terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Histórias

Histórias de Fazenda Nova



Publicado em 03/01/2013 por Urariano Motta*

Recife (PE) - Na vizinhança do lugar onde se encontra o maior espetáculo ao ar livre do mundo, a Paixão de Cristo de Nova Jerusalém, ouvi algumas histórias que conto agora. Esclareço logo que escreverei as mais legíveis, porque houve algumas muito acima de impublicáveis, dignas de Boccaccio pelo espírito e humor.

Esclareço ainda que estas linhas foram ouvidas e escutadas em solo profano, no quintal de uma casa de vila, acolhedora como a gente do povo do interior do Brasil. Pois bem, na tarde de 31 de dezembro de 2012, estávamos debaixo de uma árvore, no quintal da casa do seu Doca, um senhor bem humorado que vem a ser o personagem único dos relatos a seguir. Ali era servida uma buchada de bode, com cachaça envelhecida, pagas pelo comerciante Alexandre Araújo, o Xande, rico em generosidade e sorte, porque é genro de seu Doca.

A buchada de bode

Tudo era alegria, com a buchada que era um pecado mortal, quando melhorou a partir da elevação da voz de Manoel, um dos filhos de seu Doca. E Manoel fala a primeira, apontando o pai:

O véi um dia achou de caçar onça. Como ele é corajoso que só, foi com três cachorros, os amigos, espingardas, mas achou que dava mais coragem um latão de cachaça, que levava aberta no bolso. O diabo é que ele viu um vulto – ele garante que era a onça – passar ligeiro na sua frente, e o véi largou a espingarda, correu e pulou pro meio de uma árvore aberta em dois troncos, cheios de espinho na casca. Eu não sei como ele passou na brecha, mas quando chegou do outro lado, sentiu que a perna estava toda molhada, grudada na calça. O que era aquilo? Aí, com pavor de ficar sem combustível pra coragem, falou pros parceiros:

- Tomara que seja sangue.

Manoel de seu Doca é um ator natural, com talento pra contar histórias, não só pela voz como pelo corpo do pai que ele encarna quando fala. Então eu lhe pedi mais uma. E ele, depois de negacear – por timidez ou vaidade de artista quando requisitado – contou mais esta:

O véi, enxerido que só ele, paquerava a dona de uma bodega em Jataúba. Aí foi lá um dia comer sozinho um sarapatel. Eu não sei se a dona botou no prato dele o pó de tato, um veneno que quando não mata desarranja um cristão por dentro. E o véi lá, piscando o olho de cima e arrochando sarapatel no olho de baixo. Comeu, bebeu e na hora de pagar à mulher, a ela, pra pegar na mão da dona, começou a passar mal. Deu-lhe uma agonia que ele correu feito doido pro banheiro. O diabo é que chegando lá, o véi não sabia o que acudir primeiro: se o funil de cima ou se o funil de baixo. Jogou a calça no chão, e com a bunda levantada pra cima, botou a boca na privada. Olhem, a agonia era tão grande, que Doca dava jato de foguete por dois furicos. O véi esguichava pela boca e pelo anel. Quando conseguiu uma pausa, ele nem gritava, só fazia berrar:

- Arre! Valei-me meu Padim Ciço.  

Aí procurou um papel. E tinha? Aí não teve pra onde: viu pendurada uma sacola de viagem, daquelas que dizem “eu estive aqui e me lembrei de você”, e limpou o que pôde, sem se mexer muito. Ele não era doido. Mas o estrago no banheiro era tão grande, era tanta pintura de marrom nas paredes, que o véi se vestiu direitinho e saiu bem sonsinho pro balcão. Lá, com a boca sem chapa, que tinha perdido num jato, pediu uma coca. E falou pra dona:  

- ói, ói, depois faça uma limpezinha lá dentro.

E veio se escorando pelas cercas até em casa.

Foi o fim do romance. Um dia quando encontrei a dona da bodega na feira, ela me cumprimentou gritando:

- Aquilo é um véi nojento!.

Houve outras histórias com Doca, mas o espaço é pequeno. Lembro de passagem uma de quando lhe roubaram as ovelhas, e ele foi na casa do novo dono reclamar.

A prova do roubo foi chamar pelo nome a sua ovelhinha de estimação. E seu Doca chamou:

- Tieta!

Lá do meio do terreiro uma ovelhinha respondeu:

- Bé, bééé, bééé...

Nem vem ao caso lembrar as vezes em que ele perde pros filhos no dominó e num ataque de raiva joga as pedras pela janela, que vão bater no inferno. No outro dia, chega mansinho:

- Eu dou cinco pra comprar outro. Quem colabora?

Era já de noite, as histórias não acabavam, quando chegou seu Mário Bento, o aboiador. Mário é um homem que improvisa versos em canto sem acompanhamento, em melodia que vem da tradição moura, do distante Portugal. É música bonita que fala aos bois, aos homens e à terra. No fim, serviram o manjar de uma cabeça de bode. Mas eu, avisado pela história de seu Doca no banheiro, não entrei na iguaria. Na próxima, talvez eu entre.
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Urariano Motta* é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997).

Enviado por Direto da Redação

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