quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Vazio

A vergonha do vazio - Steve Mcqueen
publicado em cinema por débora cambé | 1 comentário

Antes mesmo de ver "Vergonha", o mais recente filme de Steve McQueen, alguém me avisou: "Há mais gente assim [como Brandon, o viciado em sexo que protagoniza a história] do que parece". Quem viu a espiral descendente que é esta longa-metragem sabe que a afirmação é verdadeira.



Tic-tac-tic-tac-tic-tac. É o som que ecoa sem parar ao longo dos primeiros minutos, onde, mais do que o homem, conhecemos a sua rotina sem diálogos, feita apenas de encontros casuais, tic, de flirts, tac, de desejos que se adivinham em sorrisos comprometedores, tic, da vergonha ao pisar a linha tão facilmente, tac. Um dia a seguir ao outro. E para Brandon (Michael Fassbender) é fácil: além de obviamente atraente, tudo na sua aparência diz sofisticação, como a fachada do edifício onde vive. Mas, dentro do seu apartamento, as paredes brancas e a decoração minimalista contam-nos outra história.

No seu espaço pessoal, tal como nas suas relações, não há intimidade. Há um vazio disfarçado pelas noites de copos em bares e discotecas com os colegas de trabalho - não lhe conhecemos qualquer amigo - e pela sucessão de encontros sexuais que mantém com prostitutas ou alguma bela desconhecida que com ele se cruze. Brandon é um indivíduo permanentemente solitário. E essa condição, que originalmente lhe terá sido imposta, transformou-se num estilo de vida irremediável, que a todo o custo tenta manter para continuar a alimentar a sua obsessão pelo sexo (o que é o mesmo que falar na sua sobrevivência).

O aparecimento de Sissy (Carey Mulligan) vai colocar tudo isso em causa. Como um alarme gritante da carência emocional que os une, ela é o oposto do irmão. Frágil, dependente e altamente emocional, tenta (desesperadamente e em vão) encontrar o equilíbrio de que também ela precisa junto de Brandon. O derradeiro confronto entre ambos é uma das cenas mais poderosas de todo o filme: diante dos cartoons que passam na televisão (como se as duas personagens tivessem presente a infância longinqua que não foi plenamente vivida), ambos expõem violentamente as fraquezas um do outro, expondo-se a si mesmos; Brandon, incapaz de qualquer compaixão, rejeita a irmã e esta falha em resgatar o único pedaço de família que lhe resta. Se um luta pelo isolamento, o outro tenta reanimar um laço afectivo que o defenda da solidão.

A partir daqui - na sequência da maravilhosa cena em que Brandon corre pelas ruas de Nova Iorque durante a noite -, a câmara dirigida por McQueen nunca se coíbe de mostrar Fassbender na sua máxima exposição como actor, física e emocionalmente, numa violenta sucessão de acontecimentos que nos fazem acreditar num poço sem fundo para esta personagem, sem controlo sobre as suas decisões e envergonhada do vazio do qual não consegue libertar-se.

Nova Iorque - essa entidade sempre fria que ainda tem uma reputação a manter como terra de oportunidades - "it's up to you, New York", canta Mulligan noutro dos geniais (e longos) takes do filme - parece querer oferecer-lhe um momento de catarse, mas Brandon é uma bomba-relógio (tic-tac-tic-tac-tic-tac) que já não pode ser desactivada - ou pode?

É ambígua, a pista deixada por McQueen. O realizador só não deixa dúvidas em relação ao seguinte: com um elenco absolutamente irrepreensível e em topo de forma, um argumento consistente, uma cinematografia brilhante e uma banda sonora contagiante, este filme é um dos melhores de 2011.


Sobre a autora: débora cambé; Nunca foi nerd, mas gostava de o ser. Mesmo assim, acredita ser capaz de dar um ou outro bitaite sobre uma série de assuntos relativamente interessantes. Saiba como fazer parte da obvious.

Leia mais: http://obviousmag.org/archives/2012/05/a_vergonha_do_vazio_-_steve_mcqueen.html#ixzz2HDhFbaJD

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