terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Battisti

Cesare Battisti, "ao pé do muro"
Por fim acolhido como imigrante, Cesare Battisti é proibido de fazer declarações pollíticas. Em torno dele, no auditório da Faculdade de Arquitetura da UFRGS, os militantes socialistas e sindicais lembravam os comitês de apoio montados para pedir a sua liberdade, os anos de chumbo da Itália e o período ditatorial brasileiro. Battisti falou de seu novo livro, "Ao Pé do Muro". Desceveu-o como o último de uma trilogia de uma produção feita por detrás das grades.
Maria Inês Nassif
Porto Alegre - "A questão é política, não é pessoal. Eu acredito nele", repetia aos repórteres Maria de Lourdes Nogueira de Paula, de 81 anos, uma das integrantes de uma delegação vinda de Fortaleza para o Fórum Social Temático - mais de uma dúzia de pessoas que se apertaram num microônibus e viajaram três dias para quase que literalmente atravessar o país. Maria de Lourdes trazia na cabeça um imenso chapéu de palha, onde letras pretas, igualmente grandes, anunciavam a crença do grupo: "Sair do capitalismo". Foi na frente de uma bateria de uma escola de samba e cantando um samba enrêdo que há dois anos levou aqueles militantes para as ruas da capital cearense para reivindicar, no carnaval, a soltura do ex-ativista político Cesare Battisti, que Maria de Lourdes chegou ao evento onde o italiano, hoje imigrante acolhido oficialmente no Brasil, lançaria o livro "Ao Pé do Muro".

O livro não chegou a tempo, o lançamento foi adiado para março, mas a sala em que Battisti dividiu a mesa com o professor da Unicamp, Carlos Lungarzo, argentino de nascimento, com Francisco Soriano, do Sindipetro-Rio e com a professora Rosa Fonseca, ex-presa política, do mesmo grupo "Sair do Capitalismo" da animada Maria de Lourdes, estava cheia, para os padrões dos eventos menores do FST.

"Antes que perguntem, a vinda de Battisti foi financiada pelo nosso sindicato", anunciou Soriano logo na abertura do evento, que atraiu emissoras locais de televisão - e para cada uma delas Maria de Lourdes, que é "base da Previdência" (militante sindical dos trabalhadores previdenciários), falou que o problema de Battisti "foi político, não pessoal", inclusive para um dos repórteres que, insistindo, perguntou a ela se o italiano "merece" sua solidariedade. Battisti, condenado na Itália pela sua militância política no PAC, nos anos 70, na Itália, nos chamados "anos de chumbo", período conturbado por um embate violento do poder público e de grupos de extrema direita, de um lado, e as organizações de esquerda que defendiam a ação pelas armas.

Battisti ficou preso no Brasil de 2004 a 2010, enquanto governo e justiça ficaram às voltas com um pedido de extradição do governo italiano e pressões diretas do então primeiro-ministro Sílvio Berlusconi. O pedido do governo italiano foi negado por Lula no apagar das luzes de seu mandato e, finalmente, a decisão presidencial foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal como legítima, acabando, por fim, as idas e vindas judiciais protelatórias que o mantiveram inicialmente confinado na Polícia Federal, em Brasília, e depois no Presídio Papuda, também no Distrito Federal.

Por fim acolhido como imigrante, Cesare Battisti é proibido de fazer declarações pollíticas. Em torno dele, no auditório da Faculdade de Arquitetura da UFRGS, os militantes socialistas e sindicais lembravam os comitês de apoio montados para pedir a sua liberdade, os anos de chumbo da Itália e o período ditatorial brasileiro. Battisti falou de seu novo livro, "Ao Pé do Muro". Desceveu-o como o último de uma trilogia de uma produção feita por detrás das grades. O primeiro deles, "Minha Fuga sem Fim", escrito já na prisão, foi uma peça de sua defesa, a sua versão para os fatos que o condenaram, na Itália, à prisão perpétua; "Ser Bambu" é um livro intimista, a descrição da vida de um desterrado.

O livro que será lançado em março, segundo ele, completa o tempo na prisão. É a narrativa - como ficção - das histórias que ouviu na cadeia. Foi junto dos presos e das histórias de suas cidades de origem, suas famílias e suas vidas que conheceu o Brasil. "Escrevi o livro na cadeia e ele fala de prisão". É, todavia, uma obra de ficção. "Usei o recurso da ficção porque a realidade é dura demais. É possível fazer um documentário, mas eu preferi a ficção, afirmou Battisti. Sua matéria prima foi, mais do que o relato dos companheiros de cadeia, o relato de suas emoções. Um preso, contou, idealiza a liberdade, e quanto ele fala da saudade de sua família, de sua casa, sua história está envolta na emoção.

O escritor descreveu o livro como um "romance social". "Para mim a história não tem importância, e sim o tema. É possível escrever um romance sem história, mas não sem tema", disse. Uma vez nas livrarias, no entanto, ele considera fechado o ciclo. A trilogia foi iniciada e terminada na condição de prisioneiro, ou com a visão do prisioneiro.

Tratado em todos os anos que esteve preso como "terrorista" pela mídia brasileira, reivindicou, no entanto, ser chamado pelo seu ofício. "Sou escritor", definiu-se, para o público de sindicalistas. Quando os jornais descrevem um massacre na casa de uma família, colocam o nome do suposto culpado e sua profissão. "Pedreiro, por exemplo". Ele, no entanto, foi o Cesare Battisti, terrorista italiano, durante todo o tempo em que foi mantido no cárcere.

Depois de um ano de liberdade, e embora considere que ainda precisa de um tempo para superar os traumas da prisão, Battisti já decidiu que vai morar no Rio - aliás, onde vive agora. Vai trabalhar com comunidades carentes, como fazia na França, no período em que viveu lá - já definidos o Complexo do Cantagalo, Pavão-Pavãozinho e Cidade de Deus. "Espero um dia poder trabalhar nas prisões", disse.


Fotos: Rafael Correa
(Carta Maior)

Bartô

Bartô, o mago da palavra


Escrito por Frei Betto
Quarta, 25 de Janeiro de 2012


O coração de Bartolomeu Campos de Queirós (1944-2012), pleno de amor e arte, parou na madrugada de 16 de janeiro. Meu querido amigo Bartô transvivenciou. Entrou em “encantamento”, diria Guimarães Rosa.

Bartô tinha 67 anos e mais de 70 livros publicados. A ele dediquei meu mais recente romance, Minas do ouro: “Para Bartolomeu Campos de Queirós, nascido, como eu, na mesma terra mineira, no mesmo ano, no mesmo mês, no mesmo dia, e condenado, como eu, à mesma sina: escrever”.

Em 2003, mereci dele a dedicatória do livro Menino de Belém. Era um mago da palavra. Não fazia poesia, não escrevia prosa – criava proesia. Sua prosa é arrebatadoramente poética, como o comprova seu último romance Vermelho amargo, de forte conotação autobiográfica.

Sua mãe morreu aos 33 anos, de câncer, quando ele tinha 6. Lembrava-se que ela sofria dores atrozes, a ponto de o bispo autorizar que se apressasse a morte dela com uma injeção. Às vezes a dor era tanta que ela se punha a entoar canto lírico. Bartô, por vezes, ligava para sua amiga Maria Lúcia Godoy, cantora lírica, para que ela cantasse a ele ao telefone.

Equivocam-se os que classificam sua obra de literatura infantil, embora tenha angariado os mais importantes prêmios nacionais e internacionais neste gênero. Sua escrita é universal, encanta crianças e adultos. Como artesão da palavra, trabalhava cuidadosamente cada vocábulo, cada frase, até extrair toda a polissemia possível, assim como a abelha suga o néctar de uma flor.

Bartô morava em Belo Horizonte, no apartamento que pertenceu à poeta Henriqueta Lisboa – cuja estátua se ergue à porta do prédio, na Savassi. Gostava da solidão. Precisava dela para escrever. Chegava a pedir à cozinheira que saísse mais cedo. E só admitia que o silêncio fosse quebrado pela música, que ele escutava deitado no chão.

Nos últimos anos, mais lia do que escrevia. E o fazia com um prazer quase luxurioso. Narrou-me como se deleitava em abrir um novo livro, reformular suas idéias e conceitos, adquirir novos conhecimentos...

Tornou-se escritor por acaso. Estudava comunicação e expressão em Paris, quando lhe pediram enviar um texto a um concurso, que o premiou. Mas custou a se assumir como autor. Para ele, isso era secundário. A prioridade era o emprego no MEC, num departamento de investigação de qualidade de ensino, que o obrigava a viajar Amazônia afora. Seu chefe, Abgar Renault, lhe dava toda liberdade.

Nos últimos anos, pouco saía de casa. Desde que se viu obrigado a fazer hemodiálise três vezes por semana, caminhava a passos miúdos, os ombros curvados e, no rosto, a perplexidade diante dos mistérios da vida. A fala era contida, proverbial, mesmo quando fazia palestras. Seus silêncios ecoavam.

Fazia questão de não abandonar o cigarro e tomar um chope antes de submeter-se à hemodiálise. Dizia que, assim, o tratamento seria compensado...

Seu ponto de encontro era a Livraria Quixote, na rua Fernandes Tourinho, onde há um espaço em homenagem a ele. Ali revia amigos, lançava livros, tomava café da manhã. Foi ali que nos vimos pela última vez, na véspera do Ano-Novo, quando me deu de presente o romance epistolar A sociedade literária e a torta de casca de batata, de Ann Shaffer e Annie Barrows.

Há três anos ele me propusera um projeto literário a quatro mãos: uma troca de correspondência sobre literatura, conjuntura política, vivências. Nunca o efetivamos. Em nosso encontro de fim de ano respondeu-me quando indaguei o que andava escrevendo: “Cartas para mim mesmo.”

Bartô contava que, quando criança, ficava intrigado com o mistério de como pouco mais de vinte letras podem registrar na escrita tudo que a cabeça pensa... Orgulhoso, disse que aprendera a escrever com o avô, marceneiro, que morava em Pitangui (MG). Tirara a sorte grande na loteria e, assim, trocou a madeira pela literatura. Ao se sentir inspirado, tomava em mãos o lápis próprio para marcar medidas na madeira e redigia suas histórias nas paredes da casa. Quando o avô morreu, tiraram da parede da sala o relógio em forma de oito. Era o único espaço vazio de textos...

Bartô era um artista profundamente espiritualizado. Desde que morou em Paris tornou-se devoto de São Charbel (1828-1898), libanês, canonizado em 1997. Disse que o escolhera porque é um santo de poucos devotos e, portanto, mais disponível para atender às suas preces... E mostrou-me a estampa do monge de longas barbas brancas.

Meu único consolo é a certeza de que Bartolomeu Campos de Queirós vive, agora, imortalizado em suas obras literárias. Reproduzo aqui o que escrevi a ele, em maio de 1998, após ler Escritura: “Sua escrita é canto, luz, vereda e afago. Cada frase lindamente esculpida! Proíba-se de tudo o mais para só escrever, porque é a sua única e irrecorrível sentença de vida”.
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Frei Betto é escritor, autor de “A arte de semear estrelas” (Rocco), entre outros livros.
Website: http://www.freibetto.org/
Twitter: @freibetto.

Copyright 2012 – FREI BETTO – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Se desejar, faça uma assinatura de todos os artigos do escritor. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal(0)terra.com.br)

Lorca

No túmulo de Lorca, Sophia de Mello Breyner chora todos os outros mortos vítimas do fascismo franquista. Todos os que não foram poupados à patada da besta.


