quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Música judaica

Do Defunto agradecido aos klezmorim, com uma paradinha no choro
Um belo teatro lotado, público jovem na expectativa de um concerto inusitado. Eu nunca tinha ouvido falar de David Grisman, a estrela da noite. Grisman era a ponta do iceberg de um movimento efervescente: a redescoberta de um tipo de música judaica típica das pequenas aldeias do leste europeu, cujos primeiros traços remontam ao século 16.

Um belo teatro lotado, público jovem na expectativa de um concerto inusitado. Eu nunca tinha ouvido falar de David Grisman, a estrela da noite. No programa, constava que, roqueiro veterano, ele já havia tocado com Jerry Garcia, líder da lendária banda Defunto Agradecido, vulgo Grateful Dead. A excitação vinha do repertório anunciado. Nada de guitarras e baixos elétricos, distorções jimihendrixianas, bateria apoplética. Grisman e seu grupo tocariam música klezmer. Eu tinha uma vaga noção do que era aquilo, canções dos meus ancestrais da Europa Oriental. Um roqueiro visitando suas raízes aldeãs. Será que podia dar samba ?

Grisman entra sozinho no palco. Pega sua mandolina elétrica e sola, por menos de três minutos, uma música que não identifiquei. Pouco importa. O impacto foi devastador. Comecei a chorar baixinho, como se aqueles acordes estivessem ali, à minha espera, atravessando oceanos e gerações.

Foi assim o concerto inteiro. Músicos extraordinários, delicados, flutuavam do melancólico ao eufórico, demolindo (meus) preconceitos e abrindo comportas inesperadas. A formação do grupo e o desenvolvimento das peças eram semelhantes ao jazz: apresentação coletiva do tema, solos e improvisos individuais, grand finale. Grisman era a ponta do iceberg de um movimento efervescente: a redescoberta de um tipo de música judaica típica das pequenas aldeias do leste europeu, cujos primeiros traços, dizem, remontam ao século 16.

Grisman, claro, não foi o único. Itzhak Perelman, violinista reverenciado em todas as grandes salas de concerto, viajou a Cracóvia, na Polônia, cidade de seu pai, junto com o grupo norte-americano Klezmatics. Lá, na quietude de um quintal multicentenário, empunhou seu intimorato Stradivarius (axé, Sérgio Porto) e, de imediato, entrou no espírito do klezmer com os Klezmatics, num improviso de arrepiar.

A música klezmer nasceu com pequenos grupos de músicos itinerantes, que, por isso, só tocavam instrumentos de pequeno porte: cordas (especialmente violino), clarinete (podia ser, também, flauta ou trompete), alguma percussão e, eventualmente, voz. Apresentavam-se em festas e, não raro, trocavam trabalho por comida. Seu repertório incluía alguma base litúrgica e o riquíssimo folclore judaico, criado na língua ídish. As zelosas mães judias, ídishe mames, aconselhavam suas filhas a se afastarem daqueles artistas mambembes. “Não têm futuro”, alertavam. A itinerância gerou um efeito capilar importante. Os músicos entravam em contato com universos sonoros variados, incorporando ritmos e formas de tocar. Ao final de algum tempo, antropofagicamente, digeriram tudo isso e criaram um gênero próprio, que não apenas sobreviveu, mas se sofisticou sem perder a pegada original (o que chamamos de ídishe tam, sabor judaico).

A partir do final do século 19, com o processo migratório para os Estados Unidos, o mercado da música klezmer rompeu a fronteira dos shteitlach (cidadezinhas com maioria judaica) europeus. Naftule Brandwein, clarinetista autodidata nascido na Galícia polonesa e que chegou nos EUA em 1908, foi um dos pioneiros e surfou a onda das primeiras gravações em 78 rpm com algum sucesso. A partir de meados da década de 1920, o klezmer entra em colapso e perde público. Durante quase meio século, fica marginalizado, relegado a guetos e festinhas. Em meados dos anos 1970, músicos norte-americanos com sólida formação técnica, muitos oriundos das rodas jazzísticas, redescobrem o patinho feio e se deslumbram.

