segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Gonzagão

São Luiz Gonzaga



Recife (PE) - A vida de Luiz Gonzaga é como a Bíblia. As pessoas destacam nela o que mais  lhes convém, das coisas mais magníficas às menos dignificantes, de acordo com o que veem. Escrevo a frase anterior e me pergunto: mas não será assim com a vida de toda a gente?  Tentarei ser nestas linhas  mais ponderado na montagem da pessoa no seu aniversário.

Nos cem anos de nascimento de Gonzagão, do compositor, intérprete, sanfoneiro e símbolo do Nordeste do Brasil, todas as lembranças – ou recortes – vão para o santo e magnífico. É da justiça e do caráter da efeméride. Os críticos, num esforço de imparcialidade, falam que Gonzaga é não só o melhor dentre todos os cantores de alma sertaneja, mas também é o mais importante cantor-músico-compositor que o Nordeste  criou. E me pergunto outra vez: se a crítica não fosse tão imparcial, não diria que ele é o compositor brasileiro que melhor ilustra o Brasil para todo o universo, ao falar do seu pé de serra, da sua gente bárbara, que fala não só a terras do Oiapoque ao Chuí, mas da Groenlândia à Coreia, da  Oropa à  França e Bahia?    

Vocês já veem  o quanto é difícil falar de Luiz Gonzaga com ponderação, imparcialidade e distanciamento. Já faz três noites que no norte relampeia e tento não me lembrar das terras onde um dia vivemos, sem rádio e sem notícia das rádios civilizadas. Eu queria compor um texto com a nota dissonante do papel de Gonzaga na ditadura, do seu canto de canário do rei no tempo de Médici e Castelo Branco. Mas isso vem de algo bem primário e anterior ao sentido de pátria. Essa coisa com militares descendia do tempo em que ele entrou para o Exército para comer e fugir da pobreza, ou como ele dizia, porque ali era o “colégio do pobre, o único lugar onde o pobre podia entrar para se desenvolver, para se promover”.

Sim, é verdade, ele foi um homem de política conservadora, que dizia votar em Marco Maciel e em outros políticos que foram sustentados pela ditadura. Mas que conservador tão diferente, que estranho conservador de sentimento entranhado pela gente pobre, e de tal modo que mais sensato será dizer: Luiz Gonzaga foi conservador da boca pra fora. Quero dizer, da boca para fora de tudo que não fosse o que ele cantava. Como chamar de conservador, pelo que ele era e interpretava, a um artista que se apresentava vestido de vaqueiro ou de cangaceiro, e mais importante que a roupa folclórica,  que cantou e revelou Asa Branca para todo o mundo? Esse é um hino que está mais para Canudos e bem longe do Rei, das forças da repressão e do Império. Pronto, dei a nota que me moveu para estas linhas, e agora devo falar do que dele vi e ficou no coração.       

No começo, Luiz Gonzaga foi artista sem consciência do valor da sua gente, valor comercial, bem entendido, como ele gostava de dizer, que foi despertado para o seu lugar único e original por um grupo de universitários do Ceará, que lhe pediu pra tocar música do pé de serra do Nordeste. E nunca mais parou. Para lembrá-lo, para situá-lo no devido lugar que é seu por talento e natureza, acreditem, a gente nem precisa apelar para os seus compositores genialíssimos, como Zé Dantas, Humberto Teixeira e Zé Marcolino. Basta lembrá-lo como interprete. Luiz Gonzaga possuía o dom de conversar com o público enquanto cantava, improvisando falas e flexões de voz,  como eu nunca vi em outro cantor ou compositor até hoje.  

E nem é preciso lembrar o que ele faz com a sua volta à casa paterna, ao chegar de madrugada, de volta do mundo da fama,  ao narrar o velho Januário acordando na madrugada. Não, lembro de coisa mais prosaica, indigna até das recordações hierarquizadas pela poesia.  Lembro da sua interpretação em “Apologia ao jumento”, que vi uma vez no Recife. Ele conversava de sanfona com o povo, imitando vozes do camponês e do jerico: “Seu Luíii, cumi seu mio, e como, e como, e como..”, esses últimos versos a imitar a voz de zurro do jumento; “e como, e como, e como”. Impagável a sua descrição do jumento sabido, esperto, a balançar as orelhas no milharal, como se fossem antenas de inteligência. E como, e como, e como...

O espaço acabou e não disse nada. Nem precisei falar da recriação que ele faz em Maria, a composição de Ary Barroso, aquela cujo “nome principia na palma da minha  mão”. Enfim, amigos, as enciclopédias informam que Luiz Gonzaga nasceu em Exu, em 13 de dezembro de 1912 e morreu em, não importa, porque a sua vida não tem fim. Nos seus primeiros cem anos, esta foi a minha tentativa de imparcialidade. Perdi.
(Direto da Redação)

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