domingo, 30 de setembro de 2012

M. Lobato

O que está, realmente, por trás da perseguição à memória e à obra de Monteiro Lobato? Inventam-se formas de fazer publicidade do racismo contra brasileiros. Uma lástima. Pior, um arranjo que envolve uma instituição que tem como finalidade a luta pela extinção do racismo, sendo uma delas uma Secretaria do Governo, todos sustentados pelos impostos pagos pelos pobres, e negros. Pergunta-se, ainda uma vez, por que essas instituições não promovem ações contra o Estado e seu racismo institucionalizado? Um jovem servidor público negro perdeu seu emprego por ter ofendido um Ministro do Judiciário com sua presença, quando à espera do uso de um caixa eletrônico. Alguma instituição decidiu processar o Ministro? Na Líbia, cidadãos negros estão sendo mortos e perseguidos por nazi-sionistas internacionais e não conheço nenhuma manifestação das instituições contra o genocídio organizado em defesa de uma raça. José Bento Monteiro Lobato Os livros escolares, secularmente, adestram as crianças para o racismo e preconceito, elogiando heróis-genocidas e mantendo na ignorância das revoluções da resistência, negando conhecimento da vida e obra de nossos heróis nacionais, índios, negros e mestiços. O que está, realmente, por trás da perseguição à memória e à obra de Monteiro Lobato? Nas DEZENAS de obras nas quais a criança, o jovem e o adulto têm a possibilidade de conhecer a mitologia, a filosofia dos povos, as lendas, a história e o folclore nacional, a ciência, a antropologia, enfim, a todo o leitor poderá abrir as portas ao conhecimento e, portanto, à liberdade que a verdadeira cultura promove. As Instituições são remuneradas para lutar contra o racismo, ao desconhecer a obra, limitam-se a cumprir as ordens da estrutura racista de poder, no qual, a premissa é manter o brasileiro na ignorância do trabalho desenvolvido por seus irmãos, seus iguais, seus heróis nacionais e, no caso de Monteiro Lobato, um gênio da literatura mundial, gerado em terras brasileiras. Uma prova da perseguição e condenação das obras de Monteiro Lobato. O precioso livro “A ONDA VERDE O PRESIDENTE NEGRO” não é citado, aliás, esconde-se esta obra como o mapa de um tesouro. Algumas frases encontradas no livro explicam a condenação dos capitães do mato a serviço da institucionalização do racismo: No conteúdo da ONDA VERDE, Monteiro Lobato analisa e destrói toda a fantasia da exploração das terras paulistas, um grito em favor da natureza e da verdade, jamais citado pelos autodenominados verdes: A região era todo um mataréu virgem de majestosa beleza. Rasgara-o a facão o bandeirante antigo, por meio de picadas; o bandeirante moderno, machado ao ombro e facho incendiário na mão, vinha agora, não penetrá-lo, mas destruí-lo. Desfez em decênios a obra prima que a natureza vinha compondo desde a infância da terra. Nada mais soberbo – e nada desculpa tanto o orgulho paulista – do que o mar de cafeeiros em linha, postos em substituição da floresta nativa. Nada lhe detém a ofensiva irresistível... nem a mentalidade altista, loucamente esbanjadora, do fazendeiro. A propriedade, cria-se hoje, como outrora, pela conquista do mais forte, pela espoliação levada a cabo pelo mais audacioso, pelo mais despido de escrúpulos. Mas surge o grileiro e tudo se transforma... terras legitimamente, legalmente “apropriadas”. Ao partir para o sertão ele deixou em casa, na gaveta, os escrúpulos da consciência. Vem firme, vem “feito” como um gavião. Opera as maiores falcatruas; fabrica firmas, papéis, selos; falsifica rios e montanhas; falsifica árvores e marcos; falsifica juízes e cartórios; falsifica o fiel da balança de Temis; falsifica o céu, a terra as águas; falsifica Deus e o Diabo. Mas vence. E por arte dessa obra-prima de malabarismo, espoliando posseiros ou donos, sempre firmados na gazua da lei, os grileiros expelem das terras, num estupendo parigato, todos os “barbas ralas” que ali vivem parasitariamente, tentando resistir ao arranque da civilização.” Responde o café: - Minha forme está acima da moral, e eu só conheço as leis do meu apetite. Ora, se mudarmos os cafezais por plantações de soja, milho e algodão transgênicos, o assunto é o mesmo, o grilo foi transformado em agronegócio e a falsificação depende ainda dos negócios da instituição dentro do Congresso e nas lutas perdidas por tradição nos tribunais dos latifúndios. Na mesma obra, ao tentar explicitar os mecanismos do GRILO, Monteiro Lobato afirma que o grilo é o “viveiro onde se fermenta a aristocracia dinheirosa de amanhã.” As velhas fidalguias da Europa entrocam no banditismo dos cruzados. Ter na linhagem um facínora encoscorado de ferro, que saqueou, queimou, violou, matou à larga no Oriente, é o maior padrão de glória de um marquês na França. Ter entre os avós um grileiro de hoje vai ser o orgulho supremo dos nossos milionários futuros. Matarás, roubarás, são os mandamentos de alto bordo do decálogo humano, eternos e irredutíveis... GRILO É UMA PROPRIEDADE TERRITORIAL legalizada por meio de um título falso; grileiro é o advogado ou “águia” qualquer manipulador de grilos; terras “grilentas” ou “engriladas”, as que têm maromba de alquimia forense no título. O grileiro é um alquimista. Envelhece papéis. Não há exagero no cálculo de três milhões, sabendo-se que há grilos de 200, 300 e 400 mil alqueires – territórios equivalentes à metade da Bélgica, quase a Saxônia, e tamanhos como antigos ducados e principados alemães. ... Jeca Tatu aprenderá nela a perdoar com generosidade o erro dos fracos e a punir com dureza o crime dos fortes. E aprenderá ainda a mover-se, a correr, a nadar, a ser homem com H maiúsculo em todas as situações da vida. O Brasil de amanhã não se elabora, pois, aqui. Vem em películas de Los Angeles, enlatado como goiabada. E a denominação yankee vai se operando de maneira agradável, sem que o assimilado o perceba. O Presidente Negro Nesta obra, que mereceria um simpósio para discussão, Monteiro Lobato mistura conhecimento científico, a política eugenista dos americanos, exportada à América Latina, e a vitória sempre anunciada da raça branca contra uma população negra cujos cérebros perderam a capacidade do pensamento individual e solidário. E como a denúncia de racismo contra a memória de um dos maiores brasileiros, tem por desculpa educação, verifique-se que o ano da ficção é 2228, todavia, a política da escola hospício continua em todos os continentes e tem a pretensão da imortalidade. A criança tinha na América de 2228 uma importância capital. Toda a vida do país girava-lhe em torno. Era a criança, além do encanto do presente, o futuro plasmável como a cera. Os maiores gênios da raça se consagravam a estudá-la, para com tão dúctil matéria prima ir esculpindo a obra única que apaixonava o americano – o Amanhã... Sua Majestade Baby era o Luiz 14 do século. ... A raça branca, afeita à guerra como a última ratio da sua majestade, desviava-se da velha trilha e impunha um manso ponto final étnico ao grupo que a ajudara a criar a América, mas com o qual não mais podia viver em comum. Tinha-o como obstáculo ao ideal da Super-Civilização ariana que naquele território começava a desabrochar, e, pois não iria render-se a fraquezas de sentimento. A raça ferida na fonte vital pendeu sobre o peito a cabeça como a planta a que opodador estrangula a circulação da seiva. Ia passar. Estéril como a pedra, iria extinguir-se num crepúsculo indolor, mas de trágica melancolia. E passou... Monteiro Lobato, um Gênio Monteiro Lobato é um gênio que está além de quaisquer acordos judiciais. Nem os denunciantes – que evidentemente desconhecem sua obra- tampouco os julga-dores que, na origem, pertencem à tradicional aristocracia ariana nascida do engodo e da ignorância, têm direito, cultura ou competência para julgar sua obra. As verdades ali contidas não podem ser aprisionadas em tempos processuais, tampouco em políticas de alienação das massas, ou suas palavras podem ser manipuladas fora do tempo e do contexto. Esse processo contra sua memória nada mais é do que uma das facetas do arianismo psicopata que têm como finalidade manter essa artificial supremacia branca, tão nefasta ao afastar os brasileiros do espírito de solidariedade, sob a fachada do racismo, como se nada mais houvesse a fazer do que macular a honra de um sábio brasileiro que, por sua obra, denúncia com seu silêncio iluminador, os atores desse circo montado como seres imbecilizados e imbeciliza-dores. Monteiro Lobato está além, muito além do Sítio do Pica-pau Amarelo. A moto-serra-caneta tenta derrubar sua árvore do conhecimento, mas Lobato sobrevive apesar da perseguição dos capitães do mato de todas as raças, de todos os matizes e de todas as instituições. Postado por Castor Filho às 14:36:00 (Rede Castor)