Surgem grupos de alta qualidade, como Klezmatics, Brave Old World e Klezmer Conservatory Band, e músicos extraordinários, como os clarinetistas Andy Statman e Giora Feidman. Todos dialogam com tendências contemporâneas, sem perder a raiz. É possível ouvir temas tipicamente judaicos, canções de luta e associações poderosas com cancioneiros locais, como foi a musicalização que os Klezmatics fizeram dos versos de Woody Guthrie, o trovador dos oprimidos.

Em Berlim, é possível ouvir música klezmer todos os dias do ano. Em pubs, pequenos teatros e salas, essa música ancestral revigorada reverbera, tocada por não-judeus, no coração de um país que pariu o regime que planejou o extermínio do judaísmo europeu. Ironias da História.

Ouvindo o som dos meus avós, que novas gerações assimilam, transformam e transmitem, lembrei de um ensaio de Richard Poster, nazista anti-semita, escrito em 1850. Das Judentum in der Musik (O Judaísmo na música) é uma peça odiosa, produzida pelo antissemitismo ofídico de Wagner. Compositor genial, que revolucionou a ópera, criando uma espécie de arte integral, tinha opiniões sórdidas sobre os judeus, lamentavelmente reproduzidas por Hitler quarenta anos depois de sua morte, em 1883.

Atribuía aos judeus peculiaridades físicas repugnantes, calhordice muito comum na patologia judeofóbica, acusava-os de obsessão por dinheiro (infâmia que teorias conspiratórias, à direita e à esquerda, continuam zurrando) e, por apego às coisas materiais, de falta da paixão necessária para a criação musical. Afirma que os judeus só conseguem copiar, são usurpadores de criações de terceiros. Essa pequena coleção de asneiras maldosas, facilmente desmentíveis mesmo no século 19, hoje só podem ser levadas a sério por ignorância, má-fé, preconceito, barbarismo conceitual.

Não se pode ignorar o Wagner compositor. O ensaísta antissemita, porém, merece ir dançando para o esgoto, de braços dados com seus seguidores. Ao som de um bulgar (uma espécie de dança klezmer) animado, para aumentar o sofrimento (deles, é claro).

Teria o choro alguma coisa a ver com o klezmer ? Creio que sim. Ambos nasceram como convergência e metamorfose de influências musicais variadas, até se consolidarem como gênero próprio. Polcas, valsas e lundus alimentaram os primeiros chorões (que, por sinal, nem usavam o termo choro; preferiam tango brasileiro e corta-jaca, por exemplo). Tocar de maneira “chorosa” nem sempre foi respeitável. O desprezo tinha nome, por exemplo, de “regional”. Passou longa fase de ostracismo e, hoje, conquistou a nova geração. A Fênix chorona foi muito bem traduzida por Paulinho da Viola: Há muito tempo escuto/esse papo furado/dizendo que o choro acabou./Só se foi quando o dia clareou ...

Choro, klezmer. Expressões da alma popular. Zol zei lebn mit freilech ! Que vivam felizes !

Letras que morrem: Leio que a Llibreria Catalònia, fundada em 1924 em Barcelona, fechou as portas. O dono, Miquel Colomer, colocou um cartaz na vitrine, pouco antes do fechamento, onde agradecia as gerações de leitores que frequentaram a livraria, que não resistiu a uma drástica queda nas vendas. Diz ainda o cartaz: “Depois de ter superado uma guerra civil, um incêndio devastador e um conflito imobiliário, a histórica livraria Catalònia fechará definitivamente suas portas”. O mundo virtual, com sua pressa e suas facilidades, está eliminando o prazer de folhear um livro, de sentir seu aroma, de acariciá-lo, abraçá-lo, de descobrir uma impressão digital de alguém que já o havia lido (quem seria ?). Um livro impresso são muitas histórias. Pobre Barcelona, pobres de nós.

(*) Engenheiro químico, é militante internacionalista da esquerda judaica no Rio de Janeiro.
(Carta Maior)

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