de 11/9 foi cometido “com maldade e crueldade impressionante,” um juízo exato. É útil ter em mente que os crimes poderiam ter sido ainda piores. Suponham, por exemplo, que o ataque tivesse ido tão longe ao ponto de bombardear a Casa Branca, matando o presidente, de impor uma ditadura militar brutal que matasse milhares e torturasse dezenas de milhares, instalando ao mesmo tempo um centro de terror internacional que ajudasse a impor estados similares de tortura-e-terror noutros países, e executando uma campanha internacional de assassinato; e como um incentivo suplementar, tivesse trazido uma equipa de economistas – chamemos-lhes de “os Kandahar boys” – que rapidamente conduzissem a economia a uma das piores depressões da sua história. Claramente, teria sido muito pior do que o 11/9.

Infelizmente, nada disto é especulação. Aconteceu. A única inexatidão neste breve relato é que os números devem ser multiplicados por 25 para produzir equivalentes per capita, a medida apropriada. Refiro-me, naturalmente, àquilo que na América Latina é frequentemente chamado de “o primeiro 11/9”: o 11 de Setembro de 1973, quando os Estados Unidos culminaram com sucesso os seus esforços para derrubar o governo democrático de Salvador Allende, no Chile, com um golpe militar que levou ao poder o regime brutal do general Pinochet. O objetivo, nas palavras da administração Nixon, era matar o “vírus” que poderia estimular todos esses “estrangeiros [que] andam a querer tramar-nos” e que queriam assumir o controle dos seus próprios recursos e aplicar uma política intolerável de desenvolvimento independente. A apoiar esta política estava a conclusão do Conselho de Segurança Nacional que, se os EUA não conseguiam controlar a América Latina, não se podia esperar que conseguissem realizar a sua Ordem “em qualquer outro lugar no mundo.”

O primeiro 11/9, ao contrário do segundo, não mudou o mundo. Não era “nada de grandes consequências”, como garantiu Henry Kissinger ao seu chefe poucos dias depois.

Estes eventos de poucas consequências não se limitaram ao golpe militar que destruiu a democracia chilena e pôs em movimento a história de horror que se seguiu. O primeiro 11/9 foi apenas um ato de um drama que começou em 1962, quando John F. Kennedy alterou a missão dos militares latino-americanos de “defesa hemisférica” – um resquício anacrônico da Segunda Guerra Mundial – para a “segurança interna”, um conceito com uma interpretação arrepiante nos círculos latino-americanos dominados pelos EUA.

Na “História da Guerra Fria”, recentemente publicada pela Universidade de Cambridge, o acadêmico latino-americano John Coatsworth escreve que daquele tempo até “ao colapso soviético em 1990, o número de presos políticos, de vítimas de tortura, e de execuções de dissidentes políticos não violentos na América Latina excedeu amplamente os da União Soviética e seus satélites europeus do Leste,” incluindo também muitos mártires religiosos e massacres em massa, sempre apoiados ou iniciado em Washington. O último grande ato violento foi o assassinato brutal de seis importantes intelectuais latino-americanos, sacerdotes jesuítas, poucos dias depois da queda do Muro de Berlim. Os criminosos foram um batalhão de elite salvadorenho, que já tinha deixado um chocante rasto de sangue, recém saído de um treinamento na Escola de Guerra Especial JFK, que actua sob as ordens diretas do Alto Comando do estado cliente dos Estados Unidos.

Evidentemente, as consequências desta praga hemisférica ainda ecoam.

Dos raptos à tortura e ao assassinato
Tudo isto, e muitas coisas semelhantes, são desvalorizadas como sendo de pouca importância, e esquecidas. Aqueles cuja missão é governar o mundo desfrutam de uma imagem mais reconfortante, muito bem articulada na atual edição do prestigiado (e valioso) jornal do Royal Institute of International Affairs, em Londres. O artigo principal discute “a ordem internacional visionária” da “segunda metade do século XX” marcada pela “universalização de uma visão americana da prosperidade comercial”. Eis uma visão que não chega a exprimir a percepção daqueles que estão do lado errado das armas.

O mesmo vale para o assassinato de Osama Bin Laden, que põe fim, pelo menos, a uma fase da “guerra contra o terror” re-declarada pelo presidente George W. Bush no segundo 11/9. Façamos algumas reflexões sobre esse evento e o seu significado.

Em 1° maio de 2011, Osama Bin Laden foi morto na sua praticamente desprotegida residência por uma incursão de 79 SEALs da Marinha, que entraram no Paquistão de helicóptero. Depois de muitas histórias sensacionalistas fornecidas pelo governo e retiradas, os relatórios oficiais tornaram cada vez mais claro que a operação foi um assassinato planejado, violando multiplamente as normas elementares do direito internacional, começando com a invasão em si.

Não parece ter havido qualquer tentativa de deter a vítima desarmada, como presumivelmente poderia ter sido feito por 79 comandos que não enfrentaram oposição – excepto, relatam, da sua esposa, também desarmada, contra a qual dispararam em legítima defesa, quando ela “arremeteu” sobre eles, de acordo com a Casa Branca.

A reconstrução plausível dos acontecimentos foi feita pelo veterano correspondente no Oriente Médio, Yochi Dreazen, e colegas na revista Atlantic. Dreazen, ex-correspondente militar do Wall Street Journal, é correspondente sênior do Grupo National Journal, cobrindo assuntos militares e de segurança nacional. De acordo com a sua investigação, o planeamento da Casa Branca não parece ter considerado a opção de capturar Bin Laden vivo: “O governo deixou claro ao clandestino Comando Conjunto de Operações Especiais que queria Bin Laden morto, de acordo com uma autoridade sênior dos EUA que teve conhecimento das discussões. Um oficial de alta patente militar que foi informado do assalto disse que os SEALs sabiam que a sua missão não era levá-lo vivo.”

Os autores acrescentam: “Para muitos, no Pentágono e na CIA, que tinham passado quase uma década a caçar Bin Laden, matar o militante foi um ato necessário e justificado de vingança”. Além disso, “a captura de Bin Laden vivo teria também posto a administração diante de uma série de incômodos desafios jurídicos e políticos”. Melhor, então, assassiná-lo, deitar o corpo ao mar sem a autópsia considerada essencial depois de uma morte – um ato que previsivelmente provocou raiva e ceticismo em grande parte do mundo muçulmano.

Como observa a investigação da Atlantic: “A decisão de matar Bin Laden sem rodeios foi a ilustração mais clara até agora de um aspecto pouco notado da política de contra-terrorismo da administração Obama. O governo Bush capturou milhares de militantes suspeitos e enviou-os para campos de detenção no Afeganistão, no Iraque e na Baía de Guantánamo. A administração Obama, em contraste, tem-se concentrado em eliminar terroristas individuais em vez de tentar capurá-los vivos.” Trata-se de uma diferença significativa entre Bush e Obama. Os autores citam o ex-chanceler da Alemanha Ocidental Helmut Schmidt, que “disse à TV alemã que a invasão dos EUA foi 'muito claramente uma violação do direito internacional' e que Bin Laden deveria ter sido detido e levado a julgamento”, contrapondo Schmidt ao Procurador Geral dos EUA, Eric Holder, que “defendeu a decisão de matar Bin Laden, embora este não representasse uma ameaça imediata para os SEALs, dizendo a um painel da Câmara ... que o assalto tinha sido 'legal, legítimo e adequado em todos os sentidos'”.

A eliminação do corpo sem autópsia também foi criticada por aliados. O eminente advogado britânico Geoffrey Robertson, que apoiou a intervenção e se opôs à execução em grande parte por razões pragmáticas, considerou no entanto a afirmação de Obama de que “fora feita justiça” como um “absurdo”, o que deveria ser óbvio para um ex-professor de direito constitucional. A lei do Paquistão “exige um inquérito sobre a morte violenta e a legislação internacional de direitos humanos insiste que o 'direito à vida' obriga a um inquérito sempre que ocorre uma morte violenta por acção de um governo ou da polícia. Os EUA têm, portanto, o dever de realizar um inquérito que satisfaça o mundo quanto às verdadeiras circunstâncias desta morte.”

Robertson, a propósito, recorda-nos que “nem sempre foi assim. Quando chegou a hora de decidir o destino de homens muito mais mergulhados na maldade que Osama Bin Laden – a liderança nazi – o governo britânico queria que eles fossem enforcados seis horas após a captura. O presidente Truman hesitou, citando a conclusão de Robert Jackson, do Supremo Tribunal, que a execução sumária “não se sentaria facilmente na consciência americana nem seria lembrada pelos nossos filhos com orgulho... o único caminho é determinar a inocência ou culpa do acusado depois de uma audiência tão desapaixonada quanto os tempos permitam e após um registo que vai deixar claros as nossas razões e motivos”.

Eric Margolis comenta que “Washington nunca publicou provas da sua afirmação de que Osama bin Laden esteve por trás dos ataques do 11 de Setembro”, presumivelmente uma razão pela qual “as sondagens mostram que pelo menos um terço dos americanos que responderam acredita que o governo de Estados Unidos e/ou Israel estiveram por trás do 11 de Setembro”, enquanto no mundo muçulmano o ceticismo é muito mais alto. “Um julgamento aberto nos Estados Unidos ou em Haia teria exposto essas afirmações à luz do dia”, continua, razão prática pela qual Washington deveria ter seguido a lei.

Em sociedades que professam algum respeito pela lei, os suspeitos são detidos e levados a um julgamento justo. Sublinho "suspeitos". Em junho de 2002, o chefe do FBI Robert Mueller, no que o Washington Post descreveu como “entre os seus comentários públicos mais detalhados sobre a origem dos ataques”, pôde dizer apenas que “os investigadores crêem na ideia de que os ataques do 11 de Setembro ao World Trade Center e ao Pentágono vieram de líderes da Al Qaeda no Afeganistão, a maquinação efectiva foi feita na Alemanha, e o financiamento veio através dos Emirados Árabes Unidos a partir de fontes no Afeganistão.”

O que o FBI acreditou e pensou em junho de 2002 não o sabia oito meses antes, quando Washington repeliu ofertas provisórias dos Taliban (quão sérias, não sabemos) para permitir um novo julgamento de Bin Laden se lhes fossem apresentadas provas. Assim, não é verdade, como o presidente Obama afirmou nas suas declarações da Casa Branca depois da morte de Bin Laden, que “rapidamente soubemos que os ataques do 11 de Setembro foram executados pela Al-Qaeda.”

Nunca houve alguma razão para duvidar do que o FBI acreditou em meados de 2002, mas isto deixa-nos longe da prova da culpa requerida em sociedades civilizadas – e quaisquer que as provas fossem, não justificam o assassinato de um suspeito que, parece, teria sido facilmente detido e levado a julgamento. O mesmo é mais ou menos verdade quanto às provas fornecidas desde então. Assim, a Comissão do 11 de Setembro forneceu provas circunstanciais extensas do papel de Bin Laden no 11 de Setembro, baseando-se principalmente no que lhe tinha sido dito sobre confissões de presos de Guantánamo. É duvidoso que muito disso se sustivesse num julgamento independente, tendo em conta as maneiras como as confissões foram extraídas. Mas, em qualquer caso, as conclusões de uma investigação autorizada pelo Congresso, por muito convincentes que se possam achar, claramente ficariam aquém de uma sentença por um tribunal credível, que é o que passa a categoria do acusado de suspeito para condenado.

Fala-se muito da "confissão" de Bin Laden, mas aquilo foi uma fanfarronice, não uma confissão, com tanta credibilidade quanto a minha "confissão" de que ganhei a maratona de Boston. A fanfarronice diz-nos muito do seu caráter, mas nada da sua responsabilidade pelo que ele considerou como um grande feito, do qual quis ficar com o crédito.