Túmulo de Lorca

Em ti choramos os outros mortos todos
Os que foram fuzilados em vigílias sem data
Os que se perdem sem nome na sombra das cadeias
Tão ignorados que nem sequer podemos
Perguntar por eles imaginar seu rosto
Choramos sem consolação aqueles que sucumbem
Entre os cornos da raiva sob o peso da força

Não podemos aceitar. O teu sangue não seca
Não repousamos em paz na tua morte
A hora da tua morte continua próxima e veemente
E a terra onde abriram a tua sepultura
É semelhante à ferida que não fecha

O teu sangue não encontrou nem foz nem saída
De Norte a Sul de Leste a Oeste
Estamos vivendo afogados no teu sangue
A lisa cal de cada muro branco
Escreve que tu foste assassinado

Não podemos aceitar. O processo não cessa
Pois nem tu foste poupado à patada da besta
A noite não pode beber nossa tristeza
E por mais que te escondam não ficas sepultado

Sophia de Mello Breyner
(1919-2004)

Mais sobre Sophia de Mello Breyner em
(Poemblog)

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Pensamentando

O mundo paralelo de Christiania
By
Antonio Martins
– 02/08/2011Posted in: Posts

A lagoa era linda, com margens gramadas e águas amarelinhas, de onde saltavam dezenas de peixes e torradeiras
Por Daniel Cariello, de Chéri à Paris
Estávamos na porta de Christiania, a célebre cidadela hippie de Copenhaguen, onde artistas, vagabundos, poetas, marginais, traficantes, hippies e todo tipo de alternativo convivem harmonicamente há 40 anos como se o sonho sessentista de paz & amor & drogas nunca tivesse deixado de existir.
Antes de passarmos a barreira, lembrei-me do aviso de um amigo: “Velho, Cristiania é um mundo paralelo. Ali você acessa uma outra dimensão, uma realidade muito diferente da nossa. Não é pra iniciantes, fica ligado”.
Entramos um pouco apreensivos e prendemos o ar. Mas logo percebemos que meu amigo havia exagerado. Tudo parecia completamente normal. O céu era esverdeado, como em qualquer lugar do mundo. E a chuva de purpurinas em forma de coração não era forte o bastante para incomodar. É verdade que estranhei um pouco um sujeito vestido de Charles Chaplin que andava plantando bananeira, mas o cachorro rosa ao meu lado me tranquilizou, garantindo que o cidadão só caminhava daquele jeito porque se sentia um pouco indisposto.
Na rua principal, comerciantes de alimentos e plantas ali mesmo produzidos dividiam espaço com enormes placas informando que era proibido tirar fotos e tocar balalaika. Fiquei tão absorvido lendo o informe que quase fui atropelado por um elefante distraído. Não posso reclamar, e culpa era minha, eu estava fora da faixa e não respeitei a preferência do bicho.
Um pouco mais à frente, um pequeno palco recebia uma banda cover de Black Sabbath. A música estava boa, mas por que um dos músicos estava tocando com uma cadeira de balanço no lugar da guitarra? Comentei o fato com um carinha ao meu lado e ele não sabia a razão. O engraçado é que ele era a cara do Ozzy Osbourne. Não só ele, aliás, mas todas as outras pessoas da platéia. Teve um momento em que todo mundo se virou pra mim, fez o símbolo do heavy metal e gritou um sonoro “yeah!”. Eu berrei um “yeah!” de volta. Daí foi um pulo pra cantarmos Paranoid em coro.
Continuamos nossa peregrinação pelo lugar, sempre tomando cuidado para desviar das poças de areia movediça e dos malditos aviões que insistiam em passar dando rasantes nas nossas cabeças, e chegamos a uma lagoa. Era linda, com suas margens gramadas, sua pequena ponte ligando a uma ilhota e suas águas amarelinhas, de onde saltavam dezenas de peixes e torradeiras. Paramos uns minutos pra relaxar e aproveitar a paisagem.
Cansados da peregrinação, decidimos que o momento da cerveja era chegado. Entramos em um bar curioso, pois havia gelatina no lugar do chão e a única maneira de se locomover era saltando. Entre um pulo e outro, conseguir entrar em fase com um ciclope e perguntei como fazia pra descolar uma bebida. “Nada de mais simples”, ele disse. “Basta entrar naquela fila ali e recitar um ou dois trechos de Goëthe, em alemão”. Escolhi meus preferidos, soltei a voz e solicitei três Carlsberg.
Cervejas acabadas, resolvemos ir embora. Embarcamos na nave estacionada em frente ao bar e eu disse ao comandante Jimi Hendrix o endereço do nosso hotel. Consternado, ele explicou que só poderia nos levar até a fronteira da cidadela, não tinha autorização de passar daquele limite.
É claro que aceitamos a carona de bom grado. Jimi nos deixou na entrada, apertou nossas mãos, tocou fogo na nave e se mandou. Cruzamos a porta de Christiania e soltamos o ar. Ali tivemos certeza de que meu amigo havia inflacionado seu recito, pois aquele lugar nos pareceu muito normal. Pergunta pra Janis Joplin, pro Jim Morrison, pro Andy Wharol, pro Raul Seixas ou pro Timothy Leary, que estavam o tempo todo com a gente.
(Outras Palavras)

China

Ladislau Dowbor vê a China
By
admin
– 01/08/2011Posted in: Posts


Imagens e breves impressões sobre país cada vez mais poderoso e influente — e que precisamos compreender, mais que julgar
Texto e fotos de Ladislau Dowbor*
A tradição ocidental é de qualquer pessoa que passa um par de semanas na China escrever um livro. Não pretendo ir aqui além de algumas imagens. A realidade é que a China apresenta uma dinâmica absolutamente impressionante de crescimento econômico, transformações em ritmo que temos dificuldades em conceber. Crescer 10% ao ano significa a economia dobrar de tamanho a cada 7 anos. Isto quando um em cada 6 habitantes do planeta é chinês. Não se trata de assunto de chinês, trata-se de todos nós.
No par de semanas em que estive na China, visitei Beijing, Chengdu (1600 km para o interior), e Shanghai, realizando conferências em cerca de 10 instituições universitárias, organizações da sociedade civil, e até na escola de formação de quadros do Partido Comunista. Todos interessados em sistemas de gestão descentralizada e inovações institucionais da América Latina. E eu interessado, como é natural, em como funciona a própria China.
Todos sabemos que a dinâmica é poderosa, que se trata da segunda economia do mundo, e no entanto não sabemos como e porque funciona. Segundo as nossas opções ideológicas, achamos que é um exemplo, ou que é um desastre ambiental, ou ainda um desastre social. Outros ainda declaram que é uma ditadura e fazem de conta que é tão simples assim. As simplificações, como sempre, sobrevivem porque simplesmente sabemos muito pouco. Na realidade vi muita coisa interessante em todas as dimensões. E cabe não esquecer que a China tirou 430 milhões de pessoas da miséria entre 1981 e 2000 (ONU, The Inequality Predicament, p. 78), cifra que ultrapassa 500 milhões segundo Lester Brown (Brown, 2011).
Arrisco apenas uma ideia geral, que discuti em vários meios e consultei em vários documentos, e que parece razoavelmente segura: o sistema é politicamente centralizado, no sentido de traçar as orientações gerais. No entanto, a execução, e de forma geral a gestão da economia, do meio ambiente e das políticas sociais estão radicalmente descentralizadas, permitindo uma enorme flexibilidade e pragmatismo nas soluções. E não se trata apenas de descentralizar os encargos, pois os próprios recursos são descentralizados, através de caótico, mas funcional sistema de orçamento central articulado com recursos para-orçamentários locais. (Catherine Wong).
No mais, através de fotos tiradas nesta viagem em junho 2011, trago algumas impressões do cotidiano: antes de tudo, com a imensa pressão populacional e pouca terra fértil, as grandes cidades optaram claramente pela verticalização. Nada dos subúrbios típicos das grandes cidades norte-americanas. A China urbana cresce para cima.

Shanghai, novo bairro residencial (junho 2011)
As universidades não escapam a esta lógica, como se vê na foto seguinte. As duas imensas torres geminadas são uma faculdade de administração em Beijing.

Beijing, Faculdade de administração, (junho 2011)
Abaixo, típica avenida de Shanghai, bairro residencial novo. O pouco trânsito deve-se a que os meus passeios em horário livre eram muito cedo. Mas a estrutura intermodal de trânsito é típica: duas ou três faixas para automóveis, separação com plantas definindo claramente o espaço onde andam bicicletas e pequenas scooters, todos elétricos, e uma calçada arborizada bastante ampla. O planejamento permite que o espaço não seja (inteiramente) comido por interesses imobiliários, equilibrando o uso do espaço viário, no que hoje se chama de “ruas completas”, e não apenas para carros.

A mobilidade, naturalmente, e um problema central, com cidades ultrapassando 20 milhões de habitantes. Na foto abaixo, de Shanghai, vemos a integração do sistema. À direita na foto, a boca de metrô, são 420 quilómetros na cidade, fora as conexões ferroviárias para o interior. A densidade de metrô muda evidentemente todos os parâmetros, pois a grande massa de deslocamentos no triângulo casa-trabalho-escola no mesmo horário todo dia é enxugada, liberando a superfície. É bom lembrar que em São Paulo temos 65 quilômetros, e uma média ridícula de 650 metros por ano nos últimos 16 anos de governo xuxu. Vemos também a faixa exclusiva para bicicletas e motinhos (quase sempre elétricas), à esquerda na foto faixas para carros, à direita amplo espaço de calçada, e sempre que possível todas as separações com plantas e árvores. A sinalização é clara, conforme se vê na foto seguinte.


Uma opção importante que apareceu de forma massiva nas três cidades que visitei, Beijing, Chengdu e Shanghai, é a presença generalizada da bicicleta e da scooter (bem parecido com as nossas “Biz”) elétricas: silenciosas e sem poluição, com uma autonomia entre 50 e 60 quilômetros. No caso das bicicletas, as pessoas ajudam com pedal em caso de subida forte ou rampa. Não exigem complicações de registro de veículos nem capacete.

Os preços são ridículos (entre 800 e 1500 yuan, cerca de 250 a 350 reais). O preço não se deve apenas a baixos salários: é um motor elétrico e uma bateria, o resto é lataria e borracha. Não precisa de tanque de combustível, sistema de distribuição, carburador, pistões, embreagem etc. A não entrada desta tecnologia simples no Brasil para mim é um mistério que só a teoria dos cartéis resolve. A manutenção é igualmente ridícula. A recarga se dá em geral à noite, quando há um superávit de energia. Adeus petróleo: mas se a energia é limpa no uso, na produção ainda é muito carvão. O Brasil teria muitas vantagens neste plano.
A China sofreu recentemente violentas inundações, resultado em parte de fenômenos naturais mais violentos gerados pelo aquecimento global, mas sobretudo pelo desmatamento irresponsável. Em decisão típica da China, de definir rumos a partir do governo central e deixando cada cidade do país aplicar as normas segundo as suas realidades, foram plantadas árvores aos bilhões (ver em particular dados em Lester Brown, World on the Edge). Por toda parte se vêm estas árvores reforçadas por estacas, indicando plantio recente. Encontrei este esforço por onde passei. As cidades estão se tornando verdes.

Shanghai, Centro de Formação de Quadros, (junho 2011)
Outra foto típica:

Ampla calçada com árvores (sempre sustentadas, demonstrando plantio recente), que segue o rio da cidade em Chengdu, que fica à direita da foto, bem diferente por exemplo da beira do Tietê em São Paulo. As próprias calçadas são quando possível em parte feitas com bloquetos furados, o que permite manter a permeabilidade do solo.

A limpeza das cidades é absolutamente impressionante, não se encontra sequer bitucas nas calçadas. Já tinha notado isto em visita anterior anos atrás, até em feira de rua no interior não havia um pedaço de lixo no chão. As lixeiras que sem complicações separam apenas o reciclável e não reciclável, se encontram em grande quantidade, e o que é mais importante, estão limpas e renovadas, o que significa um sistema permanente de manutenção. Claramente, não se trata aqui apenas de infraestrutura e de serviços, mas também de uma cultura da limpeza.

Nos bairros mais tradicionais, uma densa movimentação de mercadinhos, feiras, pequeno comércio de rua, ainda pouco destruído por shoppings. O chinês vive muito na rua nestes bairros. Nos mercadinhos, inúmeros tipos de macarrão, muitíssima verdura, e colado pequenos negócios que vendem scooters elétricas, literalmente a preço de feira.



A riqueza de verduras é impressionante. Extremamente saborosas, e aparecem em grande quantidade em todas as refeições. Aliás, pouquíssima gente gorda, que dirá obesa. A agricultura urbana é muito presente, não se desperdiça um metro que possa ser plantado. Na foto abaixo, parece que estamos no campo, com edifícios presentes por engano, mas a foto foi tirada de uma avenida movimentada.

Na mesma rua, em Shanghai, um típico quiosque de jornais: inúmeros diários, nenhuma publicação do tipo que curiosamente chamamos de “masculina” no Brasil.

No interior da região de Chengdu, uma paisagem bastante típica de cinturões verdes de metrópoles: cultivos extremamente densos, próximos da jardinagem, asseguram uma produtividade muito elevada, típica de pequena propriedade (na realidade direito de uso, na China). A variedade grande de plantios reduz problemas de doenças e melhora a conservação do solo. As fotos mostram policultura de legumes e plantação de uva. Na foto com carro, vemos que aproveitam a terra até a um palmo da estrada. Aqui a idéia de que agricultura moderna e produtiva só seria em grande escala, tão difundida no Brasil pelos ruralistas, simplesmente não faz sentido. Não se esbanja terra. Aliás, os que defendem a liberação de desmatamento em “pequenas propriedades” no Brasil, estão se referindo a quatro módulos, 400 hectares nas regiões mais ameaçadas, dois por dois quilômetros! Só no Brasil para chamar isto de pequena propriedade….Mas voltemos à China.



