sábado, 19 de janeiro de 2013

'Você já n é + perfeita...' - Um texto meu (parte 1)

“Você já não é mais perfeita?

                           ...não...naquela época, foi em início de 70, creio, eu brincava de ilusão, brincava de medo e por de sol, de acasos e

    sentimentos novos ou inexistentes (como a luxúria, o peculato,   por
     exemplo)eu brincava...sei brincar...era uma loucura...eu estava alheada,

    pequenina...voava um pouco sobre as pontes e edifícios e precipícios cor de ananás....gostava dos quartos crescentes alheios....

    (eu tinha uma bela cruz no peito, sei)...e  alimentava-me de abóboras e araçás (pois eu vivia

    ubiquamente, lembra?)...soluçava algumas vezes, é   verdade, clandestinamente, e olhava às escondidas (canto dos olhos...)   para um saco de pipocas vazio...

                           Sem sal?

                           Sem sal. E c odor fétido. Os meus dentes eram perfeitos e caros e raros (um jade da Namíbia, acho), eu   sei...vez ou outra, lembro, eu me escondia atrás de um   armário    furta-cor, anônima (pois tinha medo do guarda

    noturno e do capataz misterioso ‘daquela’ fazenda....)...comia-me e renascia no dia seguinte, antes

    do café da manhã, por volta das 05:37 hs, já cansada, com olheiras (pois eu   também tinha olhos de ressaca, uma ressaca traumática)...mas sem   fome (era uma anorexia poética, explicavam-me)...transcendia-me, pode acreditar...com   dificuldade, lágrimas de anilina nos olhos, mas transcendia-me...

                           Era feliz?

                           Vc era?

                           Eu vivia...portanto...mas à noite, principalmente

    quando chovia (e não havia ‘aqueles’
     famosos jogos de

    futebol pela madrugada...aliás nunca há) ...pois bem...quando chovia

    eu era feliz...a água escorria pelo rosto, fluida, eu

    ria e chorava, alegre...era bonito...um dia eu fui
     ser

    mãe...

                           Engravidou?

                           Não...eu fui mãe...poderia ter vomitado, claro, mas  escolhi ser mãe...

                           Doeu?

                           Eu era perfeita, lembra? Eu tinha minhas tragédias, alegorias e vislumbres, lógico, um sentimento dúbio e imperfeito de arco-íris e poentes diversos...mas amadureci muito: num período

    de 12 meses fui mãe 2 ou 3 vezes...sempre às noites...(minhas longas madrugadas)foi

    bom...

                           gozou?

                           N, a luz do sol, os meninotes, o baleiro  e os semáforos me impediam ....as baianas me ofereciam acarajés e quitutes diversos...mas a penetração me dava um prazer estranho...sentia-me como mulher, claro, ao ser penetrada...feminina...muito feminina... sem nacionalidade ou ideologia, lógico (‘só  os insanos agüentam as idéias’...)    

     

     e as axilas ardiam e queimavam...sentia umas cócegas deliciosas no sexo e no ânus, um odor discreto de deja vu...uma ânsia de me querer superar, ser + q eu...

                           mas vc n era   contra o sexo?

                           À tarde...mas a fascinação perdura...a gordura atravessa as entranhas...perco-me...mas o desejo animal permanece, claro...

                           ...

                           ...eu era àquela época, uma metáfora barata e asquerosa do    ser  humano...barata e em 2 únicas dimensões (era   esverdeada, não é? Ou incolor?)...foi duro...eu sofria muito, pode  crer, pois nunca desejara realmente ser gente, ser ser humano,

    pior: uma metáfora!...as vezes, geralmente depois de  cada almoço ou desjejum, sentia-me onipotente e estranhamente bela

    e insensível...um pouco ubíqua (lembra Antígona? Lembra   Ésquilo?), é certo...mas só

    quando bebia suco, geralmente de açaí ...

                           ...