De novo, tudo isso é, de forma transparente, bastante independente do nosso juízo sobre a sua responsabilidade, que pareceu clara imediatamente, mesmo antes do inquérito do FBI, e que ainda parece.

Crimes de Agressão
Vale a pena acrescentar que a responsabilidade de Bin Laden foi reconhecida na maior parte do mundo muçulmano e condenada. Um exemplo significativo é o do eminente clérigo libanês, xeique Fadlallah, muito respeitado em geral pelo Hezbollah e por grupos xiitas, também fora do Líbano. Ele tinha alguma experiência com assassinatos. Tinha sido visado para assassínio: por um caminhão-bomba fora duma mesquita, numa operação organizada pela CIA em 1985. Escapou, mas 80 outros foram mortos, na maior parte mulheres e meninas ao saírem da mesquita – um daqueles crimes inumeráveis que não entram para os anais do terror por causa da falácia “da agência errada.” O xeique Fadlallah condenou marcadamente os ataques do 11 de Setembro.

Um dos especialistas principais do movimento jihadista, Fawaz Gerges, sugere que o movimento poderia ter-se dividido, tivessem os Estados Unidos explorado a oportunidade, em vez de mobilizar o movimento, em particular com o ataque ao Iraque, um grande benefício para Bin Laden, que levou a um aumento acentuado do terror, como as agências de espionagem tinham antecipado. Nas audições Chilcot, ao investigar o contexto da invasão do Iraque, por exemplo, o antigo chefe da agência de informações internas britânica MI5 declarou que tanto a agência britânica como a dos Estados Unidos estavam conscientes de que Saddam não representava qualquer ameaça séria, que a invasão provavelmente aumentaria o terror e que as invasões do Iraque e do Afeganistão tiveram partes de uma geração radicalizada de muçulmanos que viram as acções militares como “um ataque ao Islão”. Como acontece muitas vezes, a segurança não foi uma prioridade alta para a acção do estado.

Poderia ser instrutivo perguntarmo-nos como estaríamos reagindo se comandos iraquianos tivessem aterrado no complexo militar de George W. Bush, o assassinassem e lançassem o corpo no Atlântico (depois dos rituais fúnebres devidos, naturalmente). Sem sombra de controvérsia, ele não era um "suspeito" mas sim o "decisor" que deu as ordens para invadir o Iraque – isto é, cometer “o crime internacional supremo que só se diferencia de outros crimes de guerra por conter dentro de si a maldade acumulada da totalidade” pelo qual os criminosos nazis foram enforcados: as centenas de milhares de mortes, os milhões de refugiados, a destruição da maior parte do país e do seu patrimônio nacional e o conflito sectário assassino que agora se estendeu ao resto da região. Igualmente de forma incontroversa, esses crimes excederam vastamente tudo o atribuído a Bin Laden.

Dizer que tudo isso é incontroverso, conforme é, não quer dizer que não seja negado. A existência de aplanadores da Terra não muda o fato de que, de forma incontroversa, a terra não é plana. De forma semelhante, é incontroverso que Stalin e Hitler foram responsáveis por crimes horrendos, embora os seus partidários o neguem. Tudo isto deveria, de novo, ser demasiado óbvio para ser comentado, e sê-lo-ia, excepto numa atmosfera de histeria tão extrema que bloqueasse o pensamento racional.

De forma semelhante, é incontroverso que Bush e seus parceiros cometeram mesmo o “crime internacional supremo” – o crime da agressão. Aquele crime foi definido de forma suficientemente clara pelo magistrado Robert Jackson, o Chefe do Conselho dos Estados Unidos em Nuremberga. "Um agressor", propôs Jackson ao Tribunal na sua declaração de abertura, é um estado que é o primeiro a cometer tais ações como a “invasão pelas suas forças armadas, com ou sem declaração da guerra, do território de outro estado”. Ninguém, nem mesmo o apoiante mais extremo da agressão, nega que Bush e parceiros fizeram precisamente isso.

Também faríamos bem em lembrar as palavras eloquentes de Jackson em Nuremberga sobre o princípio da universalidade: “Se certos atos na violação de tratados são crimes, são crimes sejam os Estados Unidos ou seja a Alemanha fazê-los e não estamos preparados para estabelecer uma regra da conduta criminal contra outros que não estivéssemos dispostos a ter invocado contra nós”.

É também claro que intenções anunciadas são irrelevantes, mesmo se nelas se acreditar verdadeiramente. Registos internos revelam que os fascistas japoneses aparentemente acreditaram que, ao assolar a China, se esforçavam por a converter “num paraíso terrestre”. E embora possa ser difícil imaginar, é concebível que Bush e companhia acreditassem que protegiam o mundo da destruição pelas armas nucleares de Saddam. Tudo irrelevante, embora partidários ardentes em todos os lados possam tentar convencer-se de outra coisa.

Deixam-nos duas escolhas: ou Bush e seus parceiros são culpados do “crime internacional supremo” incluindo de todos os males que se seguem, ou então declaramos que os processos de Nuremberga foram uma farsa e que os aliados eram culpados de assassinato judicial.

A Mentalidade Imperial e o 11 de Setembro
Alguns dias antes do assassinato de Bin Laden, Orlando Bosch morreu pacificamente na Flórida, onde viveu juntamente com o seu cúmplice Luis Posada Carriles e muitos outros parceiros do terrorismo internacional. Depois de ter sido acusado de dúzias de crimes terroristas pelo FBI, Bosch recebeu um perdão presidencial de Bush I, passando por cima das objecções do Departamento de Justiça que considerou a conclusão “inevitável de que seria prejudicial para o interesse público dos Estados Unidos fornecer um porto seguro a Bosch”. A coincidência dessas mortes imediatamente traz a doutrina de Bush II à lembrança – “já … uma regra de facto das relações internacionais”, segundo o notável especialista de relações internacional de Harvard Graham Allison – que renega “a soberania de estados que fornecem santuário a terroristas”.

Allison refere-se à declaração oficial de Bush II, dirigida aos Taliban, de que “aqueles que abrigam terroristas são tão culpados como os próprios terroristas”. Tais estados, portanto, perderam a sua soberania e são objectivos prontos para bombardeamento e terror – por exemplo, o estado que abrigou Bosch e o seu parceiro. Quando Bush emitiu esta nova “ regra de fato das relações internacionais,” ninguém pareceu notar que ele apelava à invasão e destruição dos Estados Unidos e ao assassínio dos seus presidentes criminosos.

Nada disto é problemático, claro, se rejeitarmos o princípio da universalidade do magistrado Jackson, e adotarmos antes o princípio de que os Estados Unidos são auto-imunes contra o direito internacional e as convenções – como, de fato, o governo tornou frequentemente muito claro.

Vale a pena também pensar no nome dado à operação de Bin Laden: Gerônimo. A mentalidade imperial é tão profunda que poucos parecem capazes de perceber que a Casa Branca está a glorificar Bin Laden chamando-lhe “Gerônimo” - o chefe índio apache que conduziu a resistência corajosa aos invasores das terras Apache.

A escolha descuidada do nome lembra a tranquilidade com que damos nomes às nossas armas de assassinato a partir das vítimas dos nossos crimes: Apache, Blackhawk [1]… Poderíamos reagir diferentemente se a Luftwaffe tivesse chamado aos seus aviões de combate "Judeu" e "Cigano".

Os exemplos mencionados caem dentro da categoria “excepcionalismo americano,” não fosse o facto de uma supressão fácil dos crimes próprios ser virtualmente ubíqua entre estados poderosos, pelo menos naqueles que não são derrotados e obrigados a reconhecer a realidade.

Talvez o assassinato tenha sido percebido pela administração como “um ato de vingança,” como Robertson conclui. E talvez a rejeição da opção legal de um julgamento reflicta uma diferença entre a cultura moral de 1945 e a de hoje, como ele sugere. Qualquer que fosse o motivo, dificilmente podia ter sido apenas a segurança. Como no caso de “crime internacional supremo” no Iraque, o assassinato de Bin Laden é outra ilustração do fato importante de que a segurança é muitas vezes não uma alta prioridade da ação do estado, ao contrário da doutrina que recebemos.

(*) Noam Chomsky é Professor emérito do Instituto no Departamento de Linguística e Filosofia do MIT. É autor de numerosas obras políticas de topo de vendas, incluindo “9-11: Was There an Alternative?” (Seven Stories Press), uma versão atualizada do seu relato clássico, que acaba de ser publicada esta semana juntamente com um novo ensaio destacado – a partir do qual este post foi adaptado – levando em conta os 10 anos desde os ataques do 11 de Setembro.

(**) Tradução de Luis Leiria e Paula Sequeiros para o Esquerda.net
A partir de texto publicado em Tom Dispatch

[1] NT: Blackhawk, líder guerreiro dos nativos Norte-Americanos Sauk que demonstrou ser um poderoso opositor dos invasores colonizadores ingleses
(Carta Maior)

Dilminha

Renato Rabelo: A popularidade de Dilma e o desespero da direita

“Significado simbólico e que desagrada a oposição.” Foi como resumiu Renato Rabelo, durante reflexão no programa Palavra do Presidente, ao falar sobre a contínua aprovação do governo da presidenta Dilma Rousseff, publicada nesta terça-feira (19) pela Confederação Nacional da Indústria.

Joanne Mota, da Rádio Vermelho em São Paulo

Ele comemorou os resultados e destacou que essa pesquisa só demonstra o que pensa a população em relação ao modo de governar deste grupo, que iniciou uma nova forma de governar em 2003, quando elegemos, pela primeira vez na história, um metalúrgico, um representante dos trabalhadores.

“Dilma estava neste grupo e começou seu trabalho, pelo Brasil, já no governo Lula e com sua vitória, em 2010, deu não só continuidade como aprofundou muitas questões”, defendeu.

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Além disso, a correlação de forças, que está na base desse governo, e a popularidade da presidenta tem desagradado, em muito, o bloco de oposição que se une em uma ampla campanha contra as medidas do governo e se arvora com um único objetivo: desgastar a imagem de Dilma, frear as mudanças conquistadas pelos setores progressistas, enfraquecer o base do governo e assim atingir a governabilidade.

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O presidente do PCdoB esclareceu que esse grupo que está aí, e que há 10 anos reformula o modo de governar, não herdou nada. Ao contrário, buscou ouvir a população e construir o melhor caminho para um novo Brasil.

“O resultado positivo é fruto de uma política que, no nosso entendimento, age de maneira progressiva ao atender as reivindicações nacionais e do povo. A contínua aprovação da presidenta não é fruto do acaso, é resultado de um trabalho comprometido, que sempre pensou a partir das necessidades o povo, da nação. Observe os resultados da pesquisa, por exemplo, no Nordeste, povo que, historicamente, foi deixado de lado, que sofreu com formas de governo arcaicas”, explicou.

Renato cita, como exemplo, duas questões que atingem o povo de maneira geral e refletem na avaliação da presidente: a valorização do salário mínimo, instituída ainda no governo Lula; e o cenário próximo do pleno emprego. “Somente esses dois pontos são suficientes para explicar a aprovação da presidenta, porque, historicamente, nunca se chegou a estes patamares. E se você garante o emprego e sua valorização, você garante consumo, que garante economia aquecida e crescimento do mercado interno. Mesmo lembrando que o crescimento e as taxas de investimento ainda não estejam em patamares satisfatórios”, equacionou Renato.

Tripé nocivo

Sobre a discussão em relação à política macroeconômica, o dirigente comunista salientou que esse ainda é o nosso maior desafio. Segundo ele, a presidenta tem adotado medidas que redirecionam esse cenário.

“Dilma rompe a ortodoxia das gestões anteriores, que se baseava nos juros altos – cenário que estimula a especulação e drena os recursos que poderiam ir para a produção –, câmbio sobrevalorizado – real mais caro que o dólar, o que inviabiliza nossas exportações –, e a questão da austeridade fiscal – ou seja, superávit primário muito elevado para garantir o pagamento dos juros”, rememora Renato.