Revolta da Chibata

Revolta da Chibata Posted: 25 Nov 2010 11:01 PM PST Marco Morel: Mestre-Sala dos Mares Nos idos de 1957, o jornalista Edmar Morel (1912-89) foi até o cais da Praça 15, no Rio de Janeiro, onde lhe garantiram que acharia o ex-marujo João Cândido Felisberto (1880-1969), que, em 1910, ficara conhecido como "Almirante Negro" ao liderar a rebelião contra os castigos corporais na Marinha. Por Marco Morel* O encontro modificou a vida de ambos e gerou a escrita de um capítulo então obscuro da história do Brasil: a Revolta da Chibata, título que Morel criou para seu livro (no qual teve a colaboração do personagem principal) e que batizaria, a partir dali, o movimento. João Cândido carregava cestos de peixe na beira da baía de Guanabara, palco da inédita rebelião na qual ele comandara, entre 22 e 27/11/1910, poderosa esquadra de guerra: vivia em situação de pobreza e dificuldades, nas periferias. Edmar, repórter e escritor, tinha o nome nas manchetes dos principais jornais desde os anos 1940, em matérias combativas e denúncias de grande repercussão. Nacionalista de esquerda e democrata, era "companheiro de viagem" do Partido Comunista do Brasil (PCB). Surgiu entre o marinheiro e o jornalista cumplicidade, logo transformada em amizade. João Cândido considerou "A Revolta da Chibata" (lançado em 1959, já está na quinta edição, pela Paz e Terra), o livro, como "minha história" e literalmente assinou embaixo, participando de sessões de autógrafos. A convivência de ambos teve episódios sugestivos. No lançamento da 2ª edição, em 1963, autor e personagem compartilharam estande no Festival do Escritor (antecessor da Bienal do Livro). O velho marujo, calejado de perseguições e da luta contra o açoite, foi cumprimentado por Jorge Amado, Rubem Braga, Clarice Lispector, Vinicius de Moraes, Manuel Bandeira e outros. Ao fim da sessão, não havia mais transporte para a Baixada Fluminense, onde morava o "Almirante Negro", numa rua sem calçamento, esgoto e luz elétrica. Morel foi hospedá-lo num hotel no centro. Tentarem 12 estabelecimentos; os recepcionistas de plantão, após olharem a figura simples e altaneira de João Cândido, repetiam: "Não há vagas". Racismo aberto e não declarado. Finalmente, conseguiu abrigo no Hotel Globo, na rua do Riachuelo, na Lapa. Nos dias do golpe civil-militar de 1964, ao saber que Morel tivera os direitos políticos cassados, João Cândido, preocupado, foi até sua casa: "Teria sido por causa do livro?". O jornalista brincou: "Um a mais não faz diferença. Vamos tomar um uísque?". E o marujo retrucou: "Não posso, o fígado não deixa. Tem suco de maracujá?". Quando João Cândido faleceu, eu tinha 9 anos. Meu avô Edmar contou que me levara duas vezes à casa dele, mas não me lembro. Pelo que li e ouvi de meu avô, pelo que converso com Adalberto Cândido, Candinho, filho caçula, hoje com 72 anos, formei uma imagem do comandante escolhido pelos 2.300 marinheiros rebeldes no episódio ocorrido 22 anos após a Abolição oficial da escravidão. João Cândido possuía aparência modesta, mas altiva. Alto, esguio, enérgico -vestia-se de maneira aprumada e sóbria. Em casa, ficava de tamancos e roupas confortáveis. Era um herói da plebe e vivia entre os pobres, sem intimidar-se diante dos poderosos ou dos letrados. O hábito de leitura impregnava seu cotidiano. Polido, reservado, recolhia-se quando não conhecia ou confiava no interlocutor. Mas, se o verbo fluía, a memória transbordava em detalhes precisos. Sisudo, há poucas fotos suas sorrindo, mas era bem-humorado: às vezes, escapava um sorriso discreto do rosto vincado de anos e sofrimentos. Não expressava ódio ou ressentimento, compreensíveis num guerreiro com suas experiências. A face angulosa, nitidamente esculpida, apresentava um toque cândido. Tinha a dignidade de um mestre-sala dos mares. *Marco Morel é doutor em história pela Universidade de Paris I, jornalista, professor do Departamento de História da Uerj e neto de Edmar Morel. (vermelho.org)

Poesia

Quintana Posted: 27 Nov 2010 08:50 PM PST Eu escrevi um poema triste Eu escrevi um poema triste E belo, apenas da sua tristeza. Não vem de ti essa tristeza Mas das mudanças do Tempo, Que ora nos traz esperanças Ora nos dá incerteza... Nem importa, ao velho Tempo, Que sejas fiel ou infiel... Eu fico, junto à correnteza, Olhando as horas tão breves... E das cartas que me escreves Faço barcos de papel! Mario Quintana (1904-1996) (Poemblog)

sábado, 29 de setembro de 2012

Soledad

Exército fraudou a notícia do massacre Recife (PE) - Em plena democracia, nós lemos os jornais e continuamos desinformados, pois as autênticas notícias desaparecem do conhecimento público. O leitor faça um teste, que mais de uma vez sem pretensão de analista, pratiquei. Vá, esteja presente a um grande acontecimento político. Depois compare o que você viu, o mais importante e escandaloso fato que você presenciou, com a notícia que aparecerá nos jornais e na televisão. Verá um absurdo de versões, e de tamanha diferença, que você vai se falar o maior absurdo: se os jornais falam a verdade, então eu nunca estive onde pensei estar. Na última semana, a manchete que os jornais não deram e se dirá mais adiante, vem deste magnífico momento do depoimento do ex-major Ferreira à Comissão Estadual da Verdade. Depois de um breve histórico, em que os repórteres situariam os antecedentes criminais do ex-major Ferreira, famoso anticomunista, suspeito de envolvimento nos assassinatos do Padre Henrique e do procurador Pedro Jorge, os jornalistas registrariam esta ótimo diálogo entre o cientista político Manoel Moraes , da Comissão Estadual da Verdade, e o ex-major. Que houve e se revela agora nesta coluna: Ex-major Ferreira – Na ditadura, o Exército brasileiro forjou aquela cena dos mortos da granja São Bento. As pessoas foram presas em locais diferentes e mortas. Juntaram os corpos na Granja pra justificar a ação, pra simular um confronto. Manoel Moraes – Por quê, senhor Ferreira? Ex-major – Pra não dizerem que foram eliminados individualmente. Juntando todos, forjaram o confronto. Aí virou troca de tiros em uma célula terrorista. Manoel Moraes – Mas por que o Exército forjou isso? Ex-major – Com medo da opinião pública. Manoel Moraes – Mas por que o Exército, tão forte, ia ter medo da opinião pública? Ex-major – Quem não tem, doutor? Na literatura, essa farsa da granja eu já havia antecipado em "Soledad no Recife". Um dia fui questionado, de onde eu havia tirado que os assassinatos não se haviam dado na Granja de São Bento? Na ocasião, respondi com argumentos lógicos e de pesquisa, mas não poderia dizer que a intuição era a maior força para revelar que a granja era só cenário. Nas páginas do livro “Soledad no Recife” escrevi: “As notícias dos jornais disseram e continuarão a dizer, pois a cumplicidade com um crime é permanente, que Soledad e companheiros foram mortos em 8 de janeiro de 1973. Mas em uma ditadura nem as datas dos jornais são verdadeiras. Por exemplo, Soledad morreu em 7 de janeiro. A vida de Soledad ganhou mais um dia apenas nos tipos impressos das folhas. As indicações são de que repressão e imprensa fizeram um acordo entre as datas dos seis assassinatos de socialistas no Recife, da primeira à última execução em 8 de janeiro. É claro, nada houve como nas manchetes dos jornais de todo o Brasil, ‘seis terroristas mortos em tiroteio’. O horror que vem da verdade é tamanho, que a mentira se acomodou fácil na mais confortável versão. Foram seis homicídios, todos unidos e simplificados em um aparelho da Chácara São Bento, um sítio na região metropolitana do Recife. Todos, pelo anúncio dos jornais, perigosos terroristas, que resistiram à bala ao cerco das forças da ordem. Mas só depois de mortos se fez a maquiagem nos jovens socialistas: com tiros, para melhor coerência do suplício com o papel dos jornais. Pauline Reichstul, José Manuel, Soledad Barret, Evaldo Ferreira, Jarbas Pereira, Eudaldo Gomes”. O diabo é que, em plena democracia, o mais importante continua a não ser notícia. Se não ocultam mais os crimes como antes, desta vez a ignorância histórica dá as mãos à ideologia do dono do veículo. A manchete, que não veio, porque o diálogo acima não virou notícia, teria sido: “Exército fraudou provas do massacre da granja São Bento”. Em compensação, esta semana, entrevistado na Rádio Jornal do Recife, o ex-major se transformou em analista político da Comissão da Verdade: “A Comissão da Verdade de Pernambuco é cópia de outras que existem por aí. É cópia de Brasília e repete o mesmo erro. Deviam ouvir os dois lados. Olhem a diferença. O amaldiçoado padre Alípio, da bomba de Guararapes, recebeu quase dois milhões de reais de indenização, enquanto nós....”. O ex-major, atirador de elite, não foi sequer perguntado se nunca atirara em gente. Comenta-se que ele fazia piada ao contar que em cercos a aparelhos de “terroristas”, os jovens saíam rolando pelo chão "imitando filme de caubói". Era engraçado. Ele nunca errou um tiro. (Direto da Redação - Urariano Mota)

