segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Drummond

ENTREVISTA COM DRUMMOND
por Constance von Krüger em 06 de jan de 2012 às 17:59
Uma entrevista com Carlos Drummond de Andrade vinda dos céus. O que diria o poeta eterno?

Martha estava morta. A grande jornalista, à beira da porta do céu:
- Profissão, senhora. – Queria saber São Pedro.
- Jornalista. Mas gostaria de ficar na ala dos gênios.
O Santo explicava que, não que fosse burra, “longe disso”, mas Martha não era bastante genial para ficar por ali.
- Só por um tempo, fico lá por alguns séculos e... – vencera pelo cansaço.

E lá estava ela, desfilando em meio àquelas pessoas. Quase parou em Tom Jobim, bebendo o uísque que deveria ser de Vinícius. Continuou, pois viu, logo ali atrás, sentado meio de lado e com os óculos pendentes na ponta do nariz, quem ela esperava encontrar. Carlos Drummond de Andrade continuava com sua semi-careca, mas já não se podia dizer sua idade. Aliás, como todos ali, reparara Martha. Feliz de não ter mais que mentir suas primaveras, pensou que o tempo ali passava de forma diferente. Engano, o tempo não existia. Tampouco tinha noção de quanto durou o momento em que o poeta ficou apertando sua mão, trêmula e inevitavelmente enrugada.
- Seu Carlos! – e a intimidade foi bem recebida.
- Em que posso ser útil, Martha?

