domingo, 13 de janeiro de 2013

Egito

A arte e a Revolução nos Caminhos do Cairo
O documentário "Caminhos do Cairo", de autoria de Alexander Brief e Johannes Roskamm, exibido durante a Mostra de Cinema sobre o Oriente Médio em São Paulo, trata do levante popular ocorrido no Egito a partir da visão de músicos jovens e veteranos da cena underground da capital do país. O filme também fala da corrupção e da perseguição religiosa, que deixa a classe artística marginalizada socialmente. O artigo é de Luciana Garcia de Oliveira.

Muitas pessoas e artistas no Egito estão furiosos, falam sobre uma nova Revolução após a derrubada de Hosni Mubarak, em janeiro de 2011. Desta vez o objetivo dos manifestantes é a derrubada do presidente recém eleito, Mohamed Morsi que, nos últimos dias, promulgou um decreto o qual confere plenos direitos à si mesmo.

Do decreto, à primeira vista, saltam aos olhos os seguintes trechos: “Todas as proclamações constitucionais do presidente egípcio desde a sua entrada na função são definitivas” (referente ao segundo item) e “nenhuma corte de justiça poderá suspender a Assembléia (câmara dos deputados) e o senado”(referente ao quinto artigo). No que tange à defesa ao bom funcionamento das instituições do Estado, após os levantes de 2011, é mencionado no documento oficial que “o presidente da República estará autorizado a tomar todas as medidas necessárias”.

Em decorrência disso, no dia 30 de novembro de 2012 houve um grande protesto contra o que pode ser denominado como sendo um “golpe islamista”. Ainda, no dia seguinte, foi a vez da manifestação dos aliados ao presidente, o levante contou com uma expressiva presença de grupos salafistas, que se reuniram em defesa de Morsi. A idéia de saírem às ruas em dias distintos seria justamente para evitar um confronto sem precedentes que, certamente teria um destino trágico, semelhante ao ocorrido no ano retrasado, com centenas de mortes.

O que não impediu uma intensificação das batalhas nas ruas do Cairo. Durante os protestos contra o presidente Mohamed Morsi houve uma ampla mobilização de milhares de pessoas, muitas inclusive ameaçaram invadir o próprio Palácio. Em contrapartida, a Irmandade Muçulmana organizou seus partidários nas ruas, o que resultou na morte de 6 pessoas e mais de 200 feridos, no dia 5 de dezembro.

Após todos esses protestos, em um tom conciliatório, o presidente manifestou-se com orgulho em poder presidir um país com uma “oposição vocal”. Segundo ele, o decreto é o único meio de poder garantir plenamente os objetivos da revolução de 2011 e a tão almejada transição democrática. Por outro lado, o presidente egípcio não contava com a posterior ameaça dos juízes convictos à boicotar a fiscalização do plebiscito do texto constitucional, numa clara tentativa de impedir a hegemonia dos que consideram como a parcela fundamentalista.

Vale a pena ressaltar que, os principais precedentes das manifestações em 2011 foram: a falta de emprego (sobretudo para os recém formados), baixos salários, restrição à liberdade de expressão e às graves denúncias de corrupção nas altas escalas do governo.

Com relação às reclamações populares, o tema da corrupção destacou-se como um tema amplamente abordado no documentário "Caminhos do Cairo", de autoria de Alexander Brief e Johannes Roskamm, projetado durante a Mostra de Cinema sobre o Oriente Médio em São Paulo, a qual apresentou uma diversidade de músicos jovens e veteranos da cena underground da cidade do Cairo que reclamavam a falta de incentivo do Ministério da Cultura egípcio. A falta de apoio estatal resulta na ausência de financiamento dos artistas em apresentações musicais e numa total escassez de espaços para apresentação.

O assunto sobre a perseguição religiosa, bastante recorrente ao levarmos em consideração que a maior parte desses artistas, entrevistados no documentário, não seguem os preceitos religiosos do islamismo, torna a classe artística bastante marginalizada socialmente, num país de maioria muçulmana.

Muito embora, em alguns depoimentos, tenham sido enfatizada a questão da união nacional diante dos levantes da chamada Primavera Árabe, foi, ao mesmo tempo admitido que uma verdadeira revolução somente seria possível tão somente quando houver uma ampla mudança na mentalidade da sociedade egípcia. O contexto dos levantes no Egito é mais complexo do que se pode imaginar, pois além de tratar-se de um país com graves índices de pobreza, não possuem organizações pelas quais qualquer revolução poderia se apoiar (sindicatos fortes e organizações estudantis). Isso contribui para que o Egito seja refém das forças armadas e de movimentos islâmicos radicalizados, capaz de inibir os comportamentos femininos.

Por outro lado, a Primavera Árabe proporcionou um maior estímulo à criatividade artística. Antes, era muito comum ouvir um repertório recheado de músicas que falam de amor e de romances sem final feliz, atualmente é cada vez mais freqüente composições musicais com uma temática que abarca a liberdade, a justiça e a dignidade. Ao pensarmos que “um país sem expressão cultural não tem identidade”, de acordo com as palavras de um pianista egípcio, a mudança no paradigma nas artes egípcias pode ser considerada essencial para uma realidade em transição.

A presença militar marcante na cena egípcia, sobretudo durante a transição política, simbolizada com a queda do ditador Hosni Mubarak, é responsável por promover um crescente processo de sectarismo na sociedade egípcia, principalmente entre os protagonistas da Primavera Árabe. Sobre esse assunto, foi mencionado em Caminhos do Cairo, acerca da manipulação social pós-levante, levando uma parcela importante da sociedade à acreditar que o levante foi “feio” e “subversivo”.

De acordo com as palavras de Edward Said, em sua obra máxima Orientalismo, existe uma tendência entre os guardiões da ordem ocidental majoritária em considerar que “o que quer que o revolucionário proclame é brutal, irracional, dominador, canceroso” (p.418). Essa premissa gerou por sua vez, em manifestações sectárias entre aqueles que antes, haviam se reunido na praça Tahrir, com objetivos comuns.

Mesmo diante de toda confusão, tantos os últimos fatos políticos como o documentário em si, procuram enfatizar que o povo egípcio nunca será mais o mesmo. Daqui pra frente será combativo no que tange à defesa de seus direitos e garantias fundamentais como a liberdade, justiça e a soberania popular. É possível constatar que hoje, o povo egípcio anda com a cabeça erguida.

(*) Integrante do Grupo de Trabalho sobre o Oriente Médio e o Mundo Muçulmano do Laboratório de Estudos sobre a Ásia da Universidade de São Paulo (LEA-USP).
(Carta Maior)

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