S. Paulo

Toda a lucidez que habita São Paulo Posted: 28 Sep 2012 03:18 PM PDT alt Fotografia: Raimundo Neto 1. Fragmento de céu e concreto Vivo preso ao conforto habituado de uma cidade do interior. Sempre pensei estar a salvo do mundo, o mundo de verdade: os movimentos de progresso embalados pelo capitalismo, o pouco verde das grandes metrópoles, a alegria colorida das pessoas sem tempo. Na Cidade Pequena não há trânsito; a fumaça que se mistura a nuvens encorpadas vem dos fornos de duas padarias centrais e de uma rica vegetação queimada para receber a pouca chuva que cairá, um dia. A poluição que existe é apenas o som do diz-que-diz frustrado de quem não sabe viver a vida. Quando estive em São Paulo, comecei a entender que existia, no meu vulnerável presente, uma farsa. A bruma da vida bucólica e acomodada se dissipava e comecei a entender a velocidade do mundo, a dinâmica arriscada da verdade entusiasmada que a percorre. Existe uma singular diferença entre a felicidade pastoril a qual me habituei e a algazarra metropolitana dos grandes centros: o tédio. A vida quieta e sussurrada que ocupo, hoje, é, na verdade, a mais pura e descarada acomodação. Sabe-se exatamente o que acontecerá no amanhã; o tédio cria raízes em sua capacidade de desvencilhar-se da repetição. Em São Paulo, no entanto, os galhos do fastio até brotam, mas são constantemente podados, controlados. Adquiri novas distâncias, processos irreversíveis. São Paulo começou a pesar dentro de mim. Eu era, a cada minuto, sugado por uma dolorida realidade; tudo que eu entendia sobre viver foi soterrado pelas novas impressões que se edificaram em mim. As horas dão saltos em São Paulo; entre os pulos das horas, uma suspensão gloriosa da existência; é quando se percebe que os dedos congelaram, a boca transformou-se em deserto, e os planos para o presente cresceram. Um código difícil prende-se às formas retas e à arquitetura triunfante de São Paulo. Não chega a ser um mistério indissolúvel; se deixarmos a alma escapar pelos olhos, ela pousará nas paisagens sólidas que nos cercam, abraçará a ideia iluminada de que nem tudo é transitório, e conseguiremos receber as informações possíveis para compreender a cidade: os sonhos são indestrutíveis; finitos, mas indestrutíveis. Dava para sentir o peso das coisas olhando, ali, de fora. Eu quis que todos os trajetos fossem feitos a pé. Passos ensaiados, com calma, ao enfrentar a pressa implacável dos transeuntes. Dei passos largos com as pernas cambaleantes de meus olhos curiosos. Porque possuo passos largos dentro de algo maior que eu. Falei isso em uma oração de boca fechada, murmurante; torcia para que as pessoas que não me entendiam soubessem esperar. Eu poderia repetir o mesmo percurso o dia inteiro. Contei os passos com o piscar os olhos. Queria ter todos os detalhes presos na alma em quadros bem registrados. Minha alma fotografaria o inquieto e permanente despertar de São Paulo. A maioria das pessoas que conheço, e que esteve em São Paulo, informa os riscos de fixar residência. Que qualquer fantasia se despedaçará com o tempo. Fiquei impressionado com tantas pessoas investindo na permanência, correndo para solucionar o enigma do dia imediato. É como se a imprudência fosse a marcar maior e tola de quem optou por São Paulo. Por que tantas pessoas investiriam naquele sonho? O que tem em São Paulo que não as deixa partir? Talvez haja mesmo um mistério insolúvel grudado dentro das pessoas que só sabem querer muitas coisas da vida. Talvez o paulista (e todos os que ali se familiarizaram) trabalhe tanto para dirimir a culpa que sente por ter deixado outros sonhos para trás. Talvez sejam apenas sonhos concretos. Ou menos duros que tudo aquilo. É tudo enorme e intenso para se experimentar em pouco tempo. A solidez das coisas que passavam me atingiu aos poucos. Blocos de realidade foram sendo atirados no fundo da consciência, alicerçando um desespero claustrofóbico. A rapidez de tudo deixava uma impressão permanente, uma marca em alto-relevo. A cada passo a vida se alargava, e eu sentia que precisaria correr para não sucumbir ao medo de não conseguir ser o que sempre me desagradou: comodamente medíocre e pateticamente limitado. São Paulo não precisa tocar você com suas grandes mãos de monstro vaidoso que necessita ser reconhecido em sua enormidade. Ela apenas bate palmas para que você preste atenção ao que ela oferece; um sinal de aprovação festiva: Experimente. Ela permite-lhe algumas revelações destemperadas. Gosto, sim, da parte quieta do mundo, mas entendi que se não houver um momento pulsando frenético no que acontece ao redor - mesmo que eu apenas o observe - volto a acreditar que alguma parte minha apodrece e se fragmenta, se desfaz, a cada novo minuto, no detalhe do momento que não se recupera. Ela não atrai as pessoas para a morte, como alguns se habituaram a pensar. Ela possui a narrativa dos sonhos de milhões de pessoas na sua horizontalidade sólida. Talvez você não consiga entender em que lugar seu começa a noite em São Paulo. O sono talvez seja um sinal. Esperei que os dois amigos, que me acompanharam na visita a São Paulo, dormissem. O frio grudava-se ao mármore da pia, ao ferro das trancas das portas, aos relógios de pulso, a tudo que se expunha, como uma razão de ser. No hotel, o quarto escuro com linhas de luz que vinham do tempo claro da Avenida Ipiranga. A luminosidade entalhada quadrada e solta das janelas sujas, do térreo até a confusão das antenas de TV. Eu queria colocar a madrugada de São Paulo na palma da língua, deixar a carne tremer e não voltar mais; deixar de morrer, ou congelar a impressão de morte iminente para sempre no fundo das minhas gotas de chuva mansa. Desci o quarto andar com duas camadas de moleton escuro e bermuda. Os pés calçados em couro barulhento. Perguntava-me se toda gota que caía salvaria o mundo. As pessoas corriam nos espaços alongados, nas veias asfaltadas de São Paulo. As ruas derramavam pessoas em todas as direções; pessoas que eram engolidas pelos trens lotados, pelos ônibus compridos. Tinha sempre um funk vazando de um canto impreciso; as batidas rachadas do funk sujo eram, no entanto, amenizados pela MPB que os taxistas ouviam. Caminhei na noite da Ipiranga. Ouvi Caetano na esquina da São João reclamar do frio e enfiar a cara nos peitos de uma prostituta. Duas outras prostitutas ouviam um pop eletrizante, algum som nervoso da Rihanna. Uma travesti desfilava sua beleza cheia de defesas. Eu queria chegar ao final da avenida desconhecendo o começo de tudo em mim. A filosofia carcomida dos que não possuem bons e bem remunerados projetos. As pessoas acordadas às quatro da manhã caminham sobre uma renovação; seus pés soam dentro de um tic tac mais resistente. Os automóveis costuravam o barulho que nunca cede; seguem um destino incógnito. Mas há um cansaço latente entranhando-se nos músculos. Não sei se o dia está começando ou terminando para a maioria deles. Pelas horas gastas buscando renovação dos sonhos, eu diria que suas ações ordinárias constroem um ritual de praticidade e obrigação: acordar, matar um bom dia com café quente, correr, abrigar o frio nos dedos, ultrapassar limites. O cansaço afasta a alegria de prosseguir mais um pouco, só mais um pouco, mas não abraça o tédio. Eles seguiam o caminho que nasce dentro. Iam e vinham. Poucos duram na vida de muitos. Acontecia comigo também. 2. O passado quando surge é para partir em seguida Minha infância foi de puro distanciamento. Do berço à adolescência, achei que seria menos desgastante optar pelos livros, videogame, construções fantasiosas no quintal do meu avô. Ocupava o dia com estudos e corridas contra o tempo para conquistar o espaço meu que não era de mais ninguém. Grupos de meninos me recebiam com uma rispidez já madura para o tamanho de seus acordos infantis. Eu não caminhava como eles. Brincávamos todos com carrinhos em cidades sitiadas de areia e merda de bode. Mas os meus carrinhos eram pilotados por bonecas com rouge e delineador. Jogávamos videogame. E nas competições de luta e sangue, as personagens femininas que eu escolhia levantavam a bandeira da delicadeza combativa. No final das brincadeiras, eu terminava sozinho e satisfeito porque existia uma amizade, mesmo limitada, que transformava minha infância em um pedaço superficial do meu futuro. Apreciava abraçar ausências, e suportar a falta com um suspiro semi-esperançoso. Quando os adultos perguntavam-me sobre como era ser filho único eu explicava sem restrições que não era tão bom quanto se pensa. Complementava a informação dizendo: Na verdade, eu tenho dois irmãos, por parte do meu pai. - Você conhece seu pai? - Por fotografia. - E seus irmãos? - O que tem? - Você conhece seus irmãos? - Não! Mas vou conhecer quando eu crescer. Em São Paulo, encontrei um dos meus irmãos. Nunca tínhamos nos visto. Trocávamos impressões apenas pela internet. Encontramo-nos na grande agitação capitalista da rua 25 de Março, e seguimos até o Mercado Municipal. Ele organizou a reserva em um dos vários restaurantes do espaço. Na verdade, tratava-se de uma representação mais ruidosa de algo maior que vive numa representação mais organizada da realidade. Deu um estalo de tolice ao reconhecer no irmão aquilo que poderia ser meu ou estar ao meu lado há anos. É como se eu voltasse a ser alguém que nunca existiu de fato, e a ter alguém que nunca estará lá. O orgulho mais estranho que já experimentei por alguém se avolumou no peito. Meu irmão tem um rosto forte, duro, e uma polidez organizada. Distribuiu atenção com generosidade e uma única gargalhada espontânea, quando viu um Wolverine subnutrido passar apressado ao seu lado. Possui uma estrutura maciça, impenetrável. A coragem de superar qualquer dor espalhada nos movimentos comportados. Uma capacidade adquirida de se defender sem guerrear por qualquer reles motivo. É uma mente de simpatia socialista agarrada às tecnologias. Suas opiniões são