Sem investimento não haverá desenvolvimento

Renato Rabelo também falou da luta travada pelo PCdoB e reafirmou: “Não haverá desenvolvimento sem investimento. E para que haja investimento, é preciso que tenhamos juros baixos e um câmbio favorável. Esse raciocínio é fundamental para que para incentivar o investimento e colocar o país em um novo patamar”.

Para o dirigente comunista, o câmbio é um ponto-chave para avançar no desenvolvimento, “reconhecemos os esforços, mas é preciso ir mais além”. “De fato falamos de um governo que tem enfrentado a crise financeira, fabricada pelo imperialismo, com prudência e sem perder de vista o avanço do país. Porém, os setores organizados estão atentos e prontos para ajudar a presidenta a construir um cenário para uma nova arrancada.”
(vermelho.org)

Papa

“Habemus papam”: Francisco     Imprimir        E-mail   
Escrito por Frei Betto  
Sexta, 15 de Março de 2013



O papa Francisco – nome adotado pelo cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio –, ao ser eleito novo chefe da Igreja Católica, terá pela frente difíceis desafios. O maior deles, imprimir colegialidade ao governo da Igreja e reformar a Cúria Romana.

Para mexer nesse ninho de cobras, terá de remover presidentes de congregações (que, no Vaticano, equivalem a ministérios) e nomear para dirigi-las prelados que, hoje, vivem fora de Roma e são, portanto, virtualmente imunes à influência da “famiglia curiale”, a que, de fato, exerce o poder na Igreja.



Para modificar a estrutura monárquica da Igreja, Francisco terá de repensar o estatuto das nunciaturas, valorizar as conferências episcopais e o sínodo dos bispos e, quem sabe, criar novas instituições, como um colégio de leigos capaz de representar a Igreja como Povo de Deus, e não como sociedade clericalizada pretensamente perfeita.



Não será surpresa se, em breve, o novo papa promover o seu primeiro consistório, elevando ao cardinalato bispos e arcebispos dos cinco continentes (e talvez até padres e leigos, os chamados “cardeais in pectore”, que não são de conhecimento público).



Tal iniciativa deverá incluir o atual arcebispo do Rio de Janeiro, dom Orani Tempesta. Paira certa incongruência no fato de a arquidiocese carioca não ter, há anos, cardeal titular, como há em São Paulo. Sobretudo considerando que o Rio acolherá, em julho próximo, a Jornada Mundial da Juventude, à qual o novo pontífice estará presente.



A imagem da Igreja Católica está manchada, hoje, por escândalos sexuais e falcatruas financeiras. Não se espere do novo papa atitudes ousadas enquanto Bento XVI lhe fizer sombra na área do Vaticano. Mas seria uma irresponsabilidade o papa Francisco não abrir, no interior da Igreja, o debate sobre a moral sexual.



Nesse tema, são muitas as questões a serem aprofundadas, a começar pela seleção dos candidatos ao sacerdócio. Já há uma instrução de Roma aos bispos para que não sejam aceitos jovens notoriamente afeminados – o que me parece uma discriminação incompatível com os valores evangélicos. Equivale a impedir o ingresso na carreira sacerdotal de candidatos heterossexuais dotados de uma masculinidade digna de Don Juan.



O problema não é questão de aparência, e sim de vocação. Se a Igreja pretende ampliar o número de padres terá que, necessariamente, retomar o padrão dos seus primeiros séculos e distinguir vocação ao sacerdócio de vocação ao celibato.



Aqueles que se sentem em condições de se abster de vida sexual (já que apenas aos anjos é dado prescindir da sexualidade) devem abraçar a via monástica, religiosa, ainda que alguns se tornem sacerdotes para o serviço comunitário. Já ao clero diocesano seria facultado escolher a vida matrimonial, como ocorre hoje nas Igrejas ortodoxa e anglicana, e com os pastores de Igrejas protestantes.



O caminho mais curto e mais sábio seria o papa admitir a reinserção de padres casados no ministério sacerdotal. Eles são milhares. No mundo, calcula-se cerca de 100 mil; no Brasil, 5 mil. Muitos gostariam de voltar ao serviço pastoral com direito a administrar sacramentos e celebrar missa.



A medida mais inovadora seria permitir o acesso de mulheres ao sacerdócio. Não há precedente na história da Igreja, exceto em países socialistas, onde, clandestinos, bispos despreparados ordenaram mulheres cujo sacerdócio, ao vir a lume, não foi reconhecido por Roma.



Nos evangelhos há mulheres notoriamente apóstolas, embora não figurem na lista canônica dos doze apóstolos. Em Lucas 8, 1, constam os nomes de mulheres pertencentes à comunidade apostólica de Jesus: Maria Madalena, Joana, Susana “e várias outras”.



A samaritana (João 4) foi apóstola, no sentido rigoroso do termo – a primeira pessoa a anunciar Jesus como o Messias. E Maria Madalena, a primeira testemunha da ressurreição de Jesus.



Facultar às mulheres o acesso ao sacerdócio implica modificar um dos pontos mais anacrônicos da ortodoxia católica, que ainda hoje considera a mulher ontologicamente inferior ao homem. É a famosa pergunta em aula de teologia: pode o escravo se tornar padre? Sim, desde que liberto, pois como homem goza da plenitude humana. Já a mulher, ser inferior ao homem, está excluída desse direito, pois não goza da plenitude humana.



Outros desafios se apresentam ao novo papa, como o diálogo inter-religioso. Nos últimos pontificados Roma deu passos significativos para melhorar as relações do catolicismo com o judaísmo, levando o papa a visitar o Muro das Lamentações, em Jerusalém, e isentando os judeus da pecha de assassinos de Jesus.



No entanto, retrocedeu quanto à relação com os muçulmanos. Em sua visita à Universidade de Regensburg, na Alemanha, em 2006, Bento XVI cometeu a infelicidade de citar uma história do século XIV em que o imperador bizantino pede a um persa que lhe mostre "o que Maomé trouxe de novo, e você só encontrará coisas más e desumanas, como sua ordem de espalhar pela espada a fé que pregava". Embora a intenção do papa fosse condenar o uso da violência pela religião – no qual a Igreja da Inquisição foi mestra –, a comunidade islâmica, com razão, se sentiu ofendida.



Ao visitar os EUA, em 2008, Bento XVI esteve numa sinagoga de Nova York, sem, no entanto, dirigir-se a uma mesquita, o que teria demonstrado sua imparcialidade e abertura à diversidade religiosa, além de combater o preconceito estadunidense de que muçulmano rima com terrorista.



Há que aprofundar o diálogo com as religiões do Oriente, como o budismo e as tradições espirituais da Índia. E buscar melhor aproximação com os cultos animistas da África e os ritos indígenas da América Latina.



É chegada a hora de a Igreja Católica admitir a pertinência das razões que provocaram sua ruptura com as Igrejas Ortodoxas e a de Lutero com Roma. E, num gesto ecumênico, buscar a unidade na diversidade, de modo a testemunharem uma única Igreja de Cristo.



Convém reconhecer, como propõe o Concílio Vaticano II, que as sementes do Evangelho vigoram também em denominações religiosas não cristãs, ou seja, fora da Igreja Católica há sim salvação.



O papa Francisco terá que optar entre os três dons do Espírito Santo oferecidos aos discípulos de Jesus: sacerdote, doutor ou profeta. A ser um sacerdote como João Paulo II, teremos uma Igreja voltada a seus próprios interesses como instituição clerical, com leigos tratados como ovelhas subservientes e desconfiança frente aos desafios da pós-modernidade.



A ser um doutor como Bento XVI, o novo pontífice reforçará uma Igreja mais mestra do que mãe, na qual a preservação da doutrina tradicional importará mais do que encarnar a Igreja nos novos tempos em que vivemos, incapaz de ser, como São Paulo, “grego com os gregos e judeu com os judeus”.





Assumindo seu múnus profético, como João XXIII, o papa Francisco se empenhará numa profunda reforma da Igreja, para que nela transpareça a palavra e o testemunho de Jesus, no qual Deus se fez um de nós.



“Habemus papam!”. Já sabemos quem: Francisco. É a primeira vez na história que um papa adota o nome daquele que sonhou que a Igreja desabava e cabia a ele reconstruí-la. O tempo dirá a que veio.





Frei Betto é escritor, autor de “Cartas da Prisão” (Agir), entre outros livros.
Website:  http://www.freibetto.org/

Twitter:@freibetto.


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Israel

Pepe Escobar: “Homens de verdade iriam a Teerã”

21/3/2013, Pepe Escobar, Asia Times Online – The Roving Eye
“Real liars go to Tehran”
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Pepe Escobar
Tio Marx nunca supôs que acontecesse: a história repetindo-se e repetindo-se sempre como tragédia, depois de, na primeira vez, já ter sido grande tragédia.
Examinemos o caso. Antes, deem uma olhada nessa coluna assinada publicada pelo Wall Street Journal em setembro de 2002, no auge da histeria em torno da invasão do Iraque.

Os EUA invadem o Iraque
Título: “Da necessidade de derrubar Saddam”. Autor: Benjamin "Bibi" Netanyahu – então fora do governo de Israel.

Está tudo ali: “um ditador que rapidamente amplia seu arsenal de armas químicas e biológicas” e o qual “tenta febrilmente construir a própria bomba atômica”; equivalente a Saddam, só Hitler; Israel (potência nuclear, de facto e conhecida) pintada como vítima indefesa do “terror” palestino; a “revelação” de que Saddam poderia produzir combustível nuclear em “centrífugas do tamanho de máquinas de lavar roupa que podem ser escondidas no interior do país – e o Iraque é país extenso”; a cantoria monocórdia sobre ataque unilateral preventivo; e a conclusão de sempre: “não nos satisfaremos com nada menos que o desmonte total do governo de Saddam”.

A popularidade de Netanyahu sobe quanto mais Israel assassina palestinos

Faça avançar a fita para essa semana, mais de 10 anos depois daquela coluna de Bibi, no WSJ. Cenário: conferência de imprensa, o Primeiro-Ministro de Israel Bibi Netanyahu e o Presidente dos EUA, Barack Obama, que o visita. Todos que assistiram ao vivo pela rede al-Jazeera, do Oriente Médio ao leste da Ásia, devem ter suposto que assistiam à versão geopolítica de De volta ao futuro – e, francamente, Michael J Fox pelo menos, tinha charme.

Ali, nenhum charme; mais parecia versão em terno e gravata de A volta dos mortos vivos. Bibi e Obama não sabiam o que mais fizessem para repetir e repetir que o laço entre EUA e Israel é “eterno”. Na verdade, Bibi estava mais interessado em repetir e repetir que as armas nucleares iranianas (que não existem) são ameaça existencial contra Israel. E repetiu, e repetiu e repetiu que Obama dissera e repetira e repetira e repetira que Israel tem direito de fazer qualquer coisa para defender-se, e que a segurança de Israel não é responsabilidade de mais ninguém, nem de Washington.


Obama, por sua vez, repetiu mais uma vez que a política oficial de Washington para o Irã não é política de contenção – mas, sim, impedir que o Irã obtenha a bomba atômica. Destacou que a “janela de oportunidade” está cada vez mais estreita; e, claro: todas as opções estão sobre a mesa.

A ideia de que o Presidente dos EUA [President Of The US, POTUS) deliberadamente ignora laudos e relatórios de uma longa lista de suas próprias agências de inteligência sobre o Irã levanta(ria) suspeitas em qualquer mundo racional. Mas aqui não se cogita de mundo racional: é uma espécie de reality show do submundo.