                           ...tornava-me, nesses momentos, poderosa e   soberana...soberana sobre a vida, sobre os objetos,  sobre tudo...mas, engraçado, continuava linda e   inacessível, ilhada numa redoma de plástico, erigida duramente por mim mesma (foram anos de trabalho duro....)...seria intocada e inalcançável,

    talvez...triste e solitária...como sempre...

                           e Deus?

                           Meu Deus continua um Deus carente e desesperado, ávido de suicídio, mesmo sabendo q n pode concretizá-lo (pois n é facultado aos Deuses o suicídio...)

                             vc ainda é a favor do estupro?

                           Desde q seja antes do almoço, tudo bem....e ao som de Mozart...

                           Almoçou hoje?

    Agorinha...legumes...nabos...não quis a Rapadura ou a couve-flor ou a berinjela...hoje eu comi...ontem...

                           Ontem?

                         
     ...ontem foi quarta ou quinta feira?...ontem não comi nada...ontem anoiteceu e esverdeou...lembro bem...(só depois madrugou e fez-se silêncio...)quando  anoitece meus calos doem, minhas juntas lembram tio José q faleceu as vésperas de seu nascimento...já quando amanhece eu sinto  falta de ar, falta de ar e vontade de rir da vida, de tudo...por volta das 10 e 30 sinto cãibras...às 10 e 37 escureço totalmente, às 10: 39 eu descanso sob um edredom  e  as 12 e 45 horas eu soluço (é quando visito as altas  montanhas)...a tarde eu volto a descansar...fico exausta... mas hoje faz sol,  não é?...sol é bom...sem infelicidade...ah! toda sexta feira é ensolarada e feliz e   eu olho para o mundo...daí eu fico quieta...geralmente

    ouço apenas silêncio...outro dia telefonei para o

    mundo...ninguém atendeu...

                           E as chuvas?

                           Longínquas....

                         
     ...uma vontade de chorar...ah! estou com sede...

    Beba um copo d’água.

                           ...boa idéia...

    Você ainda assobia durante o sexo?

                           ...lembra?...foi há muitos anos, não   é?...hoje eu  cantarolo...canções de guerra, Casablanca...cigarras ao fundo...meu   prazer tinha sabor de hortelã (as vezes de canela)...hoje eu não sei...hoje  apenas suspiro, um suspiro insone e infeliz...quando não engasgo, claro...pois o   momento é solene...e a minha libido, você sabe, é um   destino desatinado...(dizem q libido, razão e amor são equivalentes...verdade?)
    

    Afinal porquê você é contra o espartilho?

                           ...não sei...questão de gosto...(discordo tb das futilidades; e nunca fui imberbe)...eu, por exemplo,   não sei noivar...não sei acontecer...não sei cochilar sob um pé de árvore no outono...eu odeio os araçás...odeio ovos mexidos...tudo bem, é a  vida...ontem ouvi
     bossa nova durante 2 horas, depois   fui dormir c o som de castanholas....enfim, eu tenho seios e odeio presilhas, concordo...e daí?

    Mas há dias você insistia, nervosa,  que era   viúva e transitória...alegava seu desprezo pelos anjos e serafins...

                           ...foi...curioso, suportei bem, resisti, estou viva...mas arde   um pouco ao fim de uma tarde puxada...eu era   inexperiente, todos sabem...e ainda n sabia manejar arados ou lidar c bois e vaquejadas...e ainda amava o vaqueiro Alessandro...

                           Dizem que é azedo...

                           Os bois? Ou a vaquejada? Ou Alessandro?

                           N, o viver....

                           ...não...é salgado...com certeza...alguns dizem que é insalubre, mas tudo bem...

                           Você não é azeda?        

                           ...sou?

                           E o mistério?