plácidas e os olhos pousam calmos enquanto as pessoas tentam explicar-lhe algo que ainda não conhece. Calei por minutos. Absorvi a confusão de todos os gritos estourados que chegavam. Apontei para a mochila dele e avisei que estava aberta. Foi meu modo de protegê-lo. Se tivéssemos vivido uma infância em comum ele não seria o tipo de criança que dividiria os brinquedos com o irmão mais velho. Mas eu me orgulharia de vê-lo brincar quieto com sua raiva aliviada. Eu o defenderia das ameaças paternas. Eu o esconderia debaixo da barra da minha calça. Eu quis silenciar todos os anos de curiosidade inconveniente; meu silêncio como uma acusação da minha mediocridade. Eu não inventaria qualquer qualidade que me igualasse a ele, ou superaria uma desvantagem decepcionante. Então deixei que ele contasse a sua história. Nossas versões do passado foram costurando-se numa camada de breve cumplicidade sobre a superfície da fraternidade iniciada, estendendo-se sobre mim e aquecendo o orgulho confortável que eu não tive medo de vestir. Senti que poderia absorver todas as complexas histórias que ele tivesse para contar, e amortecer seu tom empolgado com meus segredos catastróficos. Mesmo entendendo minha pressa em respeitá-lo e admirá-lo por tão pouco, continuei alimentando o arrebatamento. Ele tentava traduzir o mundo para nós, eu e meus amigos, sem ofender nossa sabedoria visitante. Ele possui uma sensibilidade improvável que muitos talvez nem entendam. Os passos firmes corridos, como se driblasse uma bola nervosa à sua frente, incentivavam a minha dependência que, com o tempo, poderia se tornar cansativa. Talvez tenha sido o tipo de adolescente que não fui: esperto e digno o suficiente para não vender o futuro por tão pouco. Quando ele projetou a despedida, eu quis pedir-lhe para que falasse mais de suas maneiras superiores de viver em São Paulo, a praticidade de ter uma visão política madura e estreita, e suas resoluções afetivas com garotas paulistanas liberais. Acho que eu pretendia preencher o espaço aberto existente desde a infância com os conteúdos do irmão que acontecia recente para mim. Dentro, no fundo, quase todo mundo deve ter esse espaço que vai sendo ocupado pelas importâncias adjacentes dos irmãos e dos pais. O meu permanecera intocado para ambos os casos, até aquele dia. Ele oferecera hospitalidade e distanciamento. Foi sua maneira de me proteger. Quando o irmão foi embora, deixei a solidão brotar solenemente. E segui com o sorriso indisposto até o quarto do hotel, com uma nova solidão instantânea que sustentava a densa sensação de lamentar o presente que não sei como vencer. 3. O terceiro andar de Clarissa Há uma disciplina na solidão que percorre São Paulo. É terra que se abre para agrupamentos, na verdade. O que vi foram solidões repartidas como uma reserva de sobrevivência. O despertar de uma silenciosa compaixão. Suspeito que depois de São Paulo, tudo que for substância diferente ofenderáminha disposição para experimentar o mundo. Os detalhes estão perdidos nas repetições de todos aqueles que vão com a pressa dos que pretendem volta logo, logo. Percorri o dia da Avenida Paulista; e abracei os tons escuros da Augusta. O meu estranho entendimento percebeu que algumas pessoas que você pretende amar em São Paulo estão repletas de segredos nas dobras perdidas dos gestos secretos. Os semáforos abrem seu vermelho elétrico e grupos de novas solidões dedicadas à conquista da hora seguinte param e se agrupam; só avançam quando não há mais perigo. Eles parecem livres da ociosidade; rápidos e circunspectos, a maioria deles. Não se conhecem; e querem a mesma coisa: acreditar que São Paulo pode dar certo. Eles carregam suas casas no peito. Recebem visitas no corpo quando se tocam acidentalmente na troca do passeio, na rua espaçosa com obstáculos humanos vendendo detalhes de uma vida pirateada, quando se amontoam e comprimem sua expectativa dentro do trem. Quem veio de fora, habitantes desconfiados de outros estados (os sólidos já firmaram sua crença no futuro), pede abrigo na solidão do outro que não o reconhece. São Paulo é lugar que abriga a alheia solidão que deixou de ser rumor; remota e implacável. São Paulo tornou-se dentro deles a casa que eles levam adiante, indescritível. Nenhum dos olhos que se cruzam se tocam realmente. A solidão é compartilhada com um silêncio ignorado que escapa deles e se agarra ao movimento organizado da vida. Existirá, ali, alguém que conhece todos os detalhes das pessoas que ama? Que consegue ler os fragmentos que elas deixaram na sua vida? Que consegue carregar por mais alguns anos os pedaços imprevistos e pesados que eles não conseguem guardar em si? Eles conhecem a música que mora nos dedos do alguém que nunca os quis na vida? Eles entendem quando não é mais possível perdoar o futuro que não vai acontecer? Clarissa me responderia. A única pessoa que me pronunciou seu nome em São Paulo, com dois tons de alegria. Um nível mais claro de céu aberto. Eu quis entender: Que ruas percorrem Clarissa? E os olhos responderam: (Na Praça da Luz): As crianças deixavam os sentidos escorregarem e saíam com os olhos disparados pelos quadros e esculturas procurando uma nova explicação. Um gato pintado de sombra numa vidraça espelhada de luz de sol não sabe ser outra coisa além da arte. Vigia tudo que faz sentido dentro do sentido dos outros. (Estação Pinacoteca): O homem de rosto avermelhado que coça as orelhas para o som vagar sem aborrecimentos em suas fantasias. (Viaduto do Chá): Um homem curto e sua tentativa de controle da mão fechada sobre a mesa, quando o namorado expõe sobre a ex alguma dificuldade inspirada, uma represa de ciúmes contida no tremor ajuizado. (Viaduto Santa Efigênia): A filha desentendida da vida abandona os dedos inseguros nas dobras da calça e aperta as pregas ornamentadas buscando paciência, amassa o desespero do toque. Em poucos segundos tudo está desfeito. Mas os dedos continuam vivos, e conferem ordem à matéria que não é a interior. (Estação da luz): Os cuidados mansos do avô resmungão e sorridente, mas que ensinou alguém a salvar borboletas com açúcar, água limpa e fios de misericórdia na extremidade dos dedos. (Livraria Cultura): A moça de olhar caído e vincos de preocupação, pequenas montanhas de desgosto que deixam escapar rochas-filhas morro abaixo. Despencando para a terra desolada da família. (Rua Frei Caneca): O casal que adormece vigilante, protegendo de qualquer mentira os sonhos que virão a inventar. As lembranças do namoro estalam dentro do que possuem de concreto atualmente (porque eles casaram, e ele o esperou por anos e anos, e eles tinham carinhos gêmeos que foram separados no nascimento): a pele coberta de vergonha encostava-se com discrição ao corpo próximo, o dele, o dele, os sentidos se aguçavam, havia cheiro de satisfação e café-da-manhã-da-nossa-vida-a-dois; e assim talharam o rosto feliz da pessoa que são hoje. O amor também vem no atrito. (The Week): O menino tímido que não consegue anunciar sua busca. Os dedos dos pés estalando, dobrados sobre a própria vergonha. A palma da mão em giros lustrando a ponta do nariz em cócegas, como um conserto, mas ao contrário. As notas ao avesso. (Hotel Normandie): Alguém que acorda dentro da noite para cumprimentar o ressonar aliviado da saudade do companheiro e protegê-lo seu sonhar com um cobertor, tocar com a ponta dos cílios os cantos desolados da boca que anuncia um sonho inquieto. (Mercado Municipal): O marido que observa a esposa preparar o prato do almoço com verdes indigestos, os dedos firmes no corte vermelho do tomate, a força impressa para fatiar o sabor da dedicação da mulher que o agradará ternamente. (Estação de Metrô da República): A paciência lustrosa do rapaz que esperou três anos, ou mais, sozinho, até que a garota, que ele não sabia que seria sua pelo resto da vida, voltou. (Catedral da Sé): O sorriso enrugado de uma avó falecida brilhando no quarto escuro da recordação aborrecida da moça vestida de azul anil que ora com a força dos dedos apertados. (Museu da Lingua Portuguesa): Quando a árvore da vida é composta de livros. E há morada fixa na poesia dentro das luzes. (Avenida Ipiranga): O som dos cabelos limpos dos que chegam com surpresas cuidadosas em uma tarde qualquer. (Avenida São João): Caixas de presente com sentimentos duradouros embalados, sem preço, com valor. (Avenida Paulista): Dois homens e uma dança no abraço surdo dos que sentem saudade. (Largo do Arouche): Quando a declaração de ‘Estamos Juntos Outra Vez’ vem com o dardejar das asas finas de olhos cansados. (Teatro Municipal): Olhos cerrados, cortando a aspereza oferecida pela realidade, deixando pó velho das esperanças ressentidas; a mulher vestida de nuvem cinza e uma tempestade de verde pôde enxergar como deveria ser o futuro. Ou deveria ser assim. (Praça da República): Elas, duas meninas de movimentos bruscos, falavam de amor. Uma boca gentil matava a sede no copo das tristezas daquela que tinha uma história triste para contar. 4. O último andar São Paulo torna o presente um golpe duro de nostalgia, onde se lamenta ter que deixar a busca para trás. É espaço para chegadas que não duram e partidas que se desmancham. São Paulo é um sonho de vinte andares inabaláveis. Ela é rígida; desperta um sentimento carregado, asfixiante. Uma paixão nascida no caos daquele mar de alumínio e luz artificial; a claridade que se derrama do céu torna a realidade consciente demais para os facilmente assustáveis como eu. E se me perguntarem que medo deixei nascer em mim, direi a partir de agora: 1. De não viver mais tempo para aproveitar São Paulo. 2. De voltar a ser filho único no dia seguinte. Ao voltar à terra prometida, que me prende e não revigora, Vovó olhou por alguns instantes para mim; fez silêncio antes de declarar sua benção. Vovó disse que voltei mais alto da viagem a São Paulo. Ela acredita que me tornei um sonho de três andares. (O Pensador Rebelde)