Estava feliz. O que não conseguira em vida, se realizava ali, diante de seus mortos olhos. Iria entrevistar seu grande ídolo e conterrâneo.
- Como foi a chegada do senhor por estas bandas?
- Quando eu morri um anjo vistoso, desses que vivem na luz, disse: “vem, Carlos, abandone esse gauche na vida”. E eu vim. Usei da amenidade que conquistei no fim da vida e me redimi.
- E o que o senhor tem feito desde então?
- “Eu preparo uma canção que faça acordar os homens e adormecer as crianças.” Ainda está por concluir.
- Diga, Drummond, a quantas anda Itabira?
-Sabe, Martha, depois de morto, tudo se vê diferente. Sobretudo porque, o que antes era um quadro doído na parede, agora é visão daqui de cima. As casas continuam entre as bananeiras e as mulheres entre as laranjeiras. Mas ninguém canta mais o amor, não há tempo para isso. Veja só, até em Itabira é difícil haver o tempo de ver a paisagem da janela. E sabe o que mais? Conhecer Teresa, aquela que amava Raimundo e que foi para o convento? Pois então, saiu de lá, arranjou dois filhos e hoje canta na noite pra se sustentar. J. Pinto Fernandes, que não havia entrado na história, entrou com tudo e hoje é um velho rico, dono de metade das lojas do centro de Belo Horizonte.
- E o Rio de Janeiro, poeta?
- Continua lindo, Martha. – E ria-se, rouco como em vida.
- Mas, Carlos, como vai a vida cá em cima?
- Não se acostuma, Martha? Aqui, não perguntamos como está a vida, mas a morte. E não pense que é triste, somos felizes. São poucos os sentimentos que atingimos daqui. Temos uma saudade que não dói, uma nostalgia saudável. Há também a felicidade e o companheirismo. Penso que só. Até a coceira da Herpes Zoster, que me tirava o sono, se foi. É bem boa a morte aqui nesta ala, Marthinha. Já não tenho mais duas mãos e o sentimento do mundo. “Eta morte besta, meu Deus.” – e gargalhava.
- Não se sente um pouco só?
- Veja, estou rodeado de pessoas. “No formigamento das grandes cidades, entre o ronco dos motores e o barulho dos pés e das vozes, o homem pode ser invadido por uma terrível solidão, que o paralisa e o priva de qualquer sentimento de fraternidade ou temor”. Cá em cima, graças a Deus, não temos dessa.
- Deus? Como é sua relação com Ele?
- Ah, Deus é um camarada. Em vida até cheguei a pensar mais profundamente sobre isso, ainda sob o trauma de ter sido criado em meio a um Catolicismo quase repressor. Elaborei sobre o misticismo. Pensei em por que o místico nunca é só... “O místico não está só, pois tem comunicação pessoal e direta com a divindade”. Cheguei a por minha fé em cheque. Hoje não penso mais, e nem as religiões aqui existem. Deus é como um compadre que de vez em quando circula e nos pergunta como estamos. Traz sempre a paz e é iluminado que só ele. Mas é simples, nada além de um amor profundo, que se traduz em felicidade. Estou plenamente tranquilo em Sua presença.
- E a paciência com os poetas mais jovens, o senhor adquiriu?
- Aqui não há mais velho e mais novo, mas continuo um pouco carrancudo se me mandam ler algo. Sobretudo quando se espera que eu louve o que foi lido. Quase sinto preguiça. Sentiria, se vivo.
- O senhor está mais paciente, até está me concedendo esta entrevista.
- Concedo, só porque os mortos não escrevem. Tudo o que eu escrevi e tudo o que você entrevistou para os vivos, foi em vida. Aqui, as conotações são outras.
- A sua poesia morreu com o senhor?
- “A poesia está viva, e sua luz, de tão fulgurante, algumas vezes torna-se incômoda” a quem está vivo.
- Quem são os melhores amigos aqui em cima?
- Todos são amados, mas gostei de reencontrar Mário de Andrade. Bandeira, como sempre, é um querido.
- Com o que se parece o seu céu?
- Ah, se parece muito com uma ilha! Sem Bíblia nem discos, mas cheia de coisas boas e de amigos que contam histórias.
- Nenhuma pedra no caminho?
- Nenhuma!
- E o José? Aquele duro, que nunca morria?
- Está vivo, para variar. Não sabe pra onde ia, eu via daqui. Ainda vive ouvindo: “E agora, José?”, e por isso odeia a lembrança que tem de mim. Mas começo a achá-lo extremamente interessante. A vida boba que levava era fachada pras suas batalhas internas. Penso em ter dó, mas ele agora já começa a achar seu rumo. E nem está mais tão sozinho, e já esboça coerência.
- O senhor está mais otimista pelo que vejo!
- Seus mortos olhos te enganam, Martha. Otimista fui em vida, de forma velada, às vezes. Hoje não posso mais ter esse sentimento, pois, seja otimista ou pessimista, espera-se o futuro. Esse futuro já não me pertence. Nada espero. Com a licença poética necessária, posso dizer que vivo a morte sem maiores pretensões.
- Não entendo, Drummond. Onde está aquele seu olhar quase irônico sobre a vida e as pessoas?
- Não percebes? Daqui vejo tudo bem mais claro, não tenho mais que sobreviver, não é? Sem precisar me defender, todos os escudos tornam-se obsoletos. Há que usar-se um só: a verdade. E não é que, depois de morto e velado, descubro que nada é tão ruim como parece, e que nossas definições são fracamente humanas, desnecessárias?
- Definições? E o senhor se considera modernista?
- Que nada, Martha, isso é coisa lá de baixo. Aqui me chamam de eterno. Há quem morra, há quem viva, há quem se eternize. “Estou nessa” – diz com ar jovial. “Como ficou chato ser moderno, agora sou eterno.”
- O senhor considera, então, que abandonou a vida, os paradigmas e o sofrimento?
- A vida aqui não há, é verdade, mas sempre sobram uns paradigmas para quebrar. Vou trabalhar nisso. “E se não estou mais na idade de sofrer é porque estou morto, e morto é a idade de não sentir mais as coisas, essas coisas?”

Martha viu o poeta entrando em outro estado de êxtase. Pediu uma foto. Estava completa. A entrevista de sua vida, em morte. Já corria para São Pedro, para dizer que podia ir para a ala dos “Jornalistas, Engenheiros, Arquitetos, profissionais liberais, escritores frustrados e gente comum”. Sua visita à ala genial estava genialmente encerrada.




constancekruger
Artigo da autoria de Constance von Krüger.
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