O sonho erótico molhado dos colonos israelenses

Os poderes no poder em Israel – e não importa quantos neguem pela imprensa-empresa norte-americana infestada de neoconservadores – foram determinantes para construir toda a operação-mentiras que levou à guerra do Iraque. Ariel Sharon naquele momento rugia que a coordenação estratégica entre Israel e os EUA havia alcançado “dimensões sem precedentes”.

Assentamentos de Israel exclusivos para judeus em terras roubadas dos palestinos
Bibi não passava de uma engrenagem naquela máquina – como Jim Lobe explica – citando as pérolas de sabedoria que Bibi distribuiu a um muito mal informado Congresso dos EUA, em 2002.

Todos os “funcionários de Israel” e suspeitos de sempre naquele momento repetiam ininterruptamente que Saddam estaria a poucos meses de ter sua bomba atômica. O núcleo de toda a “inteligência” sobre as tais armas de destruição em massa que havia (mas não havia) no Iraque, que foi apresentada ao Congresso e aplicadamente papagueada pela imprensa-empresa, foi implantada, se não integralmente inventada, pela inteligência israelense – tema dissecado, dentre outros, por Shlomo Brom em “An Intelligence Failure” [Um fracasso da inteligência], estudo publicado pelo Jaffee Center for Strategic Studies da Universidade de Telavive, em novembro de 2003.

Claro que não fez qualquer diferença que os inspetores da ONU não tenham encontrado nenhuma prova do tal programa de construção de bombas atômicas no Iraque. Claro que não fez qualquer diferença que o genro de Saddam, Hussein Kamel, que desertou e fugiu para a Jordânia em 1995, tenha explicado em detalhes aos inspetores da ONU que desde 1991 não havia nenhuma arma de destruição em massa no Iraque.

Hoje, aí está, tudo outra vez, a segunda tragédia e a segunda farsa. Até os nepalenses que constroem aquelas torres de purpurina fulgurante em Dubai sabem que a histeria de “bombardeiem o Irã” é tática-golpe de Telavive para desviar a atenção mundial do incansável assalto/roubo de terras palestinas/limpeza étnica que segue em câmera lenta na Palestina e, consequentemente, a total impossibilidade real de chegar-se a alguma solução de dois estados.

Jonathan Cook detalha sucintamente a configuração política francamente apavorante depois das recentes eleições em Israel. O site israelense Ynet noticiou que os colonos israelenses não se cansam de saudar o novo sonho erótico molhado que veem realizado no novo Gabinete. Tradução: já se pregou o último prego no caixão do “processo paz”, morto e enterrado.


Eis pois uma moderna parábola geopolítica que intrigaria até Esopo. Bibi insulta publicamente o presidente dos EUA. Bibi apoiou aberta e desavergonhadamente o candidato Mitt (quem?!) Romney nas eleições presidenciais dos EUA. Atacou o “processo de paz” com fogo cerrado de “fatos” Hellfire “em campo” (e vastos “danos colaterais” palestinos). Só faz repetir e repetir uma única e sempre a mesma mensagem: Bombardeie, bombardeie, bombardeie, bombardeie o Irã. E é quando o presidente dos EUA, em teoria sua excelência Oh, Obama, que tem licença para matar (em listas), mas age, de fato, como turista acidental, aterriza em Israel com a licença para matar escondida entre as pernas, para maior glória de Bibi.

Não surpreende que a sórdida massa de norte-americanos neoconservadores / ”Israel antes dos EUA” / “Bombardeie o Irã” esteja em festa. Há mais de dez anos, o mantra dessa gente era “homens de verdade vão para Teerã”. A questão hoje é quando (ou se!) o Presidente dos EUA arranjará par operante de colhões para obrigar aquela gente a baixar o facho.
(Redecastor)

sexta-feira, 29 de março de 2013

Woodstock

BAÚ DO CELSÃO: ÉRAMOS CRIANÇAS, BRINCANDO NO PARAÍSO
Um dos acontecimentos mais emblemáticos e alentadores do século passado, o Festival de Música e Artes de Woodstock só é lembrado pela grande imprensa nas efemérides.

E mesmo quando isto acontece, de 10 em 10 anos, os enfoques da indústria cultural oscilam entre o nostálgico e o pitoresco, como inimiga que foi e é dos ideais que se corporificaram nesse magnífico evento.

Indo na contramão, como sempre, costumo destacar a vitalidade de Woodstock e os caminhos que ainda nos aponta, hoje e agora, para a construção de um mundo melhor.

Para começar, uma constatação óbvia: Woodstock foi uma moeda que caiu em pé. Os deuses de todos os povos e de todos os tempos parecem ter-se mobilizado para que tudo desse certo durante três dias mágicos, maravilhosos, que seriam para sempre lembrados como uma amostra da perfeição possível neste sofrido planeta.

Sem favor nenhum, posso afirmar que Woodstock foi o evento musical que mais influenciou as artes e os costumes na história da humanidade. E a conjunção de fatores que o transformou em marco e lenda dificilmente se repetirá.

Mas, não precisamos acreditar piamente na esnobada de Gilberto Gil: "quem não dormiu no sleeping bag nem sequer sonhou". Apenas, levar em conta o que houve de específico nesse festival. Outros sonhos virão, com certeza. A História não tem fim, queiram ou não os Fukuyamas agourentos.

"SOME FLOWERS IN YOUR HAIR"

Para começar, o Festival de Woodstock foi o ponto de chegada e a culminância de vários fenômenos e acontecimentos marcantes.

A escalada norte-americana no Vietnã, ao longo da década de 60, engendrara um movimento pacifista de crescente influência entre os jovens dos EUA, com direito a manifestações de protesto, queimas de cartas de recrutamento, choques com a polícia e a uma manifestação-monstro de cerco ao Pentágono

.Em 1965, um estudante de química chamado Owsley Stanley aprendeu como fabricar ácido lisérgico no porão de sua casa e logo inundou San Francisco com o LSD, impulsionando o surgimento da geração das flores, imortalizada pela bela canção de Scott McKenzie: “Se você vier para San Francisco,/ não se esqueça de colocar/ algumas flores no seu cabelo...”

Foi aí que o movimento hippie nasceu, aglutinando jovens que recusavam o american way of life e caíam na estrada, em busca de aventuras e novas experiências.

Em termos mais profundos, pode-se lembrar que era a fase em que a crescente mecanização da indústria mais e mais dispensava o uso da força física, demolindo algumas vigas-mestras da sociedade norte-americana, toda ela construída em cima do ascetismo puritano (a negação do prazer a fim de poupar energias para o trabalho). Na década de 60, o prazer reconquistava suas prerrogativas.

Grandes festivais de rock já haviam ocorrido em Monterey (1967) e na Ilha de Wight. Este último vinha se realizando desde 1968, embora o mais marcante e lembrado seja o de 1970, quando se deu uma das últimas apresentações de Jimi Hendrix.

Quanto a públicos expressivos, também não eram novidade: o festival inglês já reunira 250 mil pessoas.

Mas, foi no de Woodstock que a indústria cultural investiu pesado, pela primeira vez. É que, com algum atraso, os mercadores das artes se deram conta de que tinham um diamante bruto ao alcance das mãos. Prepararam-se, então, para explorar em grande estilo o evento seguinte.

Por último, vale notar que ainda se vivia a época dos compactos, em que eram singles e não elepês que corriam o mundo, com a repercussão dependendo, principalmente, da divulgação nas rádios.

Pouco se conhecia da segunda onda do rock (a primeira, nos anos 50, fora a dos pioneiros Elvis Presley, Chuck Berry, Little Richard, Bill Haley, etc.).

Muitos garotos, como eu, amavam os Beatles e os Rolling Stones. De resto, haviam escutado. “The House of Rising Sun” (Animals), “Sunny” (Johnny Rivers), “A Wither Shade of Pale” (Procol Harum) e quase nada mais.

Existia uma produção musical de grande qualidade represada, não atingindo circuitos mais amplos. Seria a irrupção dessa nova geração de importantes artistas ainda relativamente desconhecidos que asseguraria a surpresa e o enorme impacto causados pelo filme Woodstock e pelo álbum triplo com registros desse evento.

BRINCANDO NA CHUVA

Foram três dias de “paz, música e amor”, de 15 a 17 de agosto de 1969, levando 450 mil jovens até a fazenda do leiteiro Max Yasgur, a 80 quilômetros de Woodstock, estado de Nova York.

Logo no primeiro dia o festival foi declarado livre: quem não tinha comprado antecipadamente o ingresso, não precisou mais fazê-lo. Com isto, os promotores tiveram US$ 100 mil de prejuízo inicial, mas acabaram saindo no lucro: o filme lhes proporcionaria um retorno imediato de US$ 17 milhões.

O torrencial aguaceiro do segundo dia foi tirado de letra pela moçada, que aproveitou para relembrar a infância, chapinhando na lama. De início se tentou afastar a chuva com a força do pensamento positivo, todo mundo gritando “No rain! No rain!”. Depois, o jeito foi se amoldar a ela, brincando de tobogã e cantando. No álbum Woodstock há dois registros disto: no disco I, o improvisado “canto da chuva”; e no II, a multidão entoando em coro o refrão “deixa o sol brilhar!”, da peça Hair.

As boas vibrações não impediram a ocorrência de três mortes: uma overdose, um atropelamento por trator e um ataque de apendicite. O guitarrista e líder do The Who, Peter Townshend, não se limitou, como de hábito, a destruir o instrumento de trabalho no final apocalíptico de sua performance; levou a fúria para os bastidores, quebrando o pau com o líder hippie Abbie Hoffman.

O evento foi processado para o cinema por Michael Wadleigh, que fez uma magnífica edição de imagens e introduziu uma novidade: a bi ou tripartição da tela, oferecendo ao espectador tomadas simultâneas do mesmo grupo, de artistas isoladamente, do público, etc.

Há, além disto, nítido empenho em situar o evento sociologicamente, ao contrário do documentário sobre o Festival de Monterey, que se ateve quase exclusivamente à música. Daí a merecida reputação de Woodstock como o filme que inovou a arte de registrar espetáculos musicais.

NEM TUDO FOI MOSTRADO

Muitos artistas deixaram de ter um número exibido no filme e no álbum triplo. Ficaram de fora Melanie, Mountain e Butterfield Blues Band, com o consolo de aparecerem no segundo álbum Woodstock, duplo, que foi lançado algum tempo depois. O Jefferson Airplane não está no filme, mas sua “Volunteers” consta do álbum triplo e teve mais canções aproveitadas no álbum duplo.

A relação dos que lá estiveram mas ficaram de fora tanto do filme quanto dos álbuns é extensa: Janis Joplin, Grateful Dead, The Band, Blood Sweat & Tears, Creedence Clearwater Revival, Incredible String Band e Johnny Winter. Motivo: problemas contratuais.

[Agora, na onda do MP-3, tudo isso foi finalmente disponibilizado para os saudosistas dos velhos e bons tempos, bem como para os jovens que querem saber saber como era o som que os pais, tios e avós curtiram...]

Os cachês mais altos foram os de Jimi Hendrix (US$ 18 mil), Blood Sweat & Tears (US$ 15 mil), Joan Baez e Creedence Clearwater Revival (US$ 10 mil cada). Santana exibiu sua empolgante fusão de rock e sonoridades latinas, “Soul Sacrifice”, pela bagatela de 750 dólares.

O trovador John Sebastian tirou a sorte grande: não foi convidado, mas apareceu para dar uma olhada e acabou subindo ao palco quando a chuva recém-finda impedia a apresentação de bandas eletrificadas. Ganhou direito a constar do filme e do disco, além de receber mil dólares.

O Crosby, Stills, Nash & Young, que acabava de ser constituído, cativou a platéia com seu folk-rock contestador e obteve êxito instantâneo, lançando as bases da longa carreira de seus integrantes (pouco tempo como quarteto e muito mais como artistas-solo).