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Maria

Mulheres como uma certa Maria* Enviado em 25/09/2012 por Urariano Motta** Como um fenômeno de paralaxe as coisas não estavam onde pareciam estar. As estrelas miúdas de todos se deslocavam para outro lugar, distante e distinto daquele beco, longe da existência civil dos moradores, das roupas e feições apresentáveis. Era como se todos estivessem nus, mas a fazer de conta que não estavam. Havia os meninos do sapateiro cotó, que mais pobres saíam nus para a rua, descalços, porque afinal eram filhos do cotó. Ainda assim, nus como índios, não perpetravam a desgraça descortinada por dona Maria num certo sábado, ao evitar o sexo precoce entre crianças. Mas a desgraça, para dona Maria, era outra desgraça. Quando ela contou para a sua melhor amiga ter evitado aquilo, ela se referia à desgraça moral, não tanto a uma penetração sexual na infância, mas pelo que ficaria por toda a vida na menina Ritinha. Era um ato além do dilaceramento físico. À distância, ele considerava que ela parecia adivinhar a curta vida, quando dirigia as forças para os valores de coragem, decência e da mais rasgada generosidade. Gente assim, pensaria muitos anos depois, tem um encontro com a eternidade do ser, mesmo quando vem, age e some rápido. A sua eternidade é um rastro de atos duradouros, ainda que guardados em passos íntimos. Se fosse compará-la a uma imagem mecânica, seria como uma ampulheta que virasse todo o conteúdo de uma vez, deixando uma permanência na retina infinda. Mas não é mecânico. Seria como o compositor Mozart, diria, 53 anos depois. Com esse Mozart, ele queria dizer para si mesmo que era um homem culto, que extrai conceitos das informações do mundo, que não era mais um menino do beco. E nesse movimento de vergonha se escondia no conceito. Mas o essencial era antes, o essencial era o primário das ações de dona Maria, atos jamais vistos pelos moradores do beco, que ele sentia e sentiria muitos anos depois. Para os vizinhos, dona Maria era o que era, e com isso eles queriam dizer que ela era a sua pessoa física apenas, carnes, ossos e roupas. Deste modo e maneiras eles a viam: mulher – e aqui vai um gênero e universo de entendimento bárbaro -, gorda, baixinha, com um aspecto, ar, que não devia ser o da sua condição. Viam como um contrassenso absoluto que aquela pessoa, digo, aquela mulher gorda e baixa, não se desse conta da sua espécie de gente. Num tempo das divas glamurosas do cinema, num tempo de massacre da beleza anônima de subúrbio, dona Maria era, não passava de “uma albacora”. Cruas, essas palavras além da redução a um peixe, pois mulheres apenas se comiam e se tornar alimento era sua razão de ser, tal definição, difamação de Maria, amesquinhava-a numa coisa aquém do que entendiam o gênero feminino, pois era, além de mulher, gorda e baixinha, larga como as albacoras, que não eram uma dieta ideal aos comedores de carne bovina. Peixe gordo, congelado, a se comer apenas nas sextas-feiras santas, em sinal de penitência. É curioso, no entanto, como as mulheres vizinhas possuíam de Maria outra visão. Elas a reconheciam como uma senhora decidida, solidária e resguardada de merecer piedade. Ela rejeitava, “me repugna”, como dizia, qualquer piedade para a sua condição. Mulher brava, de coragem e de raiva. Do gênero e da forma daqueles bravos a quem os fracos não temem, porque sabem que essa bravura se dirige somente contra o injusto mais forte. Lídia, a sua jovem comadre, dela falaria na lembrança em 2012: “Ela era uma mulher bonita, de rostinho redondo, com os olhos pequeninos, muito vivos. Para mim, era uma boneca índia”. E com os olhos rasos d’água se balançava na cadeira, como a lembrar em silêncio a injustiça que atravessa a vida de mulheres como Maria, uma injustiça que também era feita contra Lídia, depois de passar por fracassados casamentos. A feminilidade, nelas, para elas, era um sofrimento. O que nos homens era desejo, danação, para elas era um vexame, como um dia na Ponte Duarte Coelho em que Lídia recebeu um vento tão forte, na chuva, que a impediu de caminhar, porque a saia levantou e as coxas ficaram à mostra. “Dona Maria era muito bonita, com os olhos miúdos, negrinhos”, repete. E cala, e embarga a voz. “Vocês não querem sapoti? Tá fresquinho”, oferece. Quando ele a escuta, dá uma bruta e brutal vontade de a abraçar, de lhe dizer “eu compreendo os seus sapotis, eu compreendo a sua dor, eu sei da sua infelicidade, eu sei do que você não se queixa, do que a magoa, eu sei, amiga de minha mãe”. E mais, amarga como uma proposta e uma promessa que é uma formulação de princípio: “Eu não vou calar o seu mundo”. Ele sabe, e não diz nem a si mesmo, que revê em Lídia aquela Maria que se foi tão pletórica, vermelha, no vigor e sangue farto na altura dos seus 30 anos. Ah, é da sua natureza a reencarnação, ah, é do seu gênero, gênese e ser de transmigração, como se o espírito quisesse um novo corpo para uma vida que não foi possível. Dói nele uma dorzinha doce e fina porque Lídia não é sua mãe, mas por ela será capaz de a ouvir e de lhe falar. Com a intensidade aguda de um violino em uma romanza, naquela, ele sabe, guardada em seu silêncio, naquela maldita e fina romanza número 2 em fá maior. Porque tudo então lhe recorda a senhora gorda, albacora, albacora brava e bonita como uma bonequinha índia. Ele a veria reconstruída sempre como uma mulher toda e tão só ternura. Desde 1956, passando por 1957, 1958, os anos de sua terra de felicidade, ele a guardaria nos traços e feições. Uma guarda de modo inconsciente. Era um modo retrato, daqueles no porta-retratos, em que só aparecem definidas as linhas do rosto até o pescoço, o que era um modo geral dos porta-retratos, e ao mesmo tempo, em Maria, uma exclusão, pois lhe negavam a totalidade do corpo. Ele a veria, fortalecido na lembrança por aquele retrato, como o rosto da mulher brava que para ele era só suavidade. Depois da sua morte em 1958, ele menino a reencontraria como naquele retrato em sonhos, antes que realidades mais duras tomassem o lugar daquela vida que não aceitava o seu fim. Se fosse escrever sobre ela agora, a pena, a caneta, ficaria torta em estado de refração, porque seria vista entre a água dos olhos. Um arrepio irreprimível tomaria conta do seu braço. Como havia podido amar aquela mulher por tantos séculos num buraco de silêncio? Que covardia maldita era aquela de negar se negando? Acaso não era ele apenas um filho daquela gorda e vasta generosidade? Então Maria, subida pelas crenças de conforto da igreja católica, alimentada pela piedade de pessoas que não queriam ver um menino órfão, então ela estava em sua camisola quando partira pela última vez para a maternidade, mas sem a agonia que a fazia gritar “eu quero morrer com meu filho, eu quero morrer na minha casa”, e naquele desespero que ironia, ela chamava aquilo a minha casa. Então ela, com essa camisola purificada, como se fosse possível Maria sem sexo e sem dor, lhe aparecia no sonho erguida nas nuvens, bela, terna e calada, porque falava a sua imensa presença. E aqui, ele não sabia se a mãe, para o menino, assimilava qualidades da mãe de Jesus. Não sabia, porque à própria mãe de Deus, pouco tempo depois, na crise aguda de carinho e sexo numa adolescência precoce, num tormento sacrílego, atribuíra à mãe de Deus uma vulva, que confundia com boceta, e clamava, numa tortura, “boceta de Virgem Maria, boceta de Virgem Maria”. Então não era possível saber, logo depois daquela morte, se atribuía à Maria mãe de Jesus características da mãe que se fora, ou se trazia para a sua mãe identificações obliteradas, vedadas à mãe de Jesus. Aquilo que, num pecado mortal e hediondo, para ele que então nem sabia dos verdadeiros pecados mortais dos homens, aquilo que era o mais baixo da abjeção para ele, a buscada boceta de Virgem Maria, ele não sabia nem adivinhava de longe que fosse a boceta da própria mãe, que vira tantas vezes no banho com ela, ambos nus debaixo do chuveiro. Mas ali, quando estvam sob a mesma água, a boceta não tinha esse lado de miserável heresia e pecado, porque ele estava ao lado da boceta molhada de sua única Maria, e não era possível saber que com ela possuía uma relação de feto e afeto. Seria duro para ele, na maturidade, escrever tal descoberta, porque mais que um pecado “não passarás!”, tal recordação o revolvia e lhe dava uma dor a ponto de paralisá-lo. Pois como e difícil voltar à inocência de menino! Infância, lembrava com os olhos úmidos, fechados, com vontade de gritar: Infância, tu eras a liberdade! Agora, ao se procurar num longínquo passado ele parecia um menino que olhava por um buraco da fechadura ou espionasse por uma porta entreaberta. O menino que ele via pulava a infelicidade. Saltava acima, rejeitava todos os motivos de ser infeliz. Assim como todas as crianças, era de sua natureza pular os motivos de infelicidade. Dizendo