sábado, 12 de janeiro de 2013

Ficção

O nutrir da ficção
por Gabriel da Cruz em 23 de jan de 2012 às 16:14

Quando encontrares uma surpresa, como por exemplo, uma adolescente batendo papo com Clarice Lispector ou brincando de metafísica por causa de Fernando Pessoa, não resistas!

Achei a série Tudo o que é sólido pode derreter por acaso, na fecunda confusão do Google. Pesquisava sobre o livro Tudo que é sólido desmancha no ar de Marshall Berman. Além de descobrir que essa é uma expressão originalmente contida no Manifesto Comunista de Marx e Engels, descobri também que havia um seriado com um nome genérico. Atiçou-me a curiosidade e, já que estava no Google, fui pesquisar.

Tratava-se de um seriado concebido e dirigido por Rafael Gomes e Esmir Filho, baseado no curta-metragem homônimo de Rafael Gomes (o mesmo de Tapa na Pantera). Transmitida pela TV Cultura em 2009, a série é uma viagem ao mundo de Thereza, uma adolescente que narra suas experiências e visões sobre o mundo novo em que passa a habitar depois da morte de seu tio, Augusto. As aflições, dúvidas e incertezas típicas da adolescência são costuradas em obras literárias de língua portuguesa. A cada episódio, uma obra diferente. Muito simples: Thereza encontra na trama dos livros uma veia que parece sair de si mesma.

Não é o caso de dizer que os episódios são baseados em livros, nem que as obras literárias servem de pano de fundo para o dia-a-dia de Thereza. A história da personagem não depende das obras para acontecer, mas as obras precisam da história de Thereza. Claro que a existência da literatura é autônoma. Como em toda obra de arte, ela simplesmente existe. Mas em Tudo o que é sólido o foco está no leitor (Thereza), eis o ponto chave da série. Nela, o leitor denuncia o real da ficção.

A ideia de uma obra literária ter vida desagrada muitos leitores patológicos. Pensar que uma poesia, por exemplo, foi concebida para simplesmente ser admirada é um grande engano. Perceber a arte é fazer criá-la, dizia Octávio Paz, ou como bem diz Rodrigo S. M., “não se trata apenas de narrativa, é antes de tudo vida primária que respira, respira, respira”. Há um argumento do capitalismo de consumo que reza que tudo há de ter motivo, objetivo e alguma utilidade, inclusive na arte. Surge, logicamente, o contra-argumento que promove uma relação menos pecúnia e mais livre com o mundo. Concordo sem ressalvas. Porém, não devemos usar esse contra-argumento para argumentar a despretensão perante a arte, atitude comum hoje. Uma tela, uma canção, uma escultura, um livro, uma fotografia possuem suas motivações e alcançam de infinitas formas àqueles que os acessam. Arte não nasce para ficar parada, imóvel em prateleiras, galerias, álbuns e discos. Arte não possui lógica, mas tem utilidade (falta de utilidade na arte é uma utilidade). Não se trata da utilidade prática, como rezam os capitalistas de consumo, mas uma utilidade única, particular, um canal que vai da obra para o indivíduo, diretamente.

Esse caráter orgânico de Tudo o que é sólido pode ser visto também no filme O Clube de Leitura de Jane Austen de 2007. Nele, os personagens encontram, na leitura de Jane Austen, um eco de vida que “respira”, um fiapo de descoberta de si mesmos. Lembro-me de uma cena emblemática, na qual Prudie está parada em frente a um semáforo, prestes a entrar no carro de seu provável amante, quando aparecem as palavras no semáforo: “what-would-Jane-do”, algo como: “o que Jane faria?”. Eu permutaria: “o que a criação de Jane faria?”. Não se trata de inventar a vida em função da arte, tão pouco imitar a arte na vida. É, antes de tudo, aprender a ver a arte como vida, como produto dela. Arte é, conceitualmente, desenho do real, uma linguagem que está subordinada à vida. Como diz Lya Luft, “a vida é mais importante do que a literatura”.

Thereza, como adolescente que é, tem uma postura madura ante a literatura. Com muito mais perguntas do que respostas, ela vai tecendo o próprio cotidiano na companhia de Clarice Lispector, do diabo da Barca, de Ismália endoidada, de Camões e, é claro, de seu tio, Augusto, com o objetivo de desamarrar os nós triviais, sair de labirintos diários para, quem sabe, encontrar respostas. Mesmo que essas respostas sejam seguidas de interrogações ou reticências. Não à toa, a falta de unidade representada em Macunaíma foi um dos motins do episódio que fecha a primeira e última temporada da série.

No ano passado, Rafael Gomes lançou a versão literária da série. São mais de 450 páginas narrando a epopéia de Thereza. Estava previsto, também para o ano passado, a segunda temporada, que nunca foi exibida. Os 13 episódios da primeira temporada podem ser vistos, integralmente, no site da série.


gabrieldacruz
Artigo da autoria de Gabriel da Cruz.
Pois a delícia de sentir o cheiro de tinta fresca é a delícia de ouvir o barulho de uma parede caindo..
Saiba como fazer parte da obvious.

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