A foto abaixo apresenta o centro de Shanghai, mistura de prédios ultramodernos com calçadas tranquilas. A linha horizontal no meio da foto é uma calçada elevada que dá a volta em toda a praça, permitindo caminhadas sem stress, e uma bela vista. É muito frequentada.

A beira do rio de Shanghai é aberta, permitindo passeio, apesar do dia de chuva em que visitamos. Na foto seguinte, vemos o lado tradicional da cidade, com arquitetura ainda dos ingleses.

E em seguida o centro moderno do outro lado do rio, com a sua imensa torre de TV. Este horizonte é o cartão de visita da cidade.

Espaços de lazer urbano existem, de forma desigual. Amplas áreas claramente de arborização recente (sempre os suportes para árvores transplantadas). Em torno de monumentos tradicionais, muito água, peixes. Na foto abaixo vemos um parque, o córrego que corre para o rio (no centro da foto, a área verde-claro) não aparece, pois é densamente coberto pelas plantas que filtram a água e a deixam limpa antes que caia no rio pouco adiante. Nas partes abertas, o cuidado com as flores.



Chengdu, parque no centro, (junho 2011)
A foto a seguir veio totalmente por engano, momento de distração, mas estou incluindo por razões estéticas, e sobretudo porque me encheram de avisos dizendo que na China é tudo plano, por assim dizer. Maldade desta gente.

Moral da história? Com este pequeno relato fotográfico, à margem de uma correria de palestras, pretendi apenas dar imagens, e sobretudo evitar as simplificações ideológicas com as quais frequentemente nos contentamos sobre a China. Aliás, esta em geral não dá muita bola para os nossos julgamentos, pois é imensa e busca os seus equilíbrios internos. No conjunto das discussões, vi muito pragmatismo. E muita preocupação com o ritmo de penetração de um modo de vida ocidental pouco sustentável para o país. Sobre este ponto, aliás, há uma excelente leitura recente, de Chandran Nair, Consumptionomics: Asia’s role in reshaping capitalism and saving the planet. O importante hoje, mais do que julgar a China, é entendê-la.
Impressão geral? Convivem em complexa articulação o ultramoderno em vertiginosa expansão, os bairros tradicionais de classe média intocados mas com intervenção de serviços urbanos, os antigos bairros paupérrimos que estão sendo simplesmente desmantelados e substituídos por prédios, e o imenso interior cada vez mais articulado pelas cidades regionais. Vários séculos se reordenam na dinâmica da modernização. E todo mundo estuda.
Mais sobre a China e seus papéis:
Lester Brown – The World on the Edge – www.earth-policy.org , 2011
Chandran Nair – Consumptionomics – John Wiley & Sons, Singapore 2011
UN – The inequality predicament – New York 2005
Christine Wong and Vivienne Shue – Paying for Progress in China, Routledge, 200

Ladislau Dowbor formou-se em Economia Política pela Universidade de Lausanne (Suíça) e é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia (Polônia). Atualmente, é professor titular de pós-graduação na PUC-São Paulo. Presta consultoria a diversas agências das Nações Unidas, bem como ao Senac. Atua como conselheiro na Fundação Abrinq, Instituto Pólis e outras instituições. Mantém e atualiza com frequência um site instalado em www.dowb
(Outras Palavras)

Argentina

O passado que a Argentina enfrenta com a coragem que aqui não há

A frase inesperada congelou a plateia colorida de azul, branco e marrom cáqui que lotava na segunda-feira, 12 de dezembro, o Salão San Martín, o espaço nobre do Edifício Libertador, sede do comando do Exército em Buenos Aires. Perfilados diante do ministro da Defesa, Arturo Puricelli, os brigadeiros, almirantes e generais do Alto Comando das Forças Armadas argentinas ouviram, crispados, a sentença súbita e cortante da autoridade que subvertia o rígido protocolo castrense:




"Juro por la pátria, mi madre y los 30 mil desaparecidos!", improvisou o advogado e diplomata Alfredo Waldo Forti, 61 anos, ao prestar o juramento de praxe para renovar seu mandato como Secretário de Assuntos Internacionais da Defesa. Nenhum militar aplaudiu, mas nenhum protestou. Todos respeitaram a frase atrevida de Forti, que dava ali o seu corajoso testemunho pessoal diante da corporação fardada que legou à Argentina, no período da chamada ‘guerra suja’ de 1976 a 1983, o desonroso título de ditadura mais sangrenta entre os regimes militares que sufocaram a democracia no Cone Sul do continente, na segunda metade do século 20.

Forti e sua mãe são símbolos dessa violência – ele como sobrevivente, ela como um nome a mais na multidão de desaparecidos políticos no período da repressão militar. A bela morena Nélida Azucena Sosa de Forti, ex-integrante dos Montoneros, o movimento guerrilheiro da esquerda peronista, tinha acabado de embarcar no voo 284 da Aerolíneas Argentinas que sairia do aeroporto de Ezeiza rumo a Caracas, na manhã de 18 de fevereiro de 1977.

Fugindo do clima político cada vez mais fechado do país, desde o golpe militar desfechado um ano antes, Azucena levava consigo os seis filhos, de 6 a 16 anos, incluindo Alfredo, o mais velho. Já com os cintos afivelados para a decolagem, tiveram que desembarcar, chamados de repente para resolver ‘problemas de documentação’. A mãe e as crianças foram recebidas por agentes armados da polícia de Buenos Aires, subordinada ao 1º Corpo de Exército. Com os olhos vendados, foram colocadas em dois carros e levadas para o Pozo de Quilmes, um quartel da Brigada de Investigações da polícia localizado numa cidade da região metropolitana, ao sul da capital.

Faca no voo

Forti para Bussi: "Não tenho problema nenhum em cravar a faca cinco vezes em você. Mas a formação que recebi de minha mãe me diz que esta não seria a maneira certa"

Uma semana depois, as crianças reapareceram, vendadas com lençol e amarradas na árvore de uma praça no Parque Patrícios. Azucena ainda foi vista por um prisioneiro de Quilmes na primeira semana de março, até ser transferida para a chefatura de polícia de San Miguel de Tucumán, sua cidade de origem, 1.300 km a noroeste de Buenos Aires. A ordem de prisão e transferência para Tucumán partiu do general Antonio Domingo Bussi, que comandava a repressão mais feroz à guerrilha rural mais ativa do país na menor província da Argentina.

Azucena foi vista com vida, pela última vez, no centro clandestino de detenção conhecido como Arsenales, na saída norte da cidade, onde funcionava a Companhia de Arsenais Miguel de Azcuénaga, da 5ª Brigada de Infantaria. Era um típico campo de concentração, cercado por duas cercas de alambrado separadas por uma faixa de terra vigiada por soldados e cães e altas torres de sentinelas.

Alfredo Forti e seus cinco irmãos nunca mais tiveram notícias de Azucena. No final da década de 1990, advogado com banca em Washington e consagrado assessor político dos governos do Peru, Equador e Guatemala, ele descobriu que dividia casualmente o mesmo voo da Aerolíneas com o algoz de sua mãe, Bussi, então um septuagenário general reformado. Naqueles tempos, a refeição era servida com talheres de metal, não de plástico. Em pleno voo, Forti deixou sua poltrona e foi até onde se sentava o general. Sem se apresentar, inclinou-se sobre ele, entreabriu o paletó e lhe disse:

"Estás vendo esta faca? Não tenho problema nenhum em cravá-la cinco vezes em você. Mas a formação que recebi de minha mãe me diz que esta não seria a maneira certa de resolver as coisas. Eu quero te ver apodrecer no cárcere!", amaldiçoou Forti, deixando para trás, tremendo, o homem que fazia a Argentina estremecer na década de 1970.

Caso norte-americano

O nome de Bussi fazia abalar o prestígio da Argentina até nos Estados Unidos, no auge da ditadura. O National Security Archive da Universidade George Washington revelou, em 2002, o conteúdo de 4.600 documentos secretos do Departamento de Estado que abordavam violações de direitos humanos no país. O telegrama 04997 que a Embaixada em Buenos Aires enviou a Washington, no dia 29 de junho de 1978, relacionava os nomes de 103 pessoas das quais o governo norte-americano exigia informações. Um dos “casos de direitos humanos de interesse para os Estados Unidos” era o nº 71-77-5, de Nélida Azucena Sosa de Forti, com o status de “desaparecida”.

Fonte: O outro lado da notícia, por Luiz Cláudio Cunha, especial para Sul21

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domingo, 29 de janeiro de 2012

Os riscos da arrogância do Império
12/05/2011
Conto-me entre os que se entusiasmaram com a eleição de Barack Obama para Presidente dos EUA, especialmente vindo depois de George Bush Jr., Presidente belicoso, fundamentalista e de pouquíssimas luzes. Este acreditava na iminência do Armagedon bíblico e seguia à risca a ideologia do Destino Manifesto, um texto inventado pela vontade imperial norte-americana, para justificar a guerra contra o México, segundo o qual os EUA seriam o novo povo escolhido por Deus para levar ao mundo os direitos humanos, a liberdade e a democracia. Esta excepcionalidade se traduziu numa histórica arrogância que fazia os EUA se arrogarem o direito de levarem ao mudo inteiro, pela política ou pelas armas, o seu estilo de vida e sua visão de mundo.

Esperava que o novo Presidente não fosse mais refém desta nefasta e forjada eleição divina, pois anunciava em seu programa o multilateralismo e a não hegemonia. Mas tinha lá minhas desconfianças, pois atrás do Yes, we can (“sim, nós podemos”) podia se esconder a velha arrogância. Face à crise econômico-financeira apregoava que os EUA mostraram em sua história que podiam tudo e que iam superar a atual situação. Agora por ocasião do assassinato de Osama bin Laden ordenada por ele (num Estado de direito que separa os poderes, tem o Executivo o poder de mandar matar ou não cabe isso ao Judiciário que manda prender, julgar e punir?) caiu a máscara. Não teve como esconder a arrogância atávica.

O Presidente, de extração humilde, afrodescendente, nascido fora do Continente, primeiramente muçulmano e depois convertido evangélico, disse claramente: “O que aconteceu domingo envia uma mensagem a todo o mundo: quando dizemos que nunca vamos esquecer, estamos falando sério”. Em outras palavras: “Terroristas do mundo inteiro, nós vamos assassinar vocês”. Aqui está revelada, sem meias palavras, toda a arrogância e a atitude imperial de se sobrepor a toda ética.

Isso me faz lembrar uma frase de um teólogo que serviu por 12 anos como assessor da ex-Inquisição em Roma e que veio me prestar solidariedade por ocasião do processo doutrinário que lá sofri. Confessou-me: ”Aprenda da minha experiência: a ex-Inquisição, não esquece nada, não perdoa nada e cobra tudo; prepare-se”. Efetivamente assim foi o que senti. Pior ocorreu com um teólogo moralista, queridíssimo em toda a cristandade, o alemão, Bernhard Hâring, com câncer na garganta a ponto de quase não poder falar. Mesmo assim foi submetido a rigoroso interrogatório na sala escura daquela instância de terror psicológico por causa de algumas afirmações sobre sexualidade. Ao sair confessou: “o interrogatório foi pior do que aquele que sofri com a SS nazista durante a guerra”. O que significa: pouco importa a etiqueta, católico ou nazista, todo sistema autoritário e totalitário obedece à mesma lógica: cobra tudo, não esquece e não perdoa. Assim prometeu Barack Obama e se propõe levar avante o Estado terrorista, criado pelo seu antecessor, mantendo o Ato Patriótico que autoriza a suspensão de certos direitos e a prisão preventiva de suspeitos sem sequer avisar aos familiares, o que configura sequestro. Não sem razão escreveu Johan Galtung, norueguês, o homem da cultura da paz, criador de duas instituições de pesquisa da paz e inventor do método Transcend na mediação dos conflitos (uma espécie de política do ganha-ganha): tais atos aproximam os EUA ao Estado fascista.

O fato é que estamos diante de um Império. Ele é consequência lógica e necessária do presumido excepcionalismo. É um império singular, não baseado na ocupação territorial ou em colônias, mas nas 800 bases militares distribuídas pelo mundo todo, a maioria desnecessária para a segurança americana. Elas estão lá para meter medo e garantir a hegemonia no mundo. Nada disso foi desmontado pelo novo Imperador, nem fechou Guantánamo como prometeu e ainda mais, enviou outros trinta mil soldados ao Afeganistão para uma guerra de antemão perdida.