melhor, para maior clareza, no próprio momento infeliz, no instante mesmo de desgraça, o menino não residia. Dos momentos mais trágicos ou cruéis ele retirava células de alegria. Como na distante hora do enterro de Maria, ele vestido com roupa contrabandeada, “slack”, e os vizinhos horrorizados com sua insensibilidade, porque o menino dizia, como se estivesse feliz: “Eu hoje vou andar de carro. Meu pai disse que eu vou pro cemitério num carro”. Isso foi dito já de tarde, na hora de seguir o caixão, onde estava o corpo amado da sua mãe, aquela Maria entre flores, aquela entre os cheiros nauseantes de flores, que passariam a lhe causar repugnância por toda a vida, como se flores fossem cúmplices da morte da sua mãe. Era já de tarde, ele saberia muito depois, enterraram-na antes que se cumprisse o rito das 24 horas, talvez pelo feto de nove meses que ela carregava no ventre, e essa razão prática, médica, legal, era de uma crueldade tamanha que ele e todos adultos esqueceram, quiseram esquecer, e porque quiseram, esqueceram: o feto estava na barriguda, coberta de flores. Ocultavam-no como se oculta um dejeto – a vida de Maria -, assim mesmo, entre travessões. Tudo era tão primitivo. Tudo era tão bárbaro. Como se podia viver sob grades tão rudes? As coisas todas conspiravam para a morte. Sem médico, sem alimento razoável, sem civilização. E no entanto, o menino mostrava um instante de felicidade, porque se grande é a desgraça do mundo, mais forte é o inconformismo com essa desgraça. Não seria, pensa 54 anos depois quando reencontra Lídia, não seria essa repulsa à desgraça onde estava o corpo, não seria uma fuga de loucura? Não seria uma fuga às avessas do pesadelo, ou dito melhor, uma saída do pesadelo para o sonho? Como se a desgraça real não passasse de um brevíssimo estágio para os campos de sol? Então ele se disse “é bom minha mãe morrer, eu vou andar de carro”, ele recordaria a frase assim, como uma lição clara da incompreensão das pessoas, pela censura que ouviu dos vizinhos, escandalizados: “Menino, tua mãe morreu!”. Mas aquela morte para ele então não era um réquiem. Era um instante feliz de andar de táxi. Era algo igual, ou pior, que ter direito a comer maçã, como ele comeu pela primeira vez, quando estava com febre e o corpo cheio de perebas. “Pereba”, ele recordava, porque ferida então era pereba, pênis era bilola, umbigo era imbigo, comer era o mesmo que bolo de feijão e farinha amassado e beijado pelas mãos de sua mãe. Sempre assim, a infância era os átomos, ou melhor, lhe dava vontade de sorrir, com aquele sorriso que aprendera, de sorrir para o ridículo da tragédia: a infância era subelétrons de felicidade. Algo assim como uma nuvem fugidia, ou, em momentos de crise, uma ausência de domínio em um corpo concreto em convulsão. Mas como nuvem não era indeterminada. Se o instante não era exato, tampouco era indeterminado. Então lhe vinham os minutos do menino bonito que fora. Ah, partículas particularíssimas subatômicas. Grãos de pó que cresciam pela intensidade como se fossem bombardeio de nadas, porque eram invisíveis, mas estrelas poderosas fulgurantes no sentimento. Ah estrelas que são um sorriso, infinitésimos do íntimo que se guarda na gente, esses momentos passavam todos por Maria. Por que era assim? Nos anos de juventude clandestina, sob a leitura dos manuais simplificadores do marxismo, ele dizia que tal coisa era resultado do conflito subjetivo versus objetivo. Mas isso era apenas uma fórmula de apagar incompreensão, o que apagava também o entendimento. Pois a incompreensão não se resolve enquanto a gente não a encare. Esses momentos de beleza, que passavam pelo curto tempo em que estivera com Maria, eram uma felicidade que estava nela, nele e em seu breve encontro. E lhe chegavam duas ou três rosas para a memória seletiva. Uma para aquele dia em que desenhou do modo mais tosco e primitivo um avião, ou um projeto de infância para um avião, aproveitando o papel mais barato que havia na casa - uma casa, de resto, constituída de todas as coisas baratas -, um papel de cor de goiaba apagada, áspero e crespo que embrulhava pão. O lápis tentara alguma coisa semelhante a um avião, com duas asas sem perspectiva ligadas a um cilindro com nariz. Aquilo para dona Maria foi uma descoberta. O quê? então o filho era um artista. Então o seu filho era um desenhista, um pintor, e com tais revelações saiu a mostrar às vizinhas o rascunho do que poderia ser um avião. Com que júbilo a senhora gorda e baixinha exibia o fruto do seu fruto. As senhoras vizinhas, as mais piedosas, tentavam ser agradáveis no comentário “é um bom começo, não é?”. As mais sinceras, que nisso possuíam também a qualidade de ser “verdadeiras”, distinção que as pessoas do povo dão às grosseiras, apontavam a falta de rabo no avião, uma asa mais estreita e menor que a outra, o nariz pouco curvo, e diziam “ele tem que aprender a copiar”. A essas, para não ser igualmente grosseira como as comadres de Molière, que se diziam “verdades” em verdadeiros insultos, a essas dona Maria arrancava-lhes das mãos a obra do filho e passava para outra casinha, onde encontrasse admiradoras mais solidárias. Tão calorosa, sanguínea ela era que, aos 30 anos de idade chorava de alegria, ou de raiva, ou de tristeza com freqüência. Ele jamais soube se aquilo não era também um sinal da sua curta vida, uma antecipação de sentimentos e emoções que fazem chorar com facilidade as pessoas de mais de 50 anos. Não sabia. As pessoas então, com seu português rude, diriam que aquilo em dona Maria era “instinto”, coisa intestina. E com isso queriam dizer alma, espírito, qualidades e fenômenos muito além das tripas. Mas ainda assim, com esse intestino, um nome precário cuja poesia remete a baço, fígado e demais vísceras, ainda assim elas queriam dizer algo que sendo íntimo também era intuição, um modo de ser que não se explica em razões concatenadas. Então, por intestino e espírito, dona Maria chorava ao exibir calorosa o desenho do filho. Isso,que ele viu, a tomada de sua primitiva obra para divulgação entre as vizinhas, foi um momento permanente de felicidade. Isso veio de Maria, veio dele, veio do tempo e do papel de embrulho de pão. Isso era o resultado da dialética do subjetivo e objetivo, que ele repete em 1970, sem se dar conta que na pura vida estava, era o fenômeno, sem que desse tal explicação. A vida não era conceito. Ela sempre pulava, pula, no tempo de clandestinidade ele não podia adivinhar, a vida sempre pula do conceito, a vida é mais magnífica e surpreendente que o maior e melhor enquadramento dialético. Se pudesse pintar dona Maria a carvão, a bico de pena de carvão, com um carvão pontiagudo, grosso e agudo, sem que apagasse a pintura adiante, pois não seria fácil apagá-la, diria: “Acho que somente pude vê-la como a minha mãe depois da sua morte. Antes, ela era uma pessoa amiga, amiga mais velha, íntima, que havia me dado de mamar até os cinco anos. Sei que ela era de baixa estatura, sei porque outros disseram, sei que ela era bonita, sei porque restou dela uma foto, aquela última imagem que os pobres guardam para o retrato da sala. “A foto da falecida”, diziam ao apontá-la, e para mim, mesmo depois de tê-la visto no caixão, ela era “a falecida”. E no entanto era Maria, dona Maria, a minha mãe, de quem tive a felicidade de ser filho até os oito anos, mas a quem não dei a felicidade, ou pelo menos uma compensação, alguma coisa de arremedo de feliz, de fazê-la saber que eu fiz um desenho dela a carvão, depois de ela ter me falado no cemitério em 2011. Isso ela não soube, não pôde saber de experiência viva. Mas deve ter desconfiado pelo avião que um dia fiz, pelas letras a carvão garatujadas lá na frente do mercado público, pelos desenhos que eu fazia na areia do beco, copiados dos de Euclides, um soldado de polícia, débil, que sobrevivera a um AVC. Pois essa Maria, gorda, baixinha e bonita, era mulher de coragem, de sangue nas veias, como se dizia então, de sair com o filho de casa sem nada, por não suportar o mando arbitrário do marido. Era mulher pobre e sem vergonha de ser pobre, que pelo exemplo ensinou a não ter vergonha de nossa condição”. E assim foi, nas primeiras páginas, o seu desenho a carvão de mulheres como uma certa Maria. ________________ *Do romance inédito O filho renegado de Deus. O texto foi selecionado no Festival Internacional de Direitos Humanos, com o título de “Mulheres como uma certa Maria” e percorrerá 19 cidades latino-americanas em mostra. ____________________ O livro de Urariano Motta** publicado pela Boitempo, Soledad no Recife, já está à venda em versão eletrônica (ebook). ____________________ Urariano Motta** é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997). Postado por Castor Filho às 19:03:00 Enviar por e-mailBlogThis!Compartilhar no TwitterCompartilhar no FacebookCompartilhar no Orkut Marcadores: Crônica, Urariano (Rede Castor)