No extremo oposto, o Ten Years After foi a principal vítima da síndrome de Woodstock: nunca igualou os 11 esfuziantes minutos de “Goin’ Home”, que valeram para Alvin Lee a reputação de grande guitarrista.

Outra curiosidade: foi marcante a aparição de Arlo Guthrie (“Comin’ Into Los Angeles”), cuja trajetória acabaria sendo eclipsada pela de Bob Dylan. Os estilos vocais e temáticos eram semelhantes, tendo Dylan sido mais eficiente em afirmar-se como herdeiro da arte e da lenda de Woody Guthrie, o precursor dos mochileiros. Correndo na mesma faixa, ele sobrepujou o próprio filho de Woody.

A vertente negra do rock se destacou em duas performances memoráveis. Richie Havens, um talento que depois definharia, arrepiou a platéia com seu camisolão africano e a interpretação fulgurante de “Freedom”. E Jimi Hendrix, no auge de sua genialidade, puniu simbolicamente os militaristas com a implosão do hino nacional norte-americano.

Isto para não falar do herdeiro branco e britânico de Ray Charles, o chapadíssimo Joe Cocker, com sua voz poderosa e postura bizarra, sacudindo o corpo para a frente e para trás como um boneco de mola enquanto as mãos dedilhavam sem parar uma guitarra inexistente.

O rock erudito, que marcaria toda uma época, também se fez presente em Woodstock: o The Who interpretou uma compilação de faixas da ópera-rock Tommy, projetando mundialmente essa sua (para a época) extravagância: um álbum-duplo que, faixa a faixa, vai contando a história de um menino que flagra o adultério da mãe e o assassinato do pai, recebendo então a ordem de apagar aquele episódio da mente e nunca relatá-lo a ninguém. O trauma o torna cego, surdo e mudo, mas ele acaba se libertando e atingindo a iluminação.

SÍNTESE DA CONTRACULTURA

Com Woodstock ganhou repercussão ampla o movimento de paz e amor que fermentava na boêmia San Francisco desde meados daquela década, como um desdobramento lisérgico e roqueiro do antigo movimento beatnik

Suas características externas são ressaltadas no filme:

    o amor livre e a desinibição corporal, com o nudismo sendo amplamente praticado, de forma inocente e até singela;
    a convivência harmoniosa, sem nenhum resquício de preconceito, entre indivíduos de todas as raças, credos e orientações sexuais;
    o consumo explícito e justificado (por alguns entrevistados, como Jerry Garcia) das drogas que, no entender daquela geração, abriam as portas da percepção;
    o visual premeditadamente desarrumado do pessoal, com suas roupas coloridas, ponchos e cabeleiras imponentes;
    a substituição dos laços familiares por uma comunidade grupal (ou, como se dizia então, tribal);
    a volta à natureza e a redescoberta do lúdico (em vários momentos, veem-se marmanjos entregues a brincadeiras pueris, sem nenhum constrangimento);
    a profusão de crianças, pois os hippies mandavam às favas o planejamento familiar, os anticoncepcionais e os abortos, assumindo plenamente o amor e suas conseqüências;
    o solene desprezo pelas regras e valores dominantes na sociedade, que se evidencia até nas falas dos organizadores do festival, não ligando a mínima para os prejuízos que estavam ameaçados de sofrer.

De certa forma, este comportamento era inspirado por teóricos como Reich, Marcuse e Norman O. Brown, que vincularam o autoritarismo político à repressão instintiva, alegando que a liberdade era cerceada não só pelos mecanismos sociais que mantinham a estrutura de classes (visão da esquerda convencional), como também pelos condicionamentos que embotavam a imaginação e inibiam o desfrute pleno da sexualidade.

Essas teses inspiraram uma nova voga anarquista, que pregava o combate ao stablishment também no íntimo de cada pessoa. As drogas serviriam para o resgate de faculdades esquecidas devido ao desuso; e a liberalidade sexual, incluindo as práticas antes estigmatizadas como perversões (homossexualismo, sodomia, sexo oral, masturbação), seria a premissa de uma visão erótica do mundo, em substituição ao princípio da realidade freudiano.

BRASIL: COMUNIDADES E BICHOS-GRILOS

A influência de Woodstock em nosso país pode ser detectada na música (Raul Seixas, Made in Brazil, a última fase dos Mutantes), no teatro (Oficina, Tuca), na cinematografia (o chamado cinema marginal) e, sobretudo, nos costumes, com os bichos-grilos que percorriam as estradas como caronas, indo e vindo à meca de Arembepe (BA), além de criarem comunidades urbanas e rurais onde exercitavam um estilo alternativo de vida.

Essas tentativas, entretanto, esbarraram no ambiente repressivo dos anos de chumbo, o que levou, p. ex., a ser expulso do Brasil o elenco do Living Theatre de Julian Back, que supôs encontrar aqui seu paraíso tropical; e, em termos mais amplos, na própria impossibilidade de contingentes mais amplos, num país pobre como o nosso, garantirem indefinidamente seu sustento com artesanato, aulas de ioga e que tais.

A grande vitória da Geração Woodstock foi ter conseguido arrancar os Estados Unidos do Vietnã. E seu exemplo repercute até hoje no ativismo em defesa do meio ambiente e a favor de algumas causas justas.

Além disto, ela entronizou a imagem do jovem como centro do universo do consumo, em substituição ao modelo rígido do pai de família, daí derivando a descontração no vestir, no falar e no comportamento.

E ainda lançou alguns modismos que hoje estão em menor evidência, como o ioga, a macrobiótica, o ocultismo e a agricultura natural (sem defensivos e fertilizantes).

Não perduraria, entretanto, aquela militância política idealista e generosa: as gerações seguintes se desinteressaram de mudar o mundo, voltando a priorizar a ascensão profissional e social. O rock, depois de uma fase intensamente criativa e experimental, voltou aos caminhos seguros do marketing.

As drogas, ao invés de abrirem as portas da percepção, se tornaram instrumentos para a fuga à realidade e a ilusão de onipotência, cada vez mais pesadas, até que se chegou ao pesadelo do crack. E o amor livre degenerou em sexo casual, promiscuidade e Aids.

O sonho acabou? Talvez. Mas, quem o partilhou só lamenta que haja durado tão pouco e tenha sido substituído por uma realidade tão insossa.

Eu prefiro mesmo é a postura do inesquecível Raulzito: ele nunca deixou de acreditar que a roda da fortuna giraria de novo, trazendo de volta, desta vez para ficar, o  paraíso-agora!  que iluminou nossas vidas por um fugaz instante... e, mesmo assim, marcou-nos para sempre.

Oh, baby, a gente ainda nem começou!
(Náufragos da Utopia)

Misantropo

acusaram-me de ser misantropo. isso, misantropo, sem nuanses ou gradações. apenas a acusação...
afinal, o misantropo  seria uma categoria facilmente acusável, como asssassino, ladrão?
e o q é o misantropismo, enfim?
digamos, a grosso modo, uma mescla de anarquismo c niilismo radical...
mas pq eu, é a pergunta seguinte e inevitável....
adepto do socialismo, antípodas em si do misantopismo...
a questão, creio, remonta a acepção em si da entidade.
o misantropismo original e radical abjuga pessoas, entes, instituições, como igreja, estado , tratando-os como execráveis...
seria o caso? n nos precipitemos....n façamos o jogo do anarquismo....
como um misantropo viveria hoje em contato inevitável c o poder executivo e outras instituiç~oes? ignorando-as, talvez?
e a sua vida civil, tornar-se-ia um eterno nomade? mas nomades tb usam camelos, outra instituição....água, fogo, tb são instituições....
o nomadismo já é uma instituição!
se o nosso amado misantropo viver em sociedade - e como n viver? - como evitar entrar em contato c outros viventes?
encapsulando-se em algum lugar ad infinitum?
enfim, 'acusaram-me' e tento defenfer-me de algo insólito.
Obrigado, platéia, pelos muitos bis!

Obama e Israel


Jonathan Cook: “Só faltaram as bênçãos de Obama...”

Muito palavreado, promessas magras, ação zero contra o roubo de terras da Palestina pelos judeus

20/3/2013, Jonathan Cook, Counterpunch
“Will Israeli Settlers Receive Obama’s Blessing?”
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Jonathan Cook
Quem esperava que Barack Obama desembarcasse em Israel para forçar palestinos e israelenses a negociar, depois de quatro anos de impasse total no processo de paz, se decepcionará muito tristemente.

A viagem do presidente dos EUA que se inicia hoje talvez seja “histórica” – a primeira, de Obama, a Israel e aos territórios palestinos – mas o próprio Obama já cuidou de fazer todo o possível para esvaziar qualquer expectativa.

No fim de semana, líderes árabe-norte-americanos revelaram que Obama deixara bem claro que não apresentaria qualquer plano de paz, porque Israel já sinalizara que não tem interesse em acordo com os palestinos.

Dúvidas que por acaso persistissem sobre as intenções de Israel foram varridas, com o anúncio de um novo gabinete, rapidamente empossado antes da chegada de Obama. O novo governo faz o anterior, também de Benjamin Netanyahu – já considerado o mais linha-dura de toda a história de Israel – parecer quase moderado.

Colônias exclusivas para judeus em terras roubadas da Palestina
Ynet, um website de notícias muito popular em Israel, noticiou que os colonos saudaram o novo gabinete como a realização de seu “sonho erótico molhado”.


Zahava Gal-On, líder do partido de oposição Meretz, observou que o novo gabinete “muito fará pelos colonos e nada, absolutamente, pelo resto da sociedade israelense”.

O partido dos próprios colonos, “Lar Judeu”, foi premiado com três ministérios chaves – comércio e indústria, Jerusalém e moradia – além de controlar a comissão de finanças do Parlamento, o que basta para assegurar que as colônias exclusivas para judeus frutificarão durante seu mandato.

Não há sequer a mínima chance de o partido “Lar Judeu” aceitar congelamento de construções nas colônias semelhante ao que Obama propôs e no qual insistiu no primeiro mandato. Em vez disso, o partido acelerará o ritmo das construções e do desenvolvimento de indústrias além da Lista Verde, para tornar mais atraentes as colônias e promover a venda de moradias.

Uzi Landau, do partido de extrema direita “Israel nosso Lar”, de Avigdor Lieberman, ficou com o portfólio de turismo e rapidamente direcionará recursos para promover os muitos endereços bíblicos na Cisjordânia, para encorajar a visitação de israelenses e turistas.

O novo ministro da Defesa, que supervisiona a ocupação, é o único funcionário cuja posição que lhe dá competência para obstruir essa colonização “grátis-para-todos”; mas Moshe Yaalon, do partido Likud, ex-comandante militar, é conhecido pelo fervoroso apoio à ocupação e aos colonos.

É verdade que o grande partido, Yesh Atid, de Yair Lapid, centrista, também está representado. Mas sua influência, só diplomática, será posta sob rédea curta, porque seus cinco ministérios cuidarão de questões domésticas, bem-estar, saúde e ciência.

Moshe Yaalon
A única exceção, Shai Piron, novo Ministro da Educação, é rabino e colono, do qual só se deve esperar prosseguimento do atual programa de viagens escolares às colônias, continuando os bem-sucedidos esforços dos colonos para integrar-se na sociedade.

Longe de preparar-se para fazer concessões ao presidente dos EUA, Netanyahu só faz declarar seu apoio ao plano do partido Lar Judeu, para anexar novas vastas porções da Cisjordânia.

O único ministro com interesse pressuposto em conversações diplomáticas, mas quase exclusivamente orientado por seus esforços de autopromoção para permanecer popular na Casa Branca, é Tzipi Livni. Ela sabe bem o quanto são limitadas as oportunidades para negociar: o processo de paz só foi superficialmente mencionado no acordo da coalizão.

Obama, aparentemente consciente de que estará diante de governo ainda mais intransigente que o anterior, optou por não falar ao Parlamento. Em vez disso, discursará para platéia mais receptiva, de estudantes israelenses, em ação que funcionários dos EUA têm chamado de “uma ofensiva de charme”.