Podemos discordar da tese básica de Abraham P. Huntington em seu discutido livro O choque de civilizações. Mas nele há observações, dignas de nota, como esta: “a crença na superioridade da cultura ocidental é falsa, imoral e perigosa” (p.395). Mais ainda: “a intervenção ocidental provavelmente constitui a mais perigosa fonte de instabilidade e de um possível conflito global num mundo multicivilizacional” (p.397). Pois as condições para semelhante tragédia estão sendo criadas pelos EUA e pelos seus súcubos europeus.

Uma coisa é o povo norte-americano, bom, engenhoso, trabalhador e até ingênuo que admiramos, outra é o Governo imperial, que não respeita tratados internacionais que vão contra seus interesses e capaz de todo tipo de violência. Mas não há impérios eternos. Chegará o momento em que ele será um número a mais no cemitério dos impérios mortos.

Dilminha

Documentos sobre torturador de Dilma Rousseff foram destruídos


Alana Rizzo
Publicação: 06/07/2011 07:36 Atualização:
Os documentos funcionais referentes à atuação do militar reformado Maurício Lopes Lima, suposto torturador da presidente, Dilma Rousseff, foram destruídos. A informação é do Ministério da Defesa e da Advocacia-Geral da União (AGU), em processo movido pelo Ministério Público Federal (MPF) contra Lopes Lima e mais três militares, Innocencio Beltrão, João Thomaz e Homero Machado. Eles são réus em ação civil pública por atos de tortura cometidos durante o regime militar. A Procuradoria cobra da Justiça indenização à sociedade e às vítimas, além da cassação das aposentadorias dos quatro militares. Por isso, pediu a ficha funcional de Lima. A União, no entanto, respondeu que “vários dos possíveis documentos referentes aos acontecimentos mencionados, bem como os eventuais termos de destruição, foram destruídos”. A AGU afirmou não ter encontrado documentos relativos ao período estipulado pelos procuradores.

As respostas da União e da AGU não convenceram o MPF, para quem o Exército não forneceu as informações relativas a todos os réus, membros da chamada Operação Bandeirantes (Oban) à época da ditadura. Foram enviadas em resposta à requisição dos procuradores, anotações mínimas referentes à transferência dos militares para a reserva. “O Exército brasileiro zomba do Ministério Público e indiretamente do Poder Judiciário. Basta ler a ficha funcional de João Thomaz para se constatar que órgãos desse tipo anotam com riqueza de detalhes toda a carreira de um militar. Aliás, é da cultura das Forças Armadas o extremo cuidado com anotações e registros diversos, mormente sobre a carreira de seus integrantes,” afirma a réplica da Procuradoria da República. “O silêncio do Exército a respeito dos réus Maurício, Innocencio e Homero é eloquente. A omissão é um lamentável instrumento corporativo para auxiliar os réus em suas defesas,” destaca.

Cela do complexo onde a presidente ficou presa durante a ditadura
A ação do MPF considera a tortura crime contra a humanidade, imprescritível, tanto no campo cível, como no penal. Destaca ainda que a validade da Lei da Anistia, reafirmada no ano passado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), não inviabiliza medidas de responsabilização civil. “A julgar pelas defesas apresentadas, em especial pelos réus pessoas físicas, a tortura no Brasil, durante o regime militar, não passa de uma invenção ou então foi praticada por um ente,” ironiza a Procuradoria da República em resposta às manifestações preliminares dos militares. Os acusados negam os crimes, pedem a improcedência da ação e ainda requerem a condenação do MPF por má-fé.

Nas 51 páginas em que apresenta sua defesa, Lima contesta qualquer ato de tortura, defende a prescrição dos crimes e alega que só poderia ser processado pela Justiça Militar. Com relação à presidente Dilma, ele cita trechos de duas entrevistas da petista para dizer que nem ela mesmo o teria reconhecido como torturador. O capitão reformado insinua que a presidente mentiu no depoimento de 1970 em que o acusava.

O MPF atribui a Maurício torturas praticadas contra 16 militantes políticos. Na ação inicial é transcrito o relato de Dilma ao projeto Brasil Nunca Mais, da Arquidiocese de São Paulo. “Pelos nomes conhece apenas a testemunha Maurício Lopes Lima, sendo que não pode considerar a testemunha como tal, visto que ele foi um dos torturadores da Oban; que, com referência às outras testemunhas nada tem a alegar; que tem, ainda, a acrescentar que, na semana passada, dois elementos da equipe chefiada pelo capitão Maurício compareceram ao presídio Tiradentes e ameaçaram a interroganda de novas sevícias, ocasião em que perguntou-lhes se estavam autorizados pelo Poder Judiciário e recebeu como resposta o seguinte: “Você vai ver o que é o juiz lá na Oban”; (...) que ainda reafirma que mesmo no Dops foi seviciada ...)”, diz um trecho do depoimento.

De acordo com Lima, ele não integrava o destacamento da Oban à época dos fatos relatados e menospreza o papel das cortes internacionais. “Qualquer que seja a decisão da Convenção Americana de Direitos Humanos sobre a matéria, sua relevância será nenhuma”, desdenha. E completa: “No caso em concreto, da Lei da Anistia, por ser questão exclusivamente brasileira, ocorrida em território brasileiro, a competência da Suprema Corte é absoluta e das cortes internacionais, nenhuma.”

Tortura
A ação é baseada em depoimentos colhidos por tribunais militares, além de informações mantidas em arquivos públicos e testemunhos de algumas vítimas. O MPF narra 15 episódios de tortura. Entre eles o caso de Virgílio Gomes da Silva, o Jonas, e sua família. Ele foi um dos autores do sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, em 1969, no Rio de Janeiro. Preso poucas semanas depois do crime por agentes da Oban, morreu 12 horas depois. A polícia deteve ainda sua mulher e três dos quatro filhos. Hilda foi torturada durante dois dias e viu a filha de quatro meses ser submetida a choques elétricos.

A União afirma que reconheceu a sua responsabilidade pelas mortes e desaparecimentos ocorridos durante o período do regime militar. A AGU sustenta que o governo brasileiro promoveu medidas de reparação tanto financeiras quanto de resgate à memória. O Ministério da Defesa, por meio da assessoria de imprensa, não comentou a destruição das fichas funcionais dos militares. Já a Fazenda do Estado de São Paulo afirma que não houve responsabilidade do estado.

Amor

Marta Suplicy: O amor é lindo

Coloque um monte de jovens -homens e mulheres- com pouca roupa, jogos e brincadeiras que propiciem tensão e esfrega-esfrega, menos camas do que participantes (esta eu achei incrível!), muita bebida, diversão suficiente para descontrair, intrigas para algum suspense e você tem o “BBB”.

Por Marta Suplicy na Folha de S. Paulo*

Acrescente uma busca e seleção de personagens em escala nacional com promoção de mídia, todos com perfil para o enredo ter o mix mais picante e consegue-se a garantia de boa audiência, um pornô palatável, pois os que gostam se deliciam e os que desprezam passam longe e não criam confusão.
Leia também:

Protesto contra o BBB exige regras democráticas para comunicação


Até que das redes sociais ouvimos um grito de protesto. Este, agora, seguido por várias instituições que exigem apuração e questionam os procedimentos no programa. Duas novidades importantes: as redes sociais fizeram diferença e a questão da violência contra a mulher entrou na pauta!

A falta de intimidade, as dificuldades nos relacionamentos ditadas pela competitividade, o estresse, o cotidiano das cidades, a ruptura de laços familiares, tudo colaborou para uma enorme vontade de pertencer, saber mais (de longe) sobre o outro. Acrescente a curiosidade gerada por este mundo novo, fruto das mudanças dos anos 1960, e dá para entender o surgimento do “An American Family”, no ano de 1973, que precedeu as variações que hoje temos. Falou-se então de divórcio e homossexualidade.

O desejo por mais adrenalina, a exploração cada vez maior da sexualidade, o prazer sádico, as alternativas pobres de entretenimento, somadas à contínua tensão deste mundo globalizado, onde cada vez mais cada um é mais por si e sozinho, levaram ao que temos hoje.

Não teríamos coisas mais interessantes do que estarmos aqui discutindo esse programa? Creio que sim. Mas o suposto estupro — negado pelos participantes do BBB, assim como foi ignorada pelos editores a vulnerabilidade da moça alcoolizada —, além de desencadear uma discussão sobre a adequação e a ética dos responsáveis pelo BBB, trouxe visibilidade a uma forma de violência pouco denunciada e que defendo revisão.

Há meses, apresentei um projeto de lei ao Senado que recria o tipo penal do “atentado violento ao pudor”. Isso porque depois de uma mudança de lei, em 2009, passou-se a considerar também como estupro atos libidinosos.

As condenações por tais atos diminuíram em virtude de os juízes ficarem constrangidos em dar penas tão severas por ato que consideram não tão grave quanto o estupro. O novo projeto mantém a pena de reclusão de seis a dez anos, em caso de estupro, e pena de dois a seis anos de reclusão, quando ocorrer o atentado violento ao pudor.

O amor é lindo, como disse Pedro Bial olhando a movimentação debaixo do edredom. Mas passa longe do BBB.