                           ...escondi bem guardado...quem sabe amanhã...existe   aquele velho baú lá no porão, não é?...e a arca do   titio...(mas houve um tempo em que eu gostava de   pensar; pensar e falar bem alto,   gritando palavras   desconexas, como tatibitate; hoje, depois de longas refeições, reflito, olho o   horizonte ao fundo, respiro 2 vezes e continuo sentindo angústia,   angústia e as vezes uma terrível coceira gostosa no   dedão do pé direito, sobretudo depois de aplausos   demorados)...por vezes sinto-me um pouco estranha, é  quando chove perto de minha orelha  esquerda ou quando   neva atrás de minha fronte... 

                           Sofrimentos?

                           Inúmeros! Dois ou três, os mais diletos, dentro do  bolso do avental (uma vez um deles, o mais

    angustiante, sujou de gordura...) e ao dormir punha-os   num copo d’água sobre a cômoda...ali estavam  seguros...mas um dia eles sumiram!...fiquei  aterrorizada...mas estavam sob o travesseiro...

                           Abandonou a ambigüidade?

                           Temporariamente...estou cansada e velha...antes eu tinha  umas 2 ou 3 certezas no máximo...tinha a alegria e a  dúvida...por outro lado, a melancolia me  fascinava (eu ainda n era existencialista)...às vezes ficava horas e horas vendo meu  irmão, coitado, cultivando suas melancolias...hoje...

                           ...hoje...

                           ...engraçado...vivendo algumas vidas emprestadas eu  até poderia ser feliz...uma vez, creio que há 2 anos, fui ser feliz consultando às escuras videntes e cartomantes russas...douta vez eu era um cisne solteiro e   esfomeado e solitário no Egito (esfomeado, mas  feliz)...hoje...minhas madrugadas de sábado...

                           ...

                           ...é quando tomo aulas de felicidade...por volta de  00:35, 2 horas...um austríaco que toca acordeão e bandolim...

                         
     ...

                           ...é...ele sobrevive ensinando pequenas coisas,  ‘truques’, como ele diz...ternura, melancolia,  afagos...ah! ele também faz palestras sobre  nulidades e misérias alheias...há 3 anos escreveu uma tese de como  demonstrar   felicidade em dias chuvosos...ele também se orgulha de controlar o vento com o pigarro...mas ele, incrível, n é triste...

                           Ele chora?

                           Quando bebe café fraco e sem leite...ou então   quando sussurra a palavra ‘fátuo’...às vezes também   chora quando vê o amanhecer...ele já foi um grande   ator de cinema há 15 anos...cinema mudo...

                           A que horas ele vive?

                            O coitado prefere existir   apenas as segundas-feiras, de
     preferência as tardes,   antes do lanche, tomando sua caipirinha...aos sábados   ele tem suas aulas, é de lei...afora esses 2 dias ele   simplesmente anula-se em seu quartinho de Paris, longe   de gatos e corvos, de que ele tem pavor...lá ele   desaparece com sua caipirinha, deixando a sombra de  seu corpo cuidadosamente apoiada sobre a maçaneta da   porta...de resto, ele, ao contrário do que os ciganos  sussurram, não guarda mágoa de ninguém...é um bom  homem, gente boa...exceto...

                           Hum?

                           Ele sonha. Infelizmente acostumou-se a sonhar e  não  consegue parar: um sonho depois do outro...até   cansar...e quando ele sonha o infeliz escarnece os  anjos e desobedece todos os
     ditames...

                           Ditames?

                           ...nós criamos nossas regras e normas...o nosso próprio  universo...mas ainda existem os velhos preceitos,  claro...sobre cochichar e soluçar sem nunca  sentir  medo, por exemplo...como pintar quadros em noites de   nostalgia...como sorrir após uma noite de  insônia...como usar gravata lilás aos   domingos....salivar sem sentir angústia...ou então  como demonstrar desatenção, óbvio...o fato é que tudo  está implícito...aceita uma xícara de  chá?

                           Obrigado.

                           Chá é bom. A eternidade também...(eu já fui obscura em 67, lembra? E em 70 aprendi a mentir...)Ah! vamos brincar    de viver como antigamente? Você é o homem, eu a  mulher...

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