Espanha

Município socialista na Espanha resiste à crise Desde que conseguiu a desapropriação de terras improdutivas a partir da pressão dos moradores, Marinaleda implementou um modelo cooperativista de produção que envolve rodízio na lavoura e na indústria e hoje sustenta índices de emprego mais elevados do que os da Espanha. Segundo a prefeitura, o desemprego não passa de 4%, enquanto a oposição diz que chega a 14%. Seja como for, são números muito inferiores aos 25% do país. Naira Hofmeister e Guilherme Kolling, de Marinaleda, Espanha Marinaleda - Quando em 2008 a crise do sistema financeiro dos Estados Unidos chegou à Europa, causando também recessão nos países do Velho Mundo, cerca de 200 jovens migraram a Marinaleda, um pequeno povoado espanhol no coração da Andaluzia. Parte deles voltava para casa depois de ter perdido o trabalho na construção civil, que era então o grande setor em expansão no país ibérico e cuja bolha explodiu com a falta de crédito na economia a partir da quebra de bancos norte-americanos. Outros vinham em busca do El Dorado espanhol: a festejada terra do pleno emprego propagandeada pela administração municipal. A fama da cidade, entretanto, não tem nada de milagroso ou mítico. É fruto de três décadas de uma briga comprada por toda a população e liderada pelo líder sindical Juan Manuel Sánchez Gordillo: a reforma agrária. Marinaleda perdeu a metade de seus habitantes durante a ditadura do general Francisco Franco. A pobreza a que estavam condicionados os que ficaram fez com que se gestasse no íntimo dessa sociedade um desejo de mudança que não foi saciado com o retorno da democracia no final dos anos 70. Organizados em torno do Sindicato de Obreros del Campo, criado em 1977, os trabalhadores rurais iniciaram uma sistemática ocupação de terras improdutivas nos arredores da cidade, exigindo que fossem repartidas para que todos pudessem trabalhar. A luta mais conhecida de todas é a origem da boa reputação de Marinaleda: a fazenda de El Humoso. “Todas as manhãs caminhávamos 8 quilômetros entre o centro urbano e a estância. Logo que nos instalávamos, vinha a guarda civil nos correr de lá. Em alguns casos eram bem violentos; chegaram a cortar as árvores para que não tivéssemos sombra para descansar”, lembra o agricultor Joaquin Juan Diaz, hoje um dos sócios de uma das cooperativas responsáveis pela produção em El Humoso. “Mas não nos assuntavam: na manhã seguinte, marchávamos até lá novamente e a polícia nos mandava embora, mas voltávamos no dia seguinte, e no outro, e no outro, e no outro”, recorda, admirando o horizonte de oliveiras que hoje é (também) sua propriedade. El Humoso pertencia ao Duque do Infantado, que assim como essa, possuía outras tantas terras no sul da Espanha. A maior parte delas improdutiva. “Era muito comum durante a guerra da Reconquista, no século XV, que os reis dessem terras como pagamento aos que lutavam por eles contra os mouros, no sul”, explica o deputado e porta-voz do grupo parlamentário da Esquerda Unida da Andaluzia, José Antonio Castro. As caminhadas diárias – e os confrontos contra a guarda civil – duraram seis anos até que a Junta da Andaluzia decidiu desapropriar parte da terra e deixar que os moradores a explorassem. O primeiro que fizeram foi pintar no muro externo da propriedade a frase que retocam ano a ano com denodo. “Essa fazenda é para os trabalhadores desempregados de Marinaleda”. Em seguida dividiram-se em oito cooperativas e com os subsídios estatais compraram máquinas, ferramentas e sementes para a produção. Oito anos depois deram um novo passo e fundaram a primeira agroindústria de propriedade coletiva na cidade, a Humar Alimentos, cujo nome foi criado a partir das iniciais de Humoso e Marinaleda. “É fundamental colocar os meios de produção nas mãos do agricultor e do operário: assim eles recebem o que é justo pelo seu trabalho e o consumidor paga menos pelo alimento”, costuma discursar Sánchez Gordillo. Jornada igual para todos As duas iniciativas associativistas de Marinaleda são o que garantem que em 2012 o município sustente taxas de desemprego bastante menores que os nacionais. Segundo a prefeitura, os parados na cidade não passam de 4%, enquanto a oposição defende que chegam a 14%. De uma maneira ou outra, são números muito inferiores aos 25% da população espanhola que não consegue trabalho em plena crise. “O campo se caracteriza por não ter índices estáveis de ocupação. É verdade que há meses em que o desemprego é nulo na cidade. Mas há épocas de menor atividade tanto na fazenda como na agroindústria”, pondera Joaquin Diaz. Entre 70 e 120 cooperativados trabalham de maneira fixa o ano todo na lavoura e na agroindústria. Em períodos de entressafra, eles aproveitam para fazer a manutenção de equipamentos, limpeza dos campos, a contabilidade. Por este serviço recebem 1.200 euros mensais, o mesmo salário dos funcionários públicos e do próprio Sánchez Gordillo, eleito nove vezes prefeito entre 1979 e 2011 – ele nunca recebeu pelo cargo eletivo municipal, era remunerado como professor de História e nos últimos anos como deputado da Andaluzia. Quando há carga extra, se contrata por jornada homens e mulheres na cidade. O cenário laboral de Marinaleda se complicou a partir de 2008 não apenas pela retração da economia, que reduz os preços pagos pelos grandes distribuidores – as multinacionais, que são o alvo do momento dos protestos na cidade – e a demanda dos consumidores. Com o retorno dos jovens que haviam ido para a cidade e a chegada de migrantes de outras regiões, há mais competição na hora de conseguir um trabalho. O que não significa que haverá mais desempregados, senão que cada um trabalhará menos horas, conforme explica a vice-prefeita de Marinaleda, Esperanza Saavedra Martín: “Se há necessidade de 100 agricultores para 20 dias de trabalho e são 100 candidatos, cada um vai trabalhar 20 dias. Mas se 200 pessoas se apresentarem, cada uma vai ir para o campo durante 10 dias”. Outra diferença com relação aos plantios tradicionais é que tanto El Humoso como a Humar Alimentos pagam uma diária única para todos os seus trabalhadores: 47 euros por jornada, sem fazer distinção entre a função e até mesmo a produtividade de cada um. É folclórica, aliás, uma fala de Sánchez Gordillo durante uma assembleia na qual queixavam-se alguns trabalhadores da falta de comprometimento e de efetividade de outros colegas. “Se há quem trabalha menos, os que podem produzir mais devem fazer o dobro de esforço a que estão costumados para ajudar a estes companheiros”. O trabalho se reparte através de sorteios nas assembleias públicas do município. Embora o vereador Hipólito Aires, do Partido Socialista Espanhol (PSOE) – que em Marinaleda faz oposição à sigla no poder, a Esquerda Unida – acrescente que só são incluídos na loteria laboral aqueles que participam das marchas e protestos convocados pelo prefeito. “Cada tipo de atividade política conta um número específico de pontos e só pode apresentar-se para uma vaga aqueles que atingem um mínimo”, denuncia. Exportação para Venezuela começou neste ano A aposta das cooperativas para que haja ocupação plena durante a maior parte do ano é diversificar a produção. Setembro é o mês da colheita dos pimentões – há três variedades cultivadas em El Humoso, que em seguida são beneficiadas na Humar Alimentos –, e a previsão de Esperanza era que se incorporassem ao contingente fixo das cooperativas entre 300 e 500 trabalhadores durante dois meses. Em seguida será o turno das beterrabas, dos girassóis, do trigo, da alcachofra. Três vezes ao ano eles recolhem azeitonas do plantio de oliveiras. “Em 2011 colhemos 3,8 milhões de quilos: 3 milhões para a fabricação de azeite e o restante de azeitonas de mesa”, contabiliza Manuel Martín Fernández, que em um domingo se dedicava a limpar os tanques de estocagem do líquido, que em breve receberia a parte da produção de setembro. A colheita, entretanto, ficou pequena com o início das relações comerciais com a Venezuela, depois que o presidente Hugo Chávez conheceu a história de Marinaleda e de seu prefeito através de uma reportagem na TeleSur. Em 2012 pela primeira vez El Humoso entregou ao país cerca de 70 milhões de litros de azeite, um volume 20 vezes superior ao que a fazenda produz. A saída foi se associar com cooperativas de municípios vizinhos que seguissem parâmetros de produção e de trabalho semelhantes aos de Marinaleda. “Tem que pagar bem o agricultor que recolhe azeitona e o empregado da fábrica, e possuir uma qualidade como a nossa, pois não misturamos 'orujo' no nosso azeite”, completa Joaquin Díaz. “É muito importante que haja solidariedade prática entre os países, entre as cooperativas, entre os distintos grupos. Ainda mais num momento difícil como esse”, reflete Gordillo, referindo-se ao momento de crise. Ele planeja estabelecer relações semelhantes com Nigarágua, Equador e Bolívia. “Seria uma boa ideia que o projeto Alba se estendesse pelo sul da Europa”, conclui. Apesar da ajuda bem-vinda de Chávez, o prefeito defende um modelo misto de sustentabilidade da produção, em que o mercado interno também seja atendido, numa relação direta entre produtor, pequeno comércio e consumidor. Leia também: Povoado espanhol de 2 mil habitantes está no mapa-mundi da esquerda Fotos: Naira Hofmeister (Carta Maior)