Devem-se esperar muito palavreado, promessas magras e ação zero contra a ocupação.

Yair Lapid
Sinal da relutância da Casa Branca, que foge da questão das colônias ilegais nos territórios ocupados, seus representantes na ONU recusaram-se a participar, na 2ª-feira, de um debate no Conselho de Direitos Humanos que apresentou as colônias como forma de “deplorável anexação” da Cisjordânia e de Jerusalém Leste.

A abordagem “não é comigo” de Obama satisfará seu eleitorado nos EUA. Pesquisa feita pela rede ABC-TV mostrou que o maior número de norte-americanos (55%) apoiam Israel, contra 5% que apóiam os palestinos. Maioria ainda maior, 70%, entende que os EUA devem deixar que os dois lados discutam e decidam o próprio futuro.

Israelenses comuns, o público que o presidente dos EUA quer atingir, tampouco veem com bons olhos qualquer envolvimento dos EUA. Outra pesquisa recente mostra que 53% preveem que Obama não protegerá interesses de Israel; e 80% entendem que com Obama, nos próximos quatro anos, não acontecerá qualquer avanço na questão com os palestinos. O estado de espírito dominante é de indiferença, mais de que de expectativa.

Shai Piron
Todas essas são boas razões para explicar por que nem Obama nem Netanyahu dedicarão grande atenção à questão palestina, durante a visita de três dias. Como o analista Daniel Levy observou: “Obama vem, sobretudo, para fazer declarações sobre os laços que unem EUA e Israel, não para falar da ocupação ilegal”.

É o que entendem também muitos palestinos, cada dia mais exasperados pelo obstrucionismo dos norte-americanos. Funcionários dos EUA que foram a Belém, na preparação da visita que Obama fará à cidade na 6ª-feira, foram colhidos em várias manifestações anti-Obama. E esperam-se novas manifestações hoje, em Ramallah.

Outros palestinos protestam hoje, montando uma nova comunidade de barracas em terra palestina ocupada próxima de Jerusalém. Inúmeros outros acampamentos desse tipo, montados antes, foram violentamente demolidos por soldados israelenses.

Os organizadores esperam chamar a atenção para a hipocrisia dos EUA no apoio à ocupação israelense: colonos judeus são autorizados a construir, com apoio do governo de Israel, em territórios ocupados – o que é flagrante violação da lei internacional; e os palestinos são impedidos por soldados israelenses de desenvolver o próprio território, o mesmo que a comunidade internacional já reconheceu como estado palestino, com representantes na ONU.

Barack Obama, obedientemente, aceita as ordens de "Bibi" Netanyahu
A mensagem escrita nas entrelinhas dessa visita de Obama é que o governo de Netanyahu tem carta branca para fazer avançar sua agenda de violências, sem nada temer de Washington, além, no máximo, de algum protesto simbólico.

O novo gabinete israelense não perdeu tempo para definir suas prioridades legislativas. A primeira nova lei já anunciada é uma “lei básica” que mudará a definição oficial do Estado, de modo a que os aspectos “judeus” sobreponham-se aos elementos “democráticos” – movimento que o jornal Haaretz qualificou de “insano”.

Dentre outras determinações de lei, há uma que limita a aplicação de fundos públicos, que passam a só poder ser aplicados em novas comunidades de judeus. É um arranjo cínico, com o qual Netanyahu visa a aplacar um crescente movimento de protesto em Telavive, que começa a exigir moradia a preços mais acessíveis para todos.

Oferecendo terra a preço subsidiado para novas colônias na Cisjordânia e em Jerusalém Leste, Netanyahu consegue expandir as colônias, rouba mais terra dos palestinos, cala os protestos e desestabiliza a oposição. Só precisava, de fato, das bênçãos de Obama.
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Postado por Castor Filho às 14:50:00
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(Redecastor)

Venezuela

Venezuela parte agora para eleger Nicolás Maduro
Bonachão, orador cativante, verborrágico, brincalhão e energético, Nicolás Maduro, o sucessor designado, não poderia ser um melhor alterego de Chávez. Ele dá a impressão de que não dorme há 20 dias, porque está em todas as reuniões de cúpula e manifestações populares, que varam pela madrugada, desde que se agravou o estado de saúde do presidente. Por FC Leite Filho

FC Leite Filho


Caracas - Assim como na política, Hugo Chávez conseguiu unir a família. A carta de despedida da filha Maria Gabriela - "...Tiveste que voar e ser livre... Voa, voa livre Gigante, voa alto e sopra forte como os ventos dos furacões"... - ilustra o espírito de coesão de uma família de origem humilde, que poderia estar às turras para repartir o butim. O mesmo pode-se dizer dos militares, entre os quais não se viu uma só voz dicordante com relação aos destinos a tomar para preencher o imenso vazio deixado pela morte do comandante. Outra curiosidade é que, passados onze dias do desenlace presidencial, não se registrou uma rusga sequer no comando civil, que ele escolheu a dedo, a começar pelo agora presidente encarregado.

Bonachão, orador cativante, verborrágico, brincalhão e energético, Nicolás Maduro, o sucessor designado, não poderia ser um melhor alterego de Chávez. Ele dá a impressão de que não dorme há 20 dias, porque está em todas as reuniões de cúpula e manifestações populares, que varam pela madrugada, desde que se agravou o estado de saúde do presidente. Aos 50 anos, 1,99 de altura e parecendo um pouco mais delgado do que lhe mostram as fotografias, o candidato governista não deixa dúvida quanto à continuidade da obra bolivariana, como demonstrou em várias oportunidades em que teve de agir diante de provocações e assédios do poder econômico.

Fui vê-lo, pessoalmente, na quarta-feira, 13 de março, durante a inauguração da IX Feira Internacional do Livro (Filven), um dos grandes acontecimentos culturais da América Latina, no complexo do Teatro Teresa Carreño, em Caracas. Chegou com mais de três horas de atraso, não por negligência de horário, mas porque os serviços de inteligência haviam descoberto um plano para assassinar o candidato opositor Henrique Capriles Radonski, por parte da opositores extremistas, aparentemente obedecendo a ordens emanadas de Miami. Maduro disse que havia destacado, de comum acordo com a Direção Político-Militar do país, novo órgão surgido com o desenlace presidencial, um esquema de segurança à disposição de Capriles e da equipe deste.

Quem é Maduro
Com aparência descansada, o rosto redondo escanhoado e envergando uma túnica verde musgo , Maduro ouviu pacientemente os discursos de cunho literário da presidente da feira, do ministro da Cultura, do escritor homenageado Gustavo Pereira, e uma breve dissertação sobre dois livros. Quando chegou sua vez, falou quase uma hora, em que se defendeu das acusações de homofóbico, que lhe lançara Capriles na véspera. Disse que só tinha apresentado sua mulher, Cília Flores, a Advogada Geral do Governo, fato que o candidato tinha interpretado como uma insinuação às alegações de que o respresentante oposicioista, solteiro e bonitão de 40 anos, seria gay.

Na verdade, Maduro, em alocução anterior, havia dito, na apresentação de Cília, os filhos e os netos, no lançamento de sua candidatura, que "gostava de mulheres", uma alfinetada, quw logicamente não poderia passar despercebida. O candidato governista faz questão de lembrar sua infância pobre, numa casa de taipa e chão de barro, a mesma de Cília, que, antes de licenciar-se em Direito, teve a casa invadida várias vezes pela polícia, na busca de marginais do morro em que residia. Por fim, Capriles, que estava acompanhado da mulher, disse que Cília não será primeira dama, quando for eleito, mas a primeira combatente entre as mulheres para defender o legao de Hugo Chávez. No discurso da Filven, Nicolas Maduro ainda dialogou com vários dos presentes, que faziam questão de manifestar-se, e à saída cumprimentou e tirou fotografias.

Quanto a Henrique Capriles, este começou mal a campanha, lançando acusações aparentemente sem nexo contra a família do presidente, que teria escondido a gravidade de sua doença e mesmo sua morte, que teria ocorrido antes do regresso definitivo de Cuba à Venezuela. Ato de provocação deliberada para gerar o pânico ou desespero diante de uma situação eleitoral francamente desfavorável? O fato é que as declarações provocaram forte indignação, mesmo entre os correligionários oposicionistas e Capriles sentiu-se obrigado a retratar-se pedir desculpas.

Entre as reações à postura do oposicionista, destaca-se a de Maria Gabriela Chávez, que rápida como uma leoa, saiu de sua discrição e recolhimento para dizer: "Não joguem mais com a dor de um povo e uma família, que está devastada diante desta dura realidade. Aos senhores desta oposição doente e especialmente ao Sr. Capriles, digo o seguinte: Sempre se disse que a política é suja. Senhores, pelo bem da pátria, os exorto a fazer política e a não ser tão sujos".

Militarismo
O brasileiro que visita Caracas, a princípio, estranha a devoção que os venezuelanos tem pelos militares. Eles são aplaudidos na rua, exaltados nos dicursos e muito queridos, sobretudo por sua relativa juventude, particularmente entre os soldados, quase imberbes. Mas há uma explicação: os militares forjados por Hugo Chávez, ao longo de sua peregrinação militar, desde que entrou no Exército há 40 anos, tornaram-se homens próximos do povo, porque se distanciavam dos políticos que, na época, envolviam-se na mais desbragada corrupção, que fazia da rica Venezuela em petróleo, um país com 70% de miséria.

Junto com o tenente paraquedista, os militares venezuelanos, que antes haviam recebido, como os brasileiros, as noções castrenses de segurança nacional e guerra psicológica contra o comunismo passadas pelos Estados Unidos, construíram estradas, escolas e casas populares, tornaram-se professores e ajudaram decididamente nas calamidades, muito frequentes nessas zonas castigadas por furacões e tempestades, como as tormentas no estado de Vargas, no início do governo Chávez, quando morreram cerca de 10 mil pessoas.

Por isso eles são tão queridos e objeto de muitas homenagens. Hugo Chávez, que se confessava um "humilde soldado, filho de Bolívar", fez questão que seu corpo fosse velado, não no Miraflores, o palácio do governo, como seria normal a qualquer chefe de estado, mas na Academia Militar, onde ele diz ter feito sua opção pela vida, e enterrado no Quartel da Montanha, hoje Museu da Revolução, guarnição militar que ele quis tomar com seu frustrado levante de 4 de Fevereiro de 1992.

O 4F, hoje, é simbolo de resistência e unidade paraeste país que continua sonhando alto e fazendo muito por seus cidadãos, os latino-americanos e todos os povos na luta pela libertação e soberania, como afiançou Evo Morales, o presidente da Bolívia que estava presente na última homenagem prestada ontem, 15 de fevereiro, ao comandante da Revolução Bolivariana.

(Carta Maior)

Torturas

   
Circo da Notícia
ANOS DE CHUMBO
Quem paga, manda

Por Carlos Brickmann em 26/03/2013 na edição 739

Na época da ditadura militar, muito se falava dos empresários que financiavam a tortura organizada – promovida por entidades como a Operação Bandeirantes (Oban), que se transformaria em DOI-Codi. Parte das verbas destinadas à guerra clandestina e à tortura tinha como origem o desvio de recursos orçamentários; mas o dinheiro grosso, que pagava automóveis descaracterizados, viagens pelo Brasil e a países vizinhos, esquemas para livrar-se de corpos, compra de informações, compra de delações, infiltração, este não tinha como ser oficial. Dava-se como certo que o empresário Henning Albert Boilesen, que seria morto numa emboscada, era um dos grandes financiadores da repressão clandestina; mas outros certamente atuariam na mesma área, já que apenas um Boilesen não teria condições de sustentar um orçamento de tamanho porte.