*Marta Suplicy é senadora pelo PT/SP


(vermelho.org 22-1 L

Pensamentando

''Haveria sociedade humana sem a participação dos animais?''. Entrevista especial com Caetano Kayuna Sordi Barbará Dias e Daniel Braga Lourenço
“Acredito que um logro importante para o animalismo seria desvincular a proteção dos animais da proteção ao meio ambiente, conferindo aos animais um estatuto mais próximo de seu valor intrínseco”, afirma o sociólogo.
Confira a entrevista.
Neste domingo, dia 22 de janeiro, várias capitais do Brasil irão realizar a manifestação “CRUELDADE NUNCA MAIS”, que visa a penalização para crimes de maus-tratos aos animais. IHU On-Line entrevistou, por e-mail, o sociólogo Caetano Kayuna Sordi Barbará Dias e o advogado Daniel Braga Lourenço, que explicam como se dá, na contemporaneidade, a relação dos humanos e não-humanos e por que os direitos destes últimos, muitas vezes, não são preservados.
Segundo Caetano Kayuna Sordi Barbará Dias, há uma diferença bastante grande entre proteger privadamente os animais e lutar na esfera pública pelos seus direitos. “No primeiro caso, o animal ocupa um lugar tutelado. No segundo, é um sujeito de direitos. Se o animal passa receber outro estatuto ontológico e moral por parte de algumas pessoas, é natural que surjam manifestações públicas (destas mesmas pessoas) por uma revisão da legislação a respeito”, diz.
Já o advogado Daniel Braga Lourenço acredita que “a dinâmica dos sistemas econômico e político, bem como da cultura midiática, tende a desvalorizar e a despersonalizar os animais”. Ademais, afirma, enfático, que “a certeza da punição é um fator sociológico importante”.
“Valendo-me da expressão utilizada pelo jurista norte-americano Gary Francione, poderíamos dizer que a humanidade sofre de uma aguda esquizofrenia moral em relação aos animais. Da mesma forma com que tratamos alguns como verdadeiros membros de nossas famílias, relegamos outros a um completo descaso. Esse é o caso dos animais utilizados na alimentação, na experimentação científica, no entretenimento (rodeios, vaquejadas, circos, zoológicos, corridas, etc.), na indústria da moda, de medicamentos e cosméticos, entre tantas outras instituições opressivas”, completa Lourenço.
Caetano Kayuna Sordi Barbará Dias possui graduação em Ciências Sociais Bacharelado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e graduação em andamento em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Atualmente é bolsista de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS. Realizou intercâmbio acadêmico na Ebehrard-Karls Universität Tübingen (Alemanha) através da bolsa Baden-Württemberg Stipendium do Landesstiftung Baden-Württemberg (2008-2009). Publicou no Cadernos IHU ideias em sua 147ª edição, intitulada “O animal como próximo: por uma antropologia dos movimentos de defesa dos direitos animais”, disponível em http://migre.me/7BvEV.
Daniel Braga Lourenço é advogado membro do "Animal Legal Defense Fund" - ALDF (Profesional Volunteer) e Professor de Direito Ambiental dos cursos Praetorium no Rio de Janeiro e da Pós-Graduação em Direito do Petróleo do Instituto Catarinense de Pós-Graduação - ICPG. Atualmente é o Diretor Jurídico do Instituto Abolicionista Animal – IAA e Assessor Jurídico da ONG “Espaço Gaia”. Integra os Conselhos Editoriais da Revista Brasileira de Direito Animal, da Editora Evolução e Pensata Animal. É autor de “Direito dos Animais: Fundamentação e Novas Perspectivas” (Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008, 566 p.).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Neste domingo, 22, será realizada a manifestação “CRUELDADE NUNCA MAIS” em várias capitais do Brasil, visando a penalização para crimes de maus-tratos aos animais. Neste sentido, qual a relevância e o impacto de iniciativas como essas no país?
Caetano Kayuna Sordi Barbará Dias - Estas iniciativas são relevantes porque manifestam a consolidação – ainda em curso, é claro – daquilo que poderíamos classificar como um “novíssimo” movimento social. Embora sejam relativamente antigas, manifestações públicas em prol dos animais, exigindo outro tipo de relação com eles, tem ganhado mais espaço nas últimas três décadas, sobretudo nos países do hemisfério norte. No Brasil, este é um movimento ainda relativamente circunscrito. Eventos e intervenções públicas como essa, no entanto, têm dimensionado o impacto simbólico da questão dos animais para além do lugar hiper-reduzido que ela ocupava alguns anos atrás. O surgimento de discursos e racionalidades mais coesas no millieu animalista, como a “libertação animal” ou o “abolicionismo”, também contribuíram para que a questão dos animais tomasse contornos mais próximos aos movimentos sociais e políticos clássicos, deixando de ser identificada, necessariamente, com o “altruísmo”, a “beneficência” e a “misericórdia” com os animais. Há uma diferença bastante grande entre proteger privadamente os animais e lutar na esfera pública pelos seus direitos. No primeiro caso, o animal ocupa um lugar tutelado. No segundo, é um sujeito de direitos. Se o animal passa receber outro estatuto ontológico e moral por parte de algumas pessoas, é natural que surjam manifestações públicas (destas mesmas pessoas) por uma revisão da legislação a respeito. Há também uma atmosfera mais propícia para que estas causas surjam com força: a subjetivação legal dos animais, defendida por um número reduzido de militantes, destaca-se de um pano de fundo mais geral de subjetivação social dos mesmos, o que é bastante evidente no caso específico dos animais domésticos de companhia. Como já disse o antropólogo britânico Tim Ingold, os filhotes estão começando a virar “filhinhos” nas sociedades industriais. Onde antes havia uma “agropecuária” hoje há um pet shop. Aqueles que se dedicam mais intensamente à causa animal sabem desta atmosfera propícia e buscam otimizá-la para seus propósitos, principalmente através deste tipo de intervenção no espaço público. Somando-se a isso o poder de disseminação das redes virtuais, potencializa-se a sensibilidade já pré-existente no meio social.
Daniel Braga Lourenço – A modificação do estatuto moral e jurídico dos animais não-humanos passa, necessariamente, por uma ampliação da sensibilização social e estatal em relação à questão. Neste sentido, movimentos como o “CRUELDADE NUNCA MAIS” são extremamente relevantes. A maior parte dos sociólogos classifica o racismo, assim como o sexismo e outras formas de discriminação, entre as quais poderíamos também incluir o especismo, como autênticas ideologias. Como tais, consubstanciariam um conjunto de crenças culturalmente compartilhadas que legitimam uma determinada ordem social, desejada ou já existente. Assim é que a opressão contra os animais, nas suas mais variadas expressões, é uma dessas ordens presentes na sociedade que não deriva exclusivamente de um preconceito de ordem individual, mas sim da institucionalização da opressão em relação a esta categoria vulnerável. A dinâmica dos sistemas econômico e político, bem como da cultura midiática, tende a desvalorizar e a despersonalizar os animais. De forma cíclica poderíamos sintetizar esse movimento nas seguintes etapas:
(a) construção e propagação de ideias que desvalorizam os oprimidos;
(b) ideologias opressivas são criadas;
(c) preconceito é cultivado, explicita ou implicitamente, e a discriminação torna-se lugar comum;
(d) opressão é naturalizada e o status quo dos opressores é preservado;
(e) a eliminação a subjugação do “outro” é justificada. A exploração dos animais possui diversas formas de concretização que normalmente estão associados a um comportamento abusivo ou cruel.
IHU On-Line – Existe alguma legislação específica de punição a pessoas que maltratam os animais? Como a legislação brasileira se manifesta em relação a isso?
Caetano Kayuna Sordi Barbará Dias - A legislação brasileira sobre animais é antiga. Em 1934, durante a Era Vargas, foi instituído o Decreto 4.645, visando coibir a crueldade com os animais. A partir deste decreto, os animais passaram a ser tutelados pelo Estado. Na Constituição de 1988, o artigo 225 dedica algumas palavras ao cuidado da fauna, mas – isto é muito interessante – este é o artigo que versa sobre o cuidado com o meio ambiente. E o artigo 225 é bastante claro em função de quem o meio ambiente deve ser protegido e cuidado: em prol das brasileiras e dos brasileiros (humanos). Isto não se compara às legislações de outros países, nos quais os animais ocupam se não o estatuto de sujeito, pelo menos algo bem próximo a ele. As legislações dos países escandinavos, da Áustria e da Suíça, são bastante severas em relação aos maus-tratos. Não coincidentemente, são países com antiga tradição na defesa social dos animais, cujas sociedades não partilham tão intensamente como nós da divisão natureza/cultura, humanidade/animalidade, cidade/campo da tradição greco-latina. Tanto Philippe Descola, em Par delà Nature et Culture, quanto Luc Ferry, em A nova Ordem ecológica, argumentam neste sentido.
Daniel Braga Lourenço – Possuímos previsões normativas importantes no campo jurídico que lidam com a questão do abuso em relação aos animais não humanos. A mais importante delas consta da própria Constituição Federal que, em seu art. 225, § 1º, VII, prevê, com clareza, a vedação das práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. Além da previsão constitucional, possuímos o Decreto n.º 24.645/34, ainda em vigor, parcialmente recepcionado pela Constituição, que traz inúmeros exemplos de condutas abusivas, entre as quais podemos citar o transporte a manutenção de animais em locais inadequados, a realização de trabalhos excessivos, a prática de engorda mecânica e promoção de luta entre animais, etc. Temos ainda outras normas importantes, mas é imperioso citar o art. 32 da Lei n.º 9.605/98 (conhecida como lei de crimes ambientais) que prevê como fato típico penal (crime) a realização de condutas, comissivas ou omissivas, que sejam caracterizadas como abusivas ou cruéis.
IHU On-Line – Acredita que há penalização correta no Brasil contra a crueldade aos animais? No que consistiria uma legislação eficiente?
Caetano Kayuna Sordi Barbará Dias - Particularmente, sou favorável a punições mais severas e maior controle por parte dos órgãos responsáveis, mas este é um debate a ser feito de maneira democrática e propositiva. O recente caso da enfermeira que espancou uma cadelinha nos ensina duas coisas: por um lado, grande parte da sociedade não tolera mais uma cultura de maus-tratos aos animais e impunidade por parte de quem os inflige. De outro, a própria ausência de um debate público mais generalizado a este respeito pode ter como resultado uma exaltação hipertrofiada dos ânimos das pessoas, abrindo margem para a detração do animalismo como um “fetiche” de quem quer elevar ao patamar de problema social o que não é. Esta é uma das acusações mais frequentemente ouvidas pela militância animalista: de que sua “causa” não é suficientemente relevante; de que qualquer reconhecimento a mais para os animais implicaria necessariamente em um “rebaixamento” do estatuto ontológico do ser humano. Não sou especialista em direito, e me seria bastante temerário dizer, agora, no que consistiria uma legislação mais eficiente. No entanto, acredito que um logro importante para o animalismo seria desvincular a proteção dos animais da proteção ao meio ambiente, conferindo aos animais um estatuto mais próximo de seu valor intrínseco.
Daniel Braga Lourenço – A pena prevista para o crime de maus-tratos, tal qual consta do mencionado art. 32 da Lei n. 9.605/98, é de três meses a um ano de detenção, podendo ser aumentada de um sexto a um terço caso ocorra a morte do animal em decorrência da prática abusiva. A pena cominada, anteriormente mencionada, leva a que o crime seja considerado de “menor potencial ofensivo”. Estes delitos incluem-se no âmbito da competência dos chamados Juizados Especiais Criminais, regulados pela Lei n. 9.099/95. Este diploma legal prevê uma série de benefícios para aqueles que cometem os crimes ditos de “menor potencial ofensivo” dentre as quais podemos citar a impossibilidade de prisão em flagrante (caso o autor seja encaminhado ao juizado ou assuma o compromisso de a ele comparecer), a possibilidade de composição civil dos danos e transação penal com aplicação de penas restritivas de direitos em lugar das restritivas de liberdade. Somando-se esses fatores a uma usual omissão das autoridades policiais na apuração desta espécie de crime, gera-se um sentimento generalizado de impunidade.
Penso que poderíamos evoluir juridicamente no sentido de aumentar a pena cominada de maneira a retirar o crime de maus-tratos da alçada dos juizados especiais. Muitos penalistas voltam-se contra esta opção afirmando que o art. 136 do Código Penal, quando tipifica a conduta de maus-tratos (em relação a humanos) o faz com uma pena ainda menor que a prevista pela lei de crimes ambientais. Esta, a meu sentir, é uma observação apenas parcialmente verdadeira, pois os parágrafos do mesmo art. 136 do Código Penal prescrevem penas bastante significativas para os casos de lesão corporal de natureza grave e morte, além da possibilidade da configuração do concurso de crimes. Mais que isso, o elemento subjetivo do tipo do mencionado art. 136 refere-se tão somente às situações de abuso relacionadas a situações de excesso na guarda ou vigilância. Se o agente pratica o fato, portanto, para fins de correção, censura ou reprimenda, havendo abuso, trata-se de crime de maus-tratos. Não ocorrendo essa finalidade, realizando o fato somente para que a vítima sofra, cuida-se de tortura, delito especial inexistente na lei de crimes ambientais. Assim é que me parece que são situações díspares e que não podem ser comparadas para o fim de deslegitimar o pleito de aumento de pena para o crime de maus-tratos de animais. Por fim, mesmo que ultrapassemos esta questão da necessidade do aumento da pena, creio que deveríamos investir seriamente na coibição das condutas abusivas em relação aos animais. A certeza da punição é um fator sociológico importante.
IHU On-Line – Como avalia a relação dos humanos e não-humanos hoje?
Caetano Kayuna Sordi Barbará Dias - Como já disse anteriormente, há, por um lado, um movimento de hipersubjetivação dos animais domésticos de companhia; mas há, também, uma radicalização dos modos de tratamento industrial dos animais domésticos de trabalho, mais próxima de uma coisificação. Este é um paradoxo muito antigo, mas que tem se intensificado nas últimas décadas. Grande parte das racionalidades animalistas, como a libertação animal e o abolicionismo são, em parte, reflexos e reações a esta dinâmica. Movimentos identificados com estas linhas procuram lembrar a sociedade de que não somente os animais de companhia (mormente cães e gatos) sofrem nas mãos dos seres humanos, mas que haveria toda uma “plebe animal rural” cujo sofrimento é sistematicamente ocultado do conhecimento social. O que acontece é que, se revelado, este sofrimento também pode ser neutralizado, a partir do uso político de racionálias como a da “sustentabilidade” e do “manejo racional”. Atualmente, tenho dirigido meu interesse de pesquisa do “protesto” para o “produto”, ou seja, tenho acompanhado de que forma os agentes do agronegócio e do sistema-carne nacional – o mais afetado simbólica e materialmente pela militância animalista – tem reagido e respondido aos seus críticos na esfera pública. E os resultados até agora obtidos são interessantíssimos.
Daniel Braga Lourenço – A relação entre humanos e não-humanos sempre foi marcada por paradoxos insondáveis. A visão aristotélica que propugna pelo antropocentrismo teleológico, com a consequente construção de uma grande hierarquia da vida é ainda hoje muito viva. Exploramos e instrumentalizamos os animais das mais variadas formas e maneiras. Valendo-me da expressão utilizada pelo jurista norte-americano Gary Francione, poderíamos dizer que a humanidade sofre de uma aguda esquizofrenia moral em relação aos animais. Da mesma forma com que tratamos alguns como verdadeiros membros de nossas famílias, relegamos outros a um completo descaso. Esse é o caso dos animais utilizados na alimentação, na experimentação científica, no entretenimento (rodeios, vaquejadas, circos, zoológicos, corridas, etc.), na indústria da moda, de medicamentos e cosméticos, entre tantas outras instituições opressivas.
IHU On-Line – Acredita que, apesar de todos os avanços na legislação, o Brasil é conivente com quem comete crimes contra a fauna? Por quê?
Caetano Kayuna Sordi Barbará Dias – Em grande parte, sim. È forçoso reconhecer que um número cada vez maior de operadores do direito têm se interessado pela questão dos animais. O mérito destes agentes deve ser reconhecido. No entanto, a fiscalização ainda deixa muito a desejar e há questões que somente em longo prazo poderão ser solucionadas. Por exemplo: um colega antropólogo, pesquisador do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), relatou recentemente que fazendeiros do Pantanal, anteriormente partícipes de um projeto de preservação da onça-pintada, formaram uma verdadeira rede de caça à onça assim que o projeto acabou, retornando às práticas tradicionais que a iniciativa visava mitigar ou mesmo erradicar. É uma ilusão achar que as relações humano-animais podem mudar por decreto, somente através do peso da lei. O tráfico de animais silvestres e o abandono de animais domésticos estão aí para atestar o que eu estou dizendo. Se queremos fazer algo pelos animais, devemos, primeiro, refletir sobre toda uma mentalidade que se possui a respeito deles e o seu lugar na sociedade. Para iniciar, poderíamos começar a refletir se as nossas sociedades são mesmo humanas ou se não são, bem a verdade, humano-animais ou “comunidades híbridas”, conforme o conceito de Dominique Lestel. Haveria sociedade(s) humana(s), tal qual nós a(s) conhecemos, sem a participação dos animais? Isto é algo digno de ser pensado e avaliado. Também em sentido moral.
Daniel Braga Lourenço – Sim. Num cenário onde a impunidade é a marca registrada, acredito firmemente que a omissão governamental em relação ao problema dos animais gera um nefasto compadrio, uma cumplicidade, uma conivência, ainda que pretensamente involuntária, entre as autoridades e os infratores. Conforme mencionei na primeira indagação, acredito que a opressão contra os animais faz parte de algo maior, institucionalizado, algo que o Estado corrobora ao não investigar adequadamente e não punir.
IHU On-Line – De que maneira o senhor busca estabelecer perspectivas morais para pensar os animais como um "próximo"?
Caetano Kayuna Sordi Barbará Dias – Em primeiro lugar, gostaria de deixar claro que, como antropólogo pensando em moralidades, não me cabe propriamente prescrever formas apropriadas de nos relacionarmos com eles, mas sim compreender o modo com que isto já acontece. Em outras palavras, que tipos de “moralidades” a respeito dos animais já existem no tecido social, quais são as moralidades dominantes e quais as propostas alternativas. Neste sentido, a militância animalista propõe algo diferente, que visa aproximar todos os animais do estatuto de sujeito de direitos. Se esta aproximação é de cunho absoluto ou relativo, as organizações propriamente militantes teriam melhores argumentos a destilar neste momento do que eu. De certa maneira, nossa eticidade urbana contemporânea já reconhece muitos animais como “próximos”, isto é, como sujeitos (mais ou menos) como nós: falo aqui não somente dos cães e gatos cujo sofrimento via maus-tratos desperta sentimentos de repulsa, mas também daqueles animais infinitamente distantes (leões, baleias, araras azuis) transformados em uma espécie de “bom selvagem” do século XXI, cuja preservação tornou-se crucial. A questão realmente sensível, a meu ver, reside justamente no meio do caminho entre o cão (ou o gato) e o leão (ou a arara): ou seja, no frango, no boi e nos demais animais de fazenda, cujo reconhecimento pleno de direitos não poderia dar-se de outra forma se não alterando radicalmente hábitos e necessidades socioculturais fortemente enraizados em nossa civilização.
IHU On-Line – Acredita que existe um discurso antropocêntrico dominante, que considera o animal dentro de uma lógica de coisificação? Por quê?
Caetano Kayuna Sordi Barbará Dias – O antropocentrismo é dominante e muito bem disseminado no tecido social. Mas ele vaza por todos os lados, cada vez mais. Desde Darwin, tornou-se absurda qualquer defesa de uma diferença absolutamente radical entre homens e animais. O que antes era explicado pela essência (a diferença entre homens e animais), passou a ser refutado pela investigação sistemática da natureza. A tese da exceção humana teve de se refugiar em conceitos mais ou menos metafísicos como a “cultura”, “o simbólico”, “o político”. Mas todas estas dimensões podem ser encontradas em algum grau entre indivíduos e comunidades de outras espécies, de modo que há muito a se descobrir ainda sobre os mundos vividos dos demais animais. O estudo das similaridades entre humanos e não-humanos sempre foi um campo problemático pelos problemas morais que é capaz de suscitar. Há algumas décadas, o grande problema deste campo de pesquisas era a possibilidade de reificar o homem ao fazê-lo comungar das propriedades dos animais. Podemos chamar isto de “redução à objetividade”. Hoje, o que diversos antropólogos, primatólogos e biólogos compartilham é o resgate da proximidade entre humanos e animais através da subjetividade de uns e outros, sem deixar de respeitar suas diferenças e valores intrínsecos. Mas o que ocorre no plano ontológico não necessariamente se repete no plano moral. O antropocentrismo não é somente um modo de identificação dos entes, mas também uma matriz de relações e prescrições morais sobre como lidar com eles. O antropocentrismo coloca - como o próprio nome diz - o homem no centro do universo. As coisas passam a ser consideradas em função de uma única espécie, tomada como excepcional. É interessante notar que o antropocentrismo não exclui totalmente a subjetividade do mundo dos animais não-humanos; mas, mesmo reconhecendo que ela exista, coloca-a em perspectiva desde o ponto de vista humano, que é tomado como ideal. Assim, os animais podem ser escalonados desde o nível de quase-objeto – insetos, por exemplo – até o de quase-humanos (mamíferos, primatas, etc.) abrindo margem, evidentemente, para todo tipo de objetivação. Seja ela absoluta ou relativa.
Daniel Braga Lourenço – Infelizmente o discurso predominante é, ainda hoje, de cunho marcadamente antropocêntrico. O animal está inserido numa categoria objetivada, instrumentalizada, de coisa, objeto. Isso é um reflexo de uma mentalidade social refém de uma lógica de dominação, de opressão contra as categorias vulneráveis.
IHU On-Line – Muitos animais continuam desprotegidos pelo homem. Isso seria reflexo de um problema cultural? Essa atitude pode ser superada algum dia?
Caetano Kayuna Sordi Barbará Dias – A própria questão de animais “protegidos” e “desprotegidos” pelo homem já incita questionamentos muito profundos. O que significa proteger? Por que proteger? Quais animais devem ser protegidos e do quê, exatamente? Em alguns casos, não seria do próprio homem? Pensemos, por exemplo, na proteção de uma espécie ameaçada de extinção. Isto se daria pelo valor intrínseco dos indivíduos daquela espécie, pelo valor intrínseco daquela espécie como uma forma única e insubstituível de vida ou pelo valor relativo daquela espécie na preservação de um ecossistema tal? Isto, sem dúvida, é um problema cultural, se admitirmos aqui como “cultura” o conjunto de representações, valores e orientações para a prática de uma determinada sociedade (e esta não é uma definição suficiente de cultura!). Creio que ao invés do termo “proteção”, poderíamos refletir com mais frequência sobre a ideia de “respeito”, isto é, dos animais como portadores de um mundo vivo – subjetivo - a ser devidamente respeitado. O respeito comporta inúmeras dimensões, e com a “proteção” é sempre mais cômodo de lidar do que com o respeito. A proteção é vertical. Já o respeito, para ser respeito, é horizontal. E encarar de maneira mais horizontal é uma das questões mais problemática para as próximas décadas. Isto não significa necessariamente abandonar o humanismo, mas, muito mais do que isso, repensar que tipo de atitude nós tomamos com aqueles que são nossos vizinhos mais próximos deste mesmo planeta: os animais não-humanos.
Daniel Braga Lourenço - Penso que a ideologia da opressão trabalha com categorias culturais e ideológicas. A superação dessa lógica de dominação do outro, passa por um novo olhar do homem sobre si próprio e sobre a natureza. Somos também animais. Afinal, por que então a diferença brutal de tratamento? Seria a racionalidade, a autonomia prática, a linguagem, características que justificam a discriminação em relação ao alter? São perguntas que devemos nos fazer a todo instante e que um dia podem, quem sabe, levar a uma alteração de nossa relação com os animais e com o mundo natural. Essa é minha esperança.

(IHU)

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Pensamentando

Urariano Mota: Cartas camponesas

A coluna de hoje poderia ser chamada também de “a humanidade fora do rádio”. Ou de “a inteligência fora das ondas, fora dos sinais de toda e qualquer mídia”. Mas deixo o título acima para ser fiel ao espírito do que vão ler. Antes, um breve esclarecimento.



Por Urariano Mota, do Portal Direto da Redação

As cartas a seguir foram dirigidas ao programa “Acorda, camponês”, que a partir de 1987 esteve no ar da Rádio Tamandaré. Nele estivemos ao lado de Ruy Sarinho e Marco Albertim, que produziam, faziam reportagens e editavam tudo.

Eu, no papel improvisado de apresentador, com direito a virar repórter, sempre que necessário. O certo é que duramos dois anos, no ar todos os domingos, das 5 às 6 da manhã. Os usineiros e donos de engenho de Pernambuco a princípio não sabiam que o programa era gravado, e ligavam para a emissora, ameaçando invadir o estúdio para acabar à bala a subversão.

O “Acorda, camponês” era patrocinado pela Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Pernambuco, a Fetape, que a ele dava substância, vida e orientação. Os trabalhadores fizeram do "Acorda" uma coisa muito bonita, até em resultados de audiência. Por muito tempo o programa foi líder, a partir das 5 da manhã, chegando até a “derrubar” o lendário Forró do Lacerdinha, da Rádio Clube, que comandava o Ibope vários anos antes do "Acorda, Camponês". Como era possível um programa de denúncia, de esclarecimento dos direitos do trabalhador do campo, ser tão ouvido e amado? Em outra oportunidade, tentaremos responder.

No fim o “Acorda, Camponês” saiu do ar de forma brusca, sem aviso prévio, como quem despede um moleque, na Rádio Tamandaré, do Sistema Verdes Mares de Comunicação. Notem: era um programa pago à emissora, no preço que ela ditou, com números recordes de audiência, em um horário “morto” da madrugada. E fomos cortados de forma arbitrária, sem explicações. Mas por ora, vamos ao que mais importa. Em um feliz acaso, descoberto pela senhora Francêsca, que suporta a pessoa do colunista no papel de marido, segue a cópia de duas cartas.

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“Engenho Pranalto, 17-5-88

Saudação

Eu estou escrevendo esta minha carta a este brilhante maravilhoso programa acorda camponês, que eu estou toda de manhã com o meu rádio no travesseiro ouvindo acorda, camponês. Eu fico muito feliz de ouvir vocês falar. Vocês falam que está difícil pra essa reforma da terra sair. O que está faltando é se unir todos os trabalhadores, se unir um com outro trabalhador, rurais da cidade e periferia, trabalhadores das indústrias, todos esses trabalhadores se unir. Então assim essa reforma agrária da terra era resolvida.

Esteja sempre ao nosso lado nos ajudando. Vocês sabem, tudo unido vai avante, assim nós seremos nós mais nossa luta. Vocês olhem e pensem e meditem das produções e demais trabalhadores do campo. Nos ajudem para nós alcançar a vitória da reforma agrária da terra.

Lembrança ao radialista que foi ao acorda, camponês. Eu também vai lembrança e um forte abraço pra Sinésio. Não se esqueça de mim. Todo domingo estou ligado ao programa acorda camponês. Aqui eu fico com estas minhas palavras. Desculpe os erros.

Fim

Francisco Gomes Barbosa”

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“Engenho Acaú, 3 de 4 de 88

Prezados companheiros que fazem o programa acorda camponês. É pela terceira vez que escrevo para este maravilhoso programa. Venho por meio desta dizer-lhes que sou um ouvinte autêntico deste programa e do violência zero. Aí vai o nosso sincero abraço para todos que fazem os mesmos... Companheiro, aí vai um apelo para que a Fetape, a Contag e todas as entidades sindicais façam esta pergunta a nossas autoridades, que constituem o nosso país, principalmente o nosso ministro e ao nosso presidente e governo do estado Pernambuco, e todos os trabalhadores de Pernambuco queremos saber desta resposta.

Eis aí:

Como podemos viver neste país? Se roubamos, vamos presos. Se assaltamos, também. E se vamos trabalhar para alimentar os nossos filhos e para a grandeza do nosso país, somos mortos. Só agradecemos todos os trabalhadores de Condado.

Peço que leia, mas não anuncie o meu nome, pra eu não ser ameaçado, que aqui a boca é quente. Nós do município de Condado queremos justiça pelo que aconteceu em nosso município e vem acontecendo em nosso país. Só nosso sincero abraço, assina aqui o trabalhador

(Nome riscado), Acaú de Baixo, Condado – PE”

Ouçam um trecho de um programa de 1987, aqui.

*Urariano Mota é pernambucano, jornalista e autor de "Soledad no Recife", recriação dos últimos dias de Soledad Barret, mulher do cabo Anselmo, executada pela equipe do Delegado Fleury com o auxílio de Anselmo.

Fonte: Direto da Redação

Gullar

Para ofender Lula e as esquerdas, Ferreira Gullar recorre à mediocridade plena
Juremir Machado da Silva, Correio do Povo

Nada mais conservador do que um ex-comunista. É a síndrome do ex-fumante ou do ex-drogado, o cara que cria uma fundação para pregar a moral que não viveu



O triste fim de um poeta
Ano-Novo, vida velha. Ferreira Gullar foi um baita poeta. O seu "Poema Sujo" é arte das grandes. Foi artista engajado, mas a sua poesia conseguia ir muito além dos clichês bem-intencionados dos revolucionários. Hoje, certamente para ganhar a vida ou sentir-se vivo, escreve "crônicas" na Folha de S.Paulo. O seu primeiro texto de 2012 mostra o grande poeta transformado num cronista de meia pataca destilando lugares-comuns conservadores para felicidade de leitores conformistas que se acham cult ou muito críticos. Um mingau azedo polvilhado de certezas sem amparo dos fatos. Por exemplo: "A América Latina vive hoje, por determinadas razões, a experiência do neopopulismo, que tem como principal protagonista o venezuelano Hugo Chávez. É um regime que se vale da desigualdade social para, com medidas assistencialistas, impor-se diante do povo como seu salvador. Lula seguiu o mesmo caminho, mas, como o Brasil é diferente, não conseguiu o terceiro mandato. A solução foi eleger Dilma para um mandato tampão". Como prova? Apenas o seu ranço.

Leia também:
• Colunista do New York Times pede ajuda ao Brasil para conter imbecilidade dos EUA
• Madames discutem ocupação da USP e geram maior aglomeração de pérolas da história
• Maitê Proença quer se livrar de Dilma, mas não dos R$ 13 mil que embolsa da Previdência

Nada mais conservador do que um ex-comunista. É a síndrome do ex-fumante ou do ex-drogado, o cara que cria uma fundação para pregar a moral que não viveu. Para ser colunista nos jornalões brasileiros, é preciso, em geral, ser muito conservador ou transferir capital de um bolso para outro, usando a fama de uma atividade como base para o exercício de outra. A direita domina amplamente os chamados espaços de formação de opinião na imprensa. Há jovens que sobem logo ao trono, adotando ideias reacionárias e velhas que, enfim, conquistam novos prêmios, espaços e adulações repetindo fórmulas gastas pela mídia soberana. Ao não buscar um terceiro mandato, Lula frustrou os seus críticos, tirou-lhes - para adotar o atual tom clichê de Ferreira Gullar - o pão da boca e deixou-os por aí a jogar conversa fora. Aquele que foi um poeta maior, de imagens desconcertantes, agora termina suas análises mal-iluminadas com uma frase formalmente constrangedora: "Temo pelo que possa acontecer à Argentina, nas mãos de uma presidente embriagada pelo poder". Pobre poeta, embriagado pela sua mediocridade. Embriagado pela mediocridade do poder da mídia. Enquanto isso, na mesma Folha de S.Paulo, um cronista de ofício, Carlos Heitor Cony, depois de algumas temporadas sentenciosas, faz o caminho inverso: termina de envelhecer bem, disseminando um ceticismo levemente irônico de dar inveja a um Machado de Assis. Assim: "Que venham as tempestades da natureza, contra a qual pouco podemos. Quanto às tempestades provocadas pelos escândalos e pela corrupção da qual estamos fartos, não custa apelar para o fervor de nossas preces".

Como cronista, Ferreira Gullar é um Neymar improvisado de lateral. Há quem confunda ter criticado o stalinismo, na época da queda do muro de Berlim e das ditaduras do Leste europeu, com louvação ao capitalismo sem regulação, esse que quebrou a Europa e parte da economia dos Estados Unidos.

(Pragmatismo Político)

O. Médio

Mohamed Habib: A revolução árabe ainda não terminou

Há um ano, quando o tunisiano Mohammed Bouazizi ateou fogo no próprio corpo, não podia supor que as chamas daquele gesto de protesto incendiaram o mundo árabe. Começavam ali os levantes populares que derrubaram quatro governos - Tunísia, Egito, Líbia e Iêmen - e plantaram uma semente da indignação que germinou mundo afora. Embora 2011 tenha sido palco da Primavera Árabe, o ano acabou sem que suas flores fossem colhidas, avalia o professor Mohamed Habib. Para ele, a revolução árabe não acabou.

Por Joana Rozowykwiat

Desdobramentos dos levantes de 2011 virão no próximo ano / Foto: Envolverde

Vice-presidente do Instituto de Cultura Árabe (ICArabe), Mohamed Habib defende que, para avaliar as revoltas e suas perspectivas, é necessário ter em vista as questões geopolíticas e econômicas envolvidas. "A maior parte das análises sobre esse assunto fica restrita ao mapa do Oriente Médio. Mas tudo que está ocorrendo nesses países árabes tem tentáculos fora dali", afirma.

De acordo com o professor, a origem das manifestações está no fato de que, a partir da primeira guerra mundial, os países do Oriente Médio passaram por um processo de degradação socioeconômica por força das interferências do Ocidente. Esse processo foi se acentuando e chegou a um patamar insustentável em 2011.

Na Tunísia, o desemprego, no ano passado, atingia 13,9% da população. No Egito, mais de 42% da população encontra-se abaixo da linha da pobreza. Jovens estão sem emprego há vários anos, apesar de formados em boas universidades. "São países que têm um nível intelectual elevado, uma história e uma cultura muito ricas, um potencial econômico razoável, no entanto, a população vive na miséria", detalha Habib.

"Esse povo sem esperança começa então a se revoltar pacificamente contra essa deterioração, que não tinha justificativa, a não ser a de que esses países possuiam governos corruptos, que tiravam as suas riquezas de forma ilícita e as depositavam em contas nominais dos governantes nos bancos fora da Tunísia e do Egito", continua o professor.

Segundo ele, na época em que começaram os levantes no Cairo, bancos suíços declararam que as contas do ex-presidente Hosni Mubarak somavam mais de US$ 75 bilhões, mais que o dobro da dívida externa do país que o ditador "desgovernava" há 30 anos. "Ele roubou o Egito, e o caso da Tunísia não é diferente. Então esses primeiros levantes tinham uma agenda sustentada pela deterioração socioeconômica, mas, à medida que foram crescendo, incluíram outros itens, como a democratização e a reestruturação política desses países".

Habib destaca, contudo, que há um outro grupo de países onde a situação foi diferente. O professor cita o caso da Líbia, onde as condições de vida da população são bem melhores e o problema era, então, político.

"Com uma população pequena, a renda do petróleo e a estratégia montada pelo Muamar Kadafi, não havia miséria na Líbia, mas faltava liberdade de expressão, democracia", opina, fazendo um paralelo com o Bahrein e a Síria, locais em que o povo também tem se manifestado em prol de mudanças na política. "Já no Iêmen, juntaram-se as questões. Nem há condições de vida aceitáveis, nem democracia", avalia.

Pano de fundo: recursos energéticos

Por trás da situação econômica e política do mundo árabe, está o objeto de maior cobiça das potências ocidentais: os recursos energéticos, mais especificamente, petróleo e gás natural, que estão presentes nesses países.

"Desde a primeira guerra mundial, o conceito aplicado ali é o de que esses países não podem ter democracia, não podem se desenvolver, porque desenvolvimento socioeconômico implica, obrigatoriamente, em gastos energéticos maiores. E, se eles começam a gastar mais, vai faltar energia para o outro lado, o Ocidente. Ou então será preciso pagar mais caro", coloca.

Mohamed Habib informa, por exemplo, que a Lìbia gasta menos de 15% dos seus recursos energéticos. A Arábia Saudita utiliza menos ainda, 8%. O restante é exportado. Situações semelhantes ocorrem no Iraque e Kuwait.

"Para os países do Ocidente é importante manter estas ditaduras, porque eles querem que o mundo árabe continue 'estável', mas a partir da opressão. Só que um estado que vive sob opressão não tem uma estabilidade real", afirma Habib. Afinal, quando uma sociedade vive sob pressão, chega um momento em que exploide. A primeira reação veio da Tunísia, desencadeada por Mohammed Bouazizi e seu protesto que, no fundo, era contra o desemprego e a miséria.

A revolução continua

As manifestações na Tunísia e, depois, no Egito – que derrubaram os respectivos governos - estimularam os jovens e insatisfeitos de outros países. Iêmen, Marrocos, Síria, Bahrein e Líbia, também foram às ruas, inspirando movimentos desde a Espanha até os Estados Unidos.

Habib conta que, no princípio dos levantes árabes, Estados Unidos e Europa não se manifestavam ou expressavam preocupações, declarando apoio aos ditadores que eram alvo dos protestos.

“Mas quando eles percebem que esses movimentos cresceram e que o governante está enfraquecido, começam a manifestar apoio aos protestos, a contatar essas forças e se articulam com eles, para que, quando aconteça a vitória, eles continuem sob o comando do Ocidente”, conta o professor, citando como símbolo dessa estratégia a Líbia.

Habib cita ainda o exemplo do Egito, onde as Forças Armadas, que assumiram o comando do país temporariamente após a queda do ditador Hosni Mubarak, estariam tentando manobras para manter-se no poder. “Eles querem se colocar acima do Congresso e do presidente que deverá ser eleito no ano que vem e, com isso, virariam uma ponte de conexão com os Estados Unidos. Mas isso a sociedade do Egito não aceita mais”, vaticina.

Nesse sentido, os egípcios continuam os protestos contra a Junta Militar e, por isso, têm sido reprimidos com violência pelas forças que antes pareciam aliadas ao movimento. “É uma situação complicada, que faz com que essa Primavera Árabe esteja parecendo mais um outono ou um inverno, para não dizer um inferno, porque não vimos ainda nenhuma flor, a não ser no caso da Tunísia, que aparentemente, terminou em paz”, afirma o professor.

Mohamed Habib acredita que 2012 será o ano de amadurecer esses processos e que os resultados positivos – ou as flores, como ele diz -, só devem vir no segundo semestre. “Até lá, acho que ainda vai ter mortos, ainda vai ter sangue, violência, deterioração socioeconômica, do apoio logístico, do saneamento, do abastecimento, do trânsito”, previu.

Para o professor, a transição para a democracia nos países árabes pode ser mais rápida, caso a crise econômica que aflige a Europa e os Estados Unidos se acentue. “Se a crise piorar, esses países vão concentrar seus esforços na realidade local e, portanto, pensarão menos em invasões, guerras e investimentos bélicos. Isso pode fazer com que eles fechem os olhos um pouquinho e deixem o mundo árabe em paz para resolver internamente suas questões”.

“O que está em jogo hoje é até quando o Ocidente consegue enganar ou anestesiar sua própria sociedade civil, que está cansada de intervenções, dessas posturas antiéticas. O Ocidente era visto como um modelo de ética, de democracia, respeito aos direitos humanos, à mulher, e, de repente, lideram movimentos de violência e invasões. Até quando esses governos têm condições de convencer seus povos de que intervenções no Oriente Médio são necessárias?”, questiona.

Palestina

A questão palestina também esteve no centro do debate durante este ano. Para Mohamed Habib, se da revolução resultar um Egito mais autônomo e soberano, a Palestina sairá muito beneficiada. “Se o novo congresso e o novo presidente conseguirem ocupar um espaço de independência e coragem para defender os direitos do povo palestino, será muito importante para resolver este conflito”, opina.

Ele destaca que a recente troca de um soldado israelense por 1020 presos palestinos já é um sinal de mudanças. “Israel já começa a sentir a perda de um aliado, que era Mubarak”, diz, defendendo que, embora Tel Aviv possa se sentir prejudicada a princípio, a médio e longo prazo, a melhor solução para o mundo árabe e Israel é a democratização de todos os países da região.

“Porque os acordos entre países democráticos sempre contam com o apoio da população. Já nos países em ditadura, o acordo sempre é pessoal, sem apoio popular e, portanto, instável. A democratização é o melhor caminho para um acordo de paz duradouro e permanente entre Israel, Palestina e os países árabes em geral”, conclui.

(IcaArabe)

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Neruda

Pablo Neruda assassinado? O que sabemos talvez seja pior
Em relação à morte de Pablo Neruda, as perguntas talvez não tenham respostas. Ele estava acamado, quando o golpe aconteceu. E se supunha que o ódio dos criminosos que depuseram o governo chileno, respeitasse um dos poucos prêmios Nobel da América Latina até ali. Seu provável assassínio, portanto, não é uma questão tão simples.
Enio Squeff

Parte da imprensa chilena, segundo a revista “Fórum”, está divulgando uma história que até bem pouco pareceria inverossímil: Pablo Neruda, prêmio Nobel de Literatura de 1971, teria sido assassinado. Em pleno golpe de estado levado a cabo pelo general Augusto Pinochet, Neruda, internado num hospital em Santiago do Chile, sofria de um suposto câncer na próstata, e talvez não tivesse muito tempo de vida. Foi quando alguém entrou em seu quarto, aplicou-lhe uma injeção na barriga e se retirou. Poucas horas depois, a se queixar de muitas dores, o poeta faleceu.

Aparentemente, e pelas conclusões dos legistas, a “causa mortis” teria sido um ataque cardíaco fulminante. O ex-motorista de Pablo Neruda, porém, preso em seguida à morte do escritor, reforça a versão do assassinato. A hipótese é que às dez mil mortes atribuídas a Pinochet e a Henry Kissinger (foi o ex-secretário norte-americano quem recomendou que as “coisas” - leia-se mortos “necessárias” - tanto no Chile, na Argentina, quanto no Brasil fossem “rápidas”), teria de ser acrescentada agora o assassínio do único Premio Nobel do Chile. Qualquer semelhança entre Pinochet e um dos maiores assassinos de todos os tempos, César Bórgia, filho do Papa Alexandre VI, pode ser um exagero. Mas poucos ressaltam o criminoso em Pinochet; já César Bórgia é uma unanimidade histórica desde o século XVI.

No caso de Neruda, seu possível assassínio por enquanto é apenas uma forte hipótese. Sabe-se que Pinochet roubou o quanto pôde enquanto esteve no comando absoluto do Chile. No começo, isso também era uma hipótese – até que foram localizados alguns milhões de dólares em sua conta pessoal. Feitos os cálculos aritméticos, somados os seus salários com os de presidente e de general, não dava para compatibilizar uma coisa e outra. Ou seja, além de assassino, ladrão.

César Bórgia foi bem mais objetivo: roubava principalmente dos padres e cardeais que o afrontavam, ou não. Bastava que mostrassem ter algum dinheiro, ou razoável fortuna pessoal, lá ia o filho do Papa com a guarda vaticana ou simples sicários. No dia seguinte, os corpos dos monges ou dos cardeais eram encontrados envenenados ou com algumas punhaladas no corpo. Como os prelados não tinham descendentes diretos por serem “oficialmente” celibatários, a riqueza passava para a Igreja. E dali para os Bórgias. O sistema chegou a ser adotado por alguns membros da repressão brasileira. Um deles foi explicitamente condenado num tribunal comum por roubo, embora seus maiores crimes fossem o que a justiça brasileira hoje em dia desconsidera, como assassínios e torturas.

Talvez não queira dizer muito que Pinochet tenha também um poeta famoso em seu saldo com Washington, que, aliás, comprovadamente patrocinou golpe de estado no Chile. Na política internacional, assassinos e vítimas, em geral, se esfumam na consideração de que as ordens de estado são sempre supervenientes. E, de fato, não deixam de sê-lo. Francisco Franco (1892-1975), ditador espanhol até a década de 70 do século XX, não deve ter considerado muito grave que um pelotão de falangistas que ele comandava, tenha incluído o poeta Federico Garcia Lorca entre os fuzilados que foram arrancados de uma prisão durante a revolução espanhola. Afinal, qual a diferença entre um poeta e pessoas comuns, igualmente inocentes – mas democraticamente trucidadas?

Parece uma pergunta pertinente. No fundo, as injustiças das mortes de civis não são mais graves, por incluírem poetas e artistas. Stálin e Hitler, cada um a seu turno, mataram vários, justamente por serem uma coisa e outra ou ambas. Morrer por ideais, inclusive, parece ser mais coerente - ou mais explicável - do que estar casualmente na mira da eventual bomba ou do tiro errático de um combatente – louco ou não. Seria o que aconteceu com o poeta chileno?

Pablo Neruda foi um dos comunistas mais notórios da América Latina do seu tempo. Nunca escondeu que era amigo de Salvador Allende, presidente derrubado por Pinochet e cujo suicídio, por sua vez, parece estar devidamente comprovado. Foi a exceção que talvez tivesse comprovado a regra. Imagina-se que Allende, como fez seu amigo poeta, poderia ter se entregado vivo às tropas golpistas chilenas: quem sabe fosse até poupado (uma cogitação quase fantasiosa, dada a sanha assassina dos golpistas e da CIA da época). Mas a Pablo Neruda sequer foi posta essa possibilidade: estava acamado, quando o golpe aconteceu. E se supunha que o ódio dos criminosos que depuseram o governo chileno, respeitasse um dos poucos prêmios Nobel da América Latina até ali [Nota do autor: Agradeço ao leitor Sérgio Rodrigues pela retificação; de fato, Gabriela Mistral recebeu o Nobel de Literatura em 1945]. Seu provável assassínio, portanto, não é uma questão tão simples.

É que poetas, jornalistas honestos, ou não oportunistas, são difíceis de fazer calar. Um certo Filofila, por exemplo, embora muito confiado no poder dos Orsini que disputavam o trono do Papa com os Bórgias, no século XVI, disse o que quis de Alexandre VI e de seus parentes – , principalmente os filhos, César e a filha, Lucrécia. Atos incestuosos entre os Bórgias, era o mínimo que divulgava em cartazes espalhados por toda a Roma no tempo em que a família Bórgia detinha o poder no Vaticano. Iludiu-se de que seu possível talento e seus protetores, o salvassem de suas ousadias – de seu talante, digamos. Equivocou-se. Um dia seu corpo horrivelmente mutilado foi descoberto nas ruas de Roma. Não chegou, porém, a ser uma morte vã: Victor Hugo, escritor romântico francês, valeu-se de muitos dos informes de Filofila para contar sobre a intensa criminalidade na alta Renascença Italiana.

Em relação a Pablo Neruda, as perguntas talvez não tenham respostas. No atual período democrático da America Latina há uma clara opção, menos pela violência do que pela compra de opiniões. Já agora e, por enquanto, parece estarem excluídas as execuções sumárias. Se existem denúncias a comprometer políticos ou homens poderosos, o melhor é a indiferença sob a forma de mutismo. Nesses casos, nem mesmo as possíveis dúvidas podem ser consideradas. Ou divulgadas. Se existem provas irrefutáveis contra alguém, e se tiver interessados na grande imprensa que ele não seja implicado – excluam-se as denúncias, por mais evidentes que sejam.

É o que talvez sobre em relação à morte de Pablo Neruda. Vivemos tempos de bonanças e de silêncios. E talvez importe menos saber se os corpos jogados num canto qualquer de uma cidade do Afeganistão sejam de pessoas assassinadas, do que terem seus cadáveres urinados por soldados. Atos delituosos não parecem ser mais a tortura e o assassínio, do que o xixi sobre mortos.

Aventemos, enfim, que importe pouco que Pablo Neruda tenha sido assassinado. Ele iria morrer de qualquer jeito.



Enio Squeff é artista plástico e jornalista.



(Carta Maior)

Dilminha

A presidenta Dilma, Paulinho da Viola e os brasileiros
Posted on 17/01/2012 | 2 Comentários
Por Urariano Mota.

Um dia desses notei que a história política do Brasil poderia ser contada pela história da sua música popular. E como sempre acontece em qualquer descoberta, essa conclusão geral me chegou pela insistência, persistência e resistência de alguns casos particulares, individuais, que traziam em si o dom universal e reclamavam lugar. Assim foi, por exemplo, em páginas de Soledad no Recife, quando a ressurreição dos malditos anos da ditadura se fez sob a canção dos tropicalistas. Assim foi quando escrevi sobre Geraldo Vandré, sobre Chico Buarque, sobre Roberto Carlos… assim tem sido em textos mais ambiciosos, escritos sob a música íntima que me acompanha ao narrar o mundo submerso da infância. Que nos acompanha a todos quando recuperamos vidas, melhor dizendo.

Escrevo isso agora a partir de uma revelação do livro A vida quer é coragem, de Ricardo Batista, conforme artigo de Alberto Villas:

“…a uruguaia Maria Cristina Uslendi conta que em outubro de 1971, toda vez que voltava das sessões de tortura encontrava Dilma de braços abertos ‘me amparando, me ajudando a usar a latrina quando não tinha forças, me dando sopinhas de colher na boca, me cedendo a parte de baixo do beliche e pondo na vitrolinha de pilhas as melhores músicas da MPB’.
Cristina conta que Dilma sempre pedia a ela que prestasse muita atenção à letra de ‘Para um amor no Recife’, uma canção de Paulinho.”

O quanto isso é verdadeiro. O quanto a música popular foi remédio, cura e perdição da maioria dos brasileiros que estiveram contra a ditadura. O quanto devemos a esses artistas da canção, numa dívida que eles próprios não alcançam o tamanho, mas que é, ao mesmo tempo, motivo de sufoco e prisão para eles, em razão do papel que ganharam à sua revelia. No entanto, importa mais aqui, para não me distanciar do objeto destas linhas, falar alguma coisa sobre o Paulinho da Viola daqueles anos. Assim vamos agora.

Quando “Foi um rio que passou em minha vida” apareceu no Brasil, éramos estudantes numa sexta-feira à noite, numa serenata em Maria Farinha. Achávamos então que a revolução socialista seria a coisa mais natural do mundo. E por ser assim tão natural, nada demais também que ouvíssemos, não se espantem, 41 vezes seguidas, contínua e incansavelmente foi um rio, foi um rio, foi um rio em uma vitrolinha de pilha. Naquele ano, e por que não ainda?, todos nós éramos Paulinho, nessa estranha empatia, mistura de identidades que a verdadeira arte produz. Todos nós repetíamos, e repetimos e repetimos… que “meu coração tem mania de amor, e amor não é fácil de achar”. À maneira de cantar, gritávamos esses versos então.

Depois, morando na Pensão Princesa Isabel, no centro do Recife, Paulinho era Simplesmente Maria. “Na cidade, é a vida cheia de surpresa, é a ida e a vinda, simplesmente, Maria, Maria, teu filho está sorrindo, faz dele a tua ida, teu consolo e teu destino, Maria…” Nesse tempo, sempre compreendíamos o “faz dele a tua ida” como um “faz dele a tua ira”. Enquanto subíamos a escada para um quartinho isolado no alto, da televisão da sala vinha a música, tema de uma novela. Ela nos lembrava sempre que estávamos sozinhos e sem mãe, cujo nome também era Maria. À hora dessa música sempre esperávamos algum golpe traiçoeiro da polícia que queria nos matar. Sem Maria que nos velasse.

Então houve “Para um amor no Recife”. Diziam então que Paulinho fizera essa música para a secretária de Dom Hélder Câmara. As boas e as más línguas (principalmente) acrescentavam que a dedicada senhora vinha a ser a namorada secreta do arcebispo. Entre o sussurro e a maledicência, entre a repressão da ditadura Médici e a resistência serena erguia-se um poema belo, quase autônomo da melodia: “A razão por que mando um sorriso e não corro, é que andei levando a vida quase morto. Quero fechar a ferida, quero estancar o sangue, e sepultar bem longe o que restou da camisa colorida que cobria minha dor. Meu amor, eu não esqueço, não se esqueça, por favor, que voltarei depressa, tão logo acabe a noite, tão logo este tempo passe, para beijar você ”. Esta é uma canção que só fez melhorar ao longo de todos esses anos. A ditadura não existe mais, o seu motivo imediato não mais existe, mas a composição só vem crescendo, apesar da degradação do Recife, que entra quase incidentalmente no título.

Que sorte imensa a nossa de ter sobrevivido aos piores temporais para viver estes anos na maturidade! O que Paulinho anunciava num Samba Curto, “só me resta seguir rumo ao futuro, certo do meu coração mais puro”, agora vem chegando, agora atinge o seu tempo. Menos puro que o esperado, como é bom esse coração amadurecido pelo crisol, pela lembrança de quando o tínhamos somente dor. O que podemos fazer quando as águias piscam à civilização desse moleque bamba? Tentar, tentar compreendê-lo em uma crônica curta.

Enfim, amigos, que estranho e magnífico poder tem a obra de arte. Quarenta e um anos depois, Paulinho da Viola, Dilma e os brasileiros voltamos a “Para um amor no Recife”:

(Blog da Boitempo)