Colômbia

Comandante Nicolás Rodríguez Bautista, “Gabino” EJÉRCITO DE LIBERACIÓN NACIONAL, ELN-COLOMBIA 18/9/2012, Entrevista concedida a Carlos Lozano (Marcha, Argentina) Parte 1 – Gravada em 14/9/2012 Traduzida pelo pessoal da Vila Vudu Carlos Marín Guarín Desde que o presidente Santos anunciou o acordo para iniciar negociações de paz com as FARC, praticamente nada mais se ouviu do Ejército de Liberación Nacional, ELN. Até agora, o único a falar fora o dirigente Carlos Marín Guarín, “Pablito”, integrante da Frente Oriental do ELN, onde se localizam os níveis mais intensos de atividade da guerrilha. Em entrevista coletiva da a um grupo de correspondentes nacionais e internacionais, distribuída na Argentina pela rede Cartago TV, Guarín disse apenas que “Como chefe do ELN, cabe a nosso comandante Nicolás Rodríguez Bautista decidir com quem mantém negociações”. Nicolás Rodríguez Bautista Rodríguez Bautista, conhecido como “Comandante Gabino”, integra a guerrilha desde a formação, em 1964. De família católica, chegou ao comando em 1998, depois da morte do sacerdote e dirigente guerrilheiro Manuel Pérez Martínez. O correspondente do jornal argentino Marcha, que acompanham na Colômbia as negociações de paz, fez contato com o Comandante Gambino, que concordou em conceder essa entrevista, na qual o comandante histórico do ELN fala sobre o que sua organização pensa dessa nova etapa da luta política na Colômbia. Marcha: Por que só as FARC, não o ELN, participam das negociações de paz recentemente anunciadas? Comandante Gabino: Antes de tudo, recebam saudações respeitosas do ELN da Colômbia, com nosso desejo de que mantenhamos aberta essa linha de comunicação. Esperamos que a irmandade de nossos povos nos una sob as bandeiras de nossos grandes, como San Martín, Bolívar, Artigas, o Che, Camilo Torres e tantos outros lutadores pela liberdade e pela democracia. Respondendo sua pergunta: a única vez que a guerrilha sentou à mesma mesa de negociações foi na década dos 1990 do século passado, nos diálogos com o presidente Gaviria. Todas as outras experiências foram diálogos em separado, com cada força guerrilheira. Mais uma vez, será feito assim. O ELN entende que o mais acertado, para construir um processo de paz, é uma única mesa de negociações para toda a guerrilha. Temos de nos esforçar para chegar lá. É preciso alcançar níveis de unidade e estamos caminhando para conseguir isso. Respeitamos o processo que o governo iniciou com os companheiros das FARC e desejamos a eles o máximo êxito. Confiamos que, adiante, o processo que agora se inicia, de negociações em separado, possa convergir para uma mesma mesa. Exceto algumas diferenças, somos forças com objetivos semelhantes, o que é o mais importante. Marcha:Quais são hoje, na Colômbia, os requisitos para essa paz que voltou a estar na boca de todos, inclusive do presidente Santos? Comandante Gabino: A maioria dos colombianos estão cansados de uma guerra interna que já dura mais de 50 anos; os vários setores sociais foram-se organizando e falou-se de uma saída política que leve ao término dos confrontos, como é o caso do Congresso dos Povos, que está organizando um Congresso de Paz para o próximo ano. Também muitas organizações populares e sociais já se manifestaram sobre a urgência de construir a paz. Quando se fala de paz, todos os colombianos e colombianas queremos que o momento chegue. O problema é que entendemos a paz de diferentes modos e a queremos em condições diferentes, conforme a situação e os interesses de cada grupo. As grandes maiorias na Colômbia, inclusive a guerrilha, entendemos que paz é justiça e igualdade social, democracia e soberania. Mas para a classe dominante, paz é o que se consegue quando se derrota o inimigo interno no campo de batalha – palavras do próprio presidente Santos, dias antes de se iniciarem os diálogos com as FARC. Processo de paz, nas condições colombianas, para que leve a paz estável e duradoura, requer a participação não só da guerrilha e do governo, mas dos vários setores populares que são os que carregam às costas o peso da guerra. A paz é processo longo e dispendioso, contra o qual se alinham inimigos poderosos, os mesmos que lucram muito com a guerra. Marcha: Como é a situação social, nas comunidades onde o ELN está presente? Comandante Gabino: Nas comunidades onde o ELN está presente, vive-se em estado de guerra. São os territórios conhecidos como “zonas vermelhas”, submetidos a operações militares e policiais permanentes. Tudo ali é controlado, movimentos, provisões, especialmente alimentos e remédios. Toda a vida da população é vigiada, sob o pretexto de que as pessoas colaboram com a guerrilha. As forças repressivas do governo, aliadas a forças mercenárias paramilitares, atuam com a população como força de ocupação. A população é exposta a todos os tipos de vexames e ações repressivas. As áreas onde os camponeses subsistem do cultivo de plantas de uso ilícito, como a folha de coca, são castigadas, os proprietários, por serem proprietários das terras, e as plantações por serem consideradas ilegais, todos submetidos à aspersão permanente de um fungicida, Glifosato, que destrói as plantas da folha de coca e também outras plantas, e causa danos irreparáveis a animais e seres humanos, às crianças e aos idosos, sobretudo, e a mulheres grávidas. Essa repressão já gerou massa considerável de exilados internos, que não podem circular nos centros urbanos, porque são considerados ilegais, e perambulam pelo país, como alvos vivos dos ataques das forças armadas, que os consideram alvo militar. Está gerada uma situação muito grave para numerosas famílias, cuja única proteção é a guerrilha. Passou a ser dever da guerrilha proteger essas pessoas, contra o ataque das forças governamentais. Nada disso é novidade. Essa é uma das explicações pelas quais muitos jovens camponeses, homens e mulheres, não têm alternativa de sobrevivência, além de alistar-se na guerrilha. Marcha:Em função das experiências anteriores, como o senhor acredita que terminará essa recente nova tentativa de diálogo? Comandante Gabino: Apesar de diálogos tentados antes não terem tido êxito, vemos com expectativa a possibilidade de um processo sério e realista, que abra caminho para a paz, como desejam as maiorias colombianas, esgotadas em mais de meio século de conflito social e armado, que já ultrapassou todos os limites. A classe dominante não conseguiu derrotar a guerrilha, nem o movimento popular, apesar da violência da guerra suja e do terrorismo de Estado. As forças governamentais, assessoradas pelos EUA e por Israel, tentaram aplicar aqui a experiência de outras guerras; mas, apesar da violência e da crueldade, nem o movimento popular nem a guerrilha foram derrotados, e se mantêm. Entendemos que nessa realidade, o caminho certo a seguir é o que chamamos “uma saída política” – que significa que, mediante um diálogo aberto, que envolva não só a guerrilha e o governo, mas as mais variadas expressões populares e sociais, consiga chegar-se a um acordo responsável para superar as causas que produziram o levante armado e ponha fim à confrontação, com solução bilateral e todos possamos cuidar de reconstruir o país, superando a crise profunda que destroçou o tecido social e a convivência normal na Colômbia. O ELN propôs, há mais de 20 anos, a saída política. Cinco governos anteriores assumiram nossa proposta como sinal de fraqueza e trataram, só, de aproveitar como vantagem militar o nosso interesse em dialogar. Dessa vez, afinal, parece que a classe do poder está assumindo com mais realismo a responsabilidade de construir a paz, como as maiorias reclamam, em nosso país. Marcha: Como o ELN vê o futuro da guerrilha na Colômbia, para os próximos anos. Consideram a possibilidade de renunciar à luta armada e dirigir toda sua força para a luta política? Comandante Gabino: Nos levantamos em armas há quase 50 anos, porque a luta popular ampla e legal não recebeu garantias políticas e jurídicas. Quando se alterar essa lógica perversa, e haja garantias e respeito para que a luta popular prossiga, o povo já não precisará de armas para defender seus direitos. Mas essa decisão, hoje, está em mãos da classe que ainda domina a Colômbia; são os únicos que, como se diz, têm a palavra. Se, depois de 50 anos de guerra fratricida, dispõem-se afinal a reconhecer à maioria da população seu