Comenta-se que muitos empresários colaboraram por motivos ideológicos: queriam evitar a possibilidade de que movimentos apoiados por Cuba, China e União Soviética chegassem ao poder. Outros, também se comenta, foram vítimas de chantagem. E alguns (há muitos depoimentos que citam esse tipo de acontecimento, embora os torturados, até o ponto em que este colunista saiba, não tenham feito depoimentos formais sobre isso) usaram sua proximidade com a repressão para obter favores oficiais e ampliar suas empresas, criando dificuldades para as concorrentes.

Pois bem: discute-se quem matou e quem foi morto, discute-se onde estão os corpos, discute-se os desaparecidos, discute-se a possibilidade de, entre os desaparecidos, alguns terem mudado de lado, pagos ou não, e recebido estrutura e recursos para mudar de aparência, de vida e até de país. Quem pagou?

A Comissão da Verdade ainda não tocou neste assunto. O pedetista gaúcho Carlos Araújo, ex-marido da presidente Dilma Rousseff, cobrou essa investigação; e relatou à própria Comissão sua experiência pessoal, em que empresários com frequência assistiram à tortura, ou a incentivaram. Há pelo menos um caso, narrado a este jornalista, em que um empresário que o torturado não conhecia assistiu à tortura e se masturbou, comentando que há algum tempo não chegava ao orgasmo sem assistir ao sofrimento de alguém.

Quem? Quantos? Por quê? A resposta é complicadíssima: basta acompanhar os casos de corrupção que foram julgados para apurar que o intermediário pagou, que o corrompido recebeu. Na hora de descobrir e julgar quem deu o dinheiro ao intermediário faz-se um ruidoso silêncio. Um bom exemplo é o de PC Farias, condenado por intermediar subornos, e o de subornados por ele que também foram atingidos.

É uma especificidade brasileira: há um intermediário, há vários receptores do dinheiro, e não há quem tenha desembolsado a quantia entregue ao intermediário.

Tudo bem, faz muito tempo. Provavelmente a maior parte dos envolvidos já morreu. Se alguém estiver vivo e ficar provado que financiou a tortura, estará coberto pela Lei de Anistia e não sofrerá punição. Inútil procurar? Talvez. Mas, se tanta gente e tantos recursos são usados para descobrir o que realmente houve, deve haver um esforço para saber quem financiou todo o processo.

 (Observ. da Imprensa)

Marias

 Ouviu falar destas Marias?



Texto de Silvana Barbara.

Nesta semana da Páscoa é muito comum a atenção maior dada a Jesus Cristo, o protagonista, por assim dizer, da chamada Semana Santa. São nestes dias que os(as) cristãos(ãs) se lembram com mais veemência sobre sua vida e morte. Porém, existiram personagens muito importantes que fizeram parte da vida de Cristo, e que não recebem a devida alusão nesta época. Tratam-se das mulheres que participaram da história de Jesus, as quais os Evangelhos Canônicos encobrem o que elas realmente foram e como contribuíram para divulgar a voz feminina, nos tempos em que as mulheres eram ainda mais inferiorizadas. Este post irá tratar das duas mulheres que fizeram parte da vida de Cristo com mais aproximidade, as quais são Maria (sua mãe) e Maria Madalena.

Diferente dos Evangelhos Canônicos, que formam a base da Igreja Romana, os Evangelhos Apócrifos ou Gnósticos apresentam conteúdo e ensinamentos mais voltados para a importância do conhecimento e o lado humanizado das pessoas, inclusive de Jesus Cristo, que é apresentado como um homem mais revolucionário. São também nesta perspectiva que aparecem as duas mulheres mencionadas. Estas são dotadas de uma importante liderança, o que causava até mesmo uma certa inveja vinda dos apóstolos de Cristo.

Os Evangelhos Apócrifos são livros que não fazem parte do Cânon da Bíblia, mas que apareceram em paralelo com estas Escrituras. Foram ocultados pela Igreja Romana por apresentarem ideais gnósticos, considerados como hereges. As Escrituras Apócrifas foram encontradas no ano de 1945, em Nag Hamadi, contando mais de 1950 anos.

Serão aqui destacadas algumas características de Maria, a mãe de Jesus, e Maria Madalena, baseadas na leitura do conteúdo dos Apócrifos que relatam sobre a vida destas mulheres.
Keisha Castle-Hughes no filme "The Nativity History" (2006).

Keisha Castle-Hughes no filme “The Nativity History” (2006).

Maria (a mãe de Jesus)

Deixando de lado o fato de Maria, a mãe de Jesus Cristo, ser uma mulher lutadora, os Evangelhos Canônicos a apresentam como uma passiva mãe, que ficava observando as ações de seu filho apenas como auxiliadora. Mas, pelos Apócrifos, Maria teve uma presença muito mais importante na vida de Cristo.

Maria exercia liderança na época, até mesmo sobre os apóstolos de Cristo. Era muito admirada e respeitada no templo pelos sacerdotes, algo que pode ser considerado bastante evoluído para aqueles tempos.

Desde muito jovem, Maria foi uma mulher à frente de seu tempo. Rejeitava casamentos, estudava (inclusive a Torá, livro sobre leis e conduta). Ela se opunha aos padrões e modo de vida imposto às mulheres pela sociedade. Além de estudar muito, era questionadora e não aceitava tudo que lhe diziam sem fazer alguma crítica. Vale lembrar que, se ainda hoje o sistema não aceita uma mulher à frente das decisões, na época de Maria era quase impossível, diante da soberania existente dos homens cristãos. Pelos Evangelhos Apócrifos, só poderia ser esta mulher determinada, que enfrentou muitos preconceitos, a mãe do homem que iria revolucionar o mundo.

Maria competia a liderança com homens, mas a subestimação a ela infiltrada pelos Evangelhos Canônicos, a coloca em um papel de apenas intercessora.

A relação de Maria com Jesus também é pouca explorada na Bíblia de Cânon. Neste livro, esta mulher é exaltada como a mãe de todos os cristãos, mas mostra poucas conversas entre mãe e filho. Alguns filmes sobre a vida de Cristo apresentam Maria como uma mulher que sentia a falta de seu filho ao seu lado, pois ele vivia na peregrinação. Por vezes, ela aparece até mesmo temerosa com o que possa acontecer com ele, como é o caso do filme “Maria, Filha de seu Filho”.

Já nos Evangelhos Apócrifos, há mais diálogos entre mãe e filho, dando inclusive a entender que eles se entendiam muito bem. Nestes Evangelhos, Jesus escuta mais sua mãe, revelando a importância dela em sua vida. Nos Canônicos, Cristo a trata com inferioridade, pois, na condição de mulher, não entende das ações para propagar as chamadas “Boas Novas”. Também se destaca a imagem de Maria como passiva e submissa, propagada pela Igreja.

Nos livros Apócrifos, a educação de Jesus era de responsabilidade somente de Maria. José, seu marido, não tinha a liderança, e era ela que tomava as rédeas.

A Maria, mulher líder e lutadora, precisa ser mais divulgada nas religiões. Infelizmente, o machismo da Igreja baniu da história esta imagem de uma mulher forte, que se igualava aos homens e se destacava na liderança.

Maria Madalena

Maria Madalena, pelos Apócrifos, foi a mulher que Cristo amou tanto a ponto de a ela informar sobre fatos e conhecimentos não revelados aos apóstolos.

Madalena falava aos apóstolos, com liderança, o que Jesus ocultava a eles. Por inveja, e se sentindo inferiores por Cristo fazer importantes revelações a uma mulher, os apóstolos duvidavam das palavras de Madalena. Em trechos de seus Evangelhos, André e Pedro demonstram repúdio ao fato de Jesus, segundo eles, confiar mais em uma mulher no que neles.


Além da mulher muito amada por Cristo, pelos Apócrifos, Maria Madalena também foi uma liderança feminina, fato que ameaçava os apóstolos. Isto demonstra que Cristo valorizava a imagem das mulheres como lutadoras e líderes, diferente de como é mostrado na Bíblia. E mais, os Apócrifos até mesmo questionam o fato de que Madalena foi realmente uma prostituta. Sabe-se que muitas mulheres, por sua independência e a maneira de como não se submetiam aos homens, eram consideradas prostitutas para que fossem esquecidas da história.

Na relação de Madalena com Jesus, nas Escrituras Apócrifas, ele é mostrado como mais humano, mais homem e menos santo, no sentido literal da palavra, o que a Igreja geralmente renega.

Madalena não era somente a companheira que escutava o que Jesus tinha a dizer. Ela acompanhava-o em suas andanças, ajudando a propagar uma nova revolução, as “Boas Novas”. Segundo consta nos Apócrifos, Pedro era o apóstolo que mais se incomodava com a presença de Maria Madalena entre os homens que seguiam a Cristo. Sua intolerância a ela era tanta que chegou a pedir a Cristo para expulsá-la do grupo. Para Pedro, o fato daquela mulher tomar a palavra e não deixar espaço para os apóstolos, era um atrapalho. Madalena tinha muitos conhecimentos, sendo que estes formam a base do Gnosticismo, seita muito combatida pela Igreja.

Outro fato muito importante sobre Maria Madalena, é o de que na história ela não está relacionada com nenhum homem, ou seja, não é esposa, irmã ou filha. Trata-se de uma independência bastante curiosa para uma época em que dominava a supremacia masculina.

Madalena não é citada em livros importantes da Bíblia, como os Atos dos Apóstolos e o Apocalipse. Isto indica que a presença de uma liderança feminina não era aceitável naquela sociedade patriarcal. Jesus Cristo falava com Madalena sobre assuntos que, segundo ele mesmo diz, os apóstolos não entenderiam. Desta forma, tornou-se mais “viável” para o cristianismo apagar a imagem e existência de Madalena. Afinal, era um absurdo uma mulher ter mais espaço do que os homens. Então ela simplesmente desapareceu.

Ao contrário do que se observa na Bíblia do Cânon, a que a Igreja permitiu divulgar e está nos lares da maioria das famílias brasileiras, os Escritos Apócrifos reservam um espaço feminino em suas histórias. Muitas mulheres que se destacaram nos chamados Velho e Novo Testamento, caíram no ostracismo, pois não é interessante para a Igreja mostrar mulheres determinadas, lutadoras, que faziam questão de mostrar que estavam ali em igualdade com os homens. Inclusive muitas foram líderes muito mais eficazes, mas que ficaram no esquecimento.

O fato é que não se evolui. Os Evangelhos Apócrifos deveriam estar nas religiões que pregam o cristianismo, serem comentados, analisados e debatidos nas missas, incorporados em grupos de jovens e de orações, e divulgado amplamente. Mas isto não acontece porque as forças adquiridas pelas mulheres incomodam e, em religiões onde elas não ocupam determinadas posições, seria um risco causar uma perigosa revolução feminina e desbancar o patriarcado ainda existente.

* As referências sobre os Evangelhos Apócrifos são dos livros: Evangelhos Apócrifos (2007) e Apócrifos e Pseudo-Epígrafes (2004).

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(Blogueiras Progressistas)

quarta-feira, 27 de março de 2013

Israel

Robert Fisk: Os olhos do mundo são adestrados para não ver Israel, mas...

O que haverá, afinal, que valha a pena ver?

21/3/2013, Robert Fisk, The Independent, UK
“World Focus: The eyes of the world are trained on Israel. But will there be anything to see?”
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Robert Fisk
Será o quê? Tragédia, farsa ou turismo? Obama é turista, diz o Davy Crockett da vanguarda do jornalismo norte-americano e rei-filósofo do New York Times (codinome T. Friedman, Esq.). Mas, não, Friedman errou. O vencedor do Prêmio Nobel de Belos Discursos terá de ser, no mínimo, um super-turista – com 10 mil guias turísticos israelenses e norte-americanos armados a cercá-lo, só em Jerusalém. O caso é que, Sr. Presidente... há o muro. Não. É O Muro. Falo daquela paliçada otomana de cada lado da Porta de Damasco.

Mas, claro: se realmente chegar à Gruta da Manjedoura, Obama não terá como não ver – será que fechará os olhos? Nem uma espiadinha? – o muro real (codinome: barreira/cerca de segurança). É verdade: Berlusconi declarou que não viu. Mas até Mussolini perceberia, pelo menos o gigantismo fascista daquele muro. É. As coisas são o que são. O presidente excepcional deve “engajar” o público jovem. Por sobre as cabeças dos donos do mundo, levará A Palavra aos jovens. O caso é que os jovens, da variedade israelense e palestina, não dão sinal de confiar muito naquela conversa.

Barack Obama em Israel
Mas Obama dá dó. Que outro estadista, antes de viajar a Israel, reuniria grupo seleto de líderes da comunidade judaica dos EUA e prometeria – de fato, insistiria, ansioso por convencer – que não tomaria iniciativa alguma, que não se preocupassem?

Todos lembramos a Humilhação de Santo Barack. Quando falou das fronteiras de 1967 na Casa Branca, e Netanyahu interrompeu-o e lhe disse que não, não. Que esquecesse. E Obama lá ficou, sentado, miserabilente [1], parecendo um trapo vivo, triturado pela Britadeira Benjamin. Fim de papo, então, sobre fronteiras de 1967 e Resolução 242 do Conselho de Segurança da ONU. Mas, afinal... Obama ouve os conselhos do conselheiro que se revelou o maior fiasco da política externa dos EUA desde Joseph Kennedy: o muito aclamado zero à esquerda, inutilidade além de qualquer esperança, Dennis Ross.

Teremos de tolerar os clichês de sempre, é claro, tanto de Santo Barack como dos sapos do brejo da imprensa. Esse infame processo de paz tem de ser posto “de volta nos trilhos”, ou talvez ouçamos falar do “mapa do caminho” – o qual, parece, jamais é posto “de volta nos trilhos”, porque trem não anda em tapetes vermelhos de pistas de aeroportos. E não esqueçam o Irã, sobre o qual nosso herói dirá a todos os israelenses que vir que “todas as opções estão sobre a mesa”. E por que, santo deus, “sobre a mesa”?! É claro que as opções estão em bunkers, talvez, até, nos não mencionáveis, indizíveis silos nos quais a Britadeira Benjamin mantém trancados seus mais de 250 mísseis nucleares. Mas, aí, alguém nos lembrará de todos os Macbeths salpicados pela região. Não o degolador de Riad, é claro, porque, esse, é amigo da gente, mas, com certeza o doido de Teerã; ou Mursi, aquela coruja; ou o outro, no palácio presidencial em Damasco; e mais aquele bando de salafistas Calibãs – ou serão Talibãs? – na espreita para destruírem a civilização ocidental (da qual Israel faz parte, ou já não faz?).


Oh yes, vai ser briga de foice no escuro, se Obama não prestar atenção. Os israelenses esconderam os palestinos bem longe, atrás de O Muro; e o único líder palestino histórico (esqueçam Abbas) que Obama verá será o velho Grande Mufti, sentado ao lado de Hitler numa fotografia no memorial do Holocausto, como se al-Husseini tivesse contagiado, com nazismo, todos os palestinos, para sempre.

E Blair? Será que dará as caras? Deus nos proteja de Blair! Já corre sangue de Cristo demais no Oriente Médio, sem aquele Dr. Fausto por lá! E fica-se a conjecturar se alguém se atreverá a dizer que ali vivem palestinos, sob ocupação de israelenses incondicionalmente apoiados por Santo Barack e seus escudeiros. Mas talvez ele cite o “processo de paz”, talvez tente. O “redeslocamento” da política externa dos EUA. É. Como o “redeslocamento” de Napoleão, fugindo de Moscou; ou como o “redeslocamento” dos britânicos, de Dunquerque. Fica-se com pena dos palestinos. E dos israelenses.


Nota dos tradutores
[1]  “Orig. [e Obama lá ficou, sentado], as mimsy as a borogrove. São duas palavras inventadas por Lewis Carroll, que aparecem em Alice através do espelho, tão intraduzíveis que sempre se pode inventar mais uma tradução. Por exemplo, “Jabberwocky”, outra das palavras inventadas por Carrol, para designar um monstro esquisitíssimo, foi traduzida, por Augusto de Campos, ao português, como “Jaguadarte”. Campos explicou sua tradução: “o jaguadarte é mistura de “jaguar” e “espadarte” com “arte”. Gostei, porque ficou com certo ar de monstro brasileiro”.
Sem o talento de poeta de Campos, fizemos o que pudemos. Se mimsy, como explica Carrol, é combinação de miserable e flimsy [“miserável” e “transparente”], inventamos “miserabilente”.
O borogove aparece definido por Humpty Dumpty como “um pássaro magro e caído, com penas espetadas para todos os lados – parecido com um trapo vivo”. Usamos, para borogove a segunda parte da definição de Humpty Dumpty, visualmente muito eloqüente.
Postado por Castor Filho às 23:18:00
(Rede Castor)

Pornografia

Pornografia
Ricardo de Mattos

   
       


Opinião sobre a Pornografia, por Wislawa Szymborska*


Fonte: http://readanywhere.tumblr.com

Não há devassidão maior que o pensamento.
Essa diabrura prolifera como erva daninha
Num canteiro demarcado para margaridas.

Para aqueles que pensam, nada é sagrado.
O topete de chamar as coisas pelos nomes,
A dissolução da análise, a impudicícia da síntese,
A perseguição selvagem e debochada dos fatos nus,
O tatear indecente dos temas delicados,
A desova das ideias - é disso que eles gostam.

À luz do dia ou na escuridão da noite
Se juntam aos pares, triângulos e círculos.
Pouco importa ali o sexo e a idade dos parceiros.
Seus olhos brilham, as faces queimam.
Um amigo desvirtua o outro.
Filhas depravadas degeneram o pai.
O irmão leva a irmã mais nova para o mau caminho.

Preferem o sabor de outros frutos
Da árvore proibida do conhecimento
Do que os traseiros rosados das revistas ilustradas,
Toda essa pornografia na verdade simplória.
Os livros que divertem não têm figuras.
A única variedade são certas frases
Marcadas com a unha ou com lápis.

É chocante em que posições
Com que escandalosa simplicidade
Um intelecto emprenha o outro!
Tais posições nem o Kamasutra conhece.

Durante esses encontros só o chá ferve.
As pessoas sentam nas cadeiras, movem os lábios.
Cada qual coloca sua própria perna uma sobre a outra.
Dessa maneira um pé toca o chão,
O outro balança livremente no ar.
Só de vez em quando alguém se levanta,
Se aproxima da janela
E pela fresta da cortina
Espia a rua.

(*) poetisa polonesa, em Poemas, página 85.
(Digest. Cultural)

Papa

É possível um exercício do papado diferente
O importante é que o papa Francisco seja um João XXIII do Terceiro Mundo, um “Papa buono”. Só assim poderá resgatar a credibilidade perdida e ser um luzeiro de espiritualidade e de esperança para todos. Por Leonardo Boff*

Leonardo Boff*


A grave crise moral que atravessa todo o corpo institucional da Igreja fez com que o Conclave elegesse alguém que tenha autoridade e coragem para fazer profundas reformas na Cúria romana e inaugurar uma forma de exercício do poder papal que seja mais conforme ao espírito de Jesus e adequado à nova consciência da humanidade. Francisco é o seu nome.

A figura do papa é talvez o maior símbolo do sagrado no mundo ocidental. As sociedades que pela secularização exilaram o sagrado, a falta de líderes referenciais e a nostalgia da figura do pai como aquele que orienta, cria confiança e mostra caminhos, concentraram na figura do papa estes ancestrais anseios humanos que podiam ser lidos nos rostos dos fiéis na Praça de São Pedro. Por isso é importante analisar o tipo de exercício de poder que o papa Francisco vai exercer. Disse em sua primeira fala que vai “presidir na caridade” e não como os anteriores com poder judicial sobre todas as igrejas.

Para os cristãos é irrenunciável o ministério de Pedro como aquele deve “confirmar os irmãos e as irmãs na fé” segundo o mandato do Mestre. Roma, onde estão sepultados Pedro e Paulo, foi desde os primórdios referência de unidade, de ortodoxia e de zelo pelas demais igrejas.

Esta perspectiva é acolhida também pelas demais igrejas não católicas. A questão toda é a forma como se exerce tal função. O papa Leão Magno (440-461), no vazio do poder imperial, teve que assumir a governança de Roma. Tomou o título de papa e de sumo pontífice, que eram do imperador, incorporou o estilo imperial de poder, monárquico, absoluto e centralizado, com seus símbolos, as vestimentas e o estilo palaciano. Os textos atinentes a Pedro que em Jesus tinham um sentido de serviço e de primazia do amor foram interpretados como estrito poder jurídico. Tudo culminou com Gregório VII, que com o seu “Dictatus papae” (a ditadura do papa) arrogou para si os dois poderes, o religioso e o secular. Surgiu a grande Instituição Total, obstáculo ao caminho da liberdade dos cristãos e da sociedade.

A partir daí o papa emerge como um monarca absoluto com a plenitude de todos os poderes como o cânon 331 bem o expressa. Levanta a pretensão de subordinar ao seu poder toda as demais igrejas. Esse exercício absolutista foi sempre questionado, especialmente, pelos Reformadores. Mas nunca foi amenizado. Como reconhecia João Paulo II, este estilo de exercer a função de Pedro é o maior obstáculo ao ecumenismo e à aceitação pelos cristãos que vem da cultura moderna dos direitos e da democracia. Para suprir esta falta, os últimos dois papas organizaram uma espetacularização da fé, com viagens e eventos massivos, como a dos jovens a se realizar no Rio.

Esta forma monárquica e absolutista representa um desvio da intenção originária de Jesus, e agora com Francisco deve ser repensada à luz da intenção de Jesus. Será um papado pastoral e de serviço à caridade e à unidade e não mais um papado do poder jurídico absolutista. O Concílio Vaticano II estabeleceu os instrumentos para uma reformulação no governo da Igreja: o sínodo dos bispos, esvaziado e feito até agora apenas consultivo, quando foi pensado para ser deliberativo. Criar-se-ia um órgão executivo que com o papa governaria a Igreja. Criou-se pelo Concílio a colegialidade dos bispos, quer dizer, as conferências continentais e nacionais ganhariam mais autonomia para permitir um enraizamento da fé nas culturais locais, sempre em comunhão com Roma.

Representantes do Povo de Deus, cardeais, bispos, clero e leigos e até mulheres ajudariam a eleger um papa para toda a cristandade. Faz-se urgente uma reforma da Cúria na linha da descentralização. Certamente o que fará o papa Francisco. Por que o Secretariado para as Religiões não Cristãs não pudesse funcionar na Ásia? O Dicastério da unidade dos cristãos em Genebra, perto do Conselho Mundial de Igrejas? O das missões, em alguma cidade da África? O dos direitos humanos e justiça, na América Latina?

A Igreja Católica poderia se transformar numa instância não autoritária de valores universais, do cuidado pela Terra e pela vida sob grave ameaça, contra a cultura do consumo, em favor de uma sobriedade condividida, enfatizando a solidariedade e a cooperação a partir dos últimos contra a exacerbação da concorrência. A questão central não é mais a Igreja mas a Humanidade e a civilização que podem desparecer. Como a Igreja ajuda em sua preservação? Tudo isso é possível e realizável, sem renunciar em nada à substância da fé cristã. Importa que o papa Francisco seja um João XXIII do Terceiro Mundo, um “Papa buono”. Só assim poderá resgatar a credibilidade perdida e ser um luzeiro de espiritualidade e de esperança para todos.

*Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor.

(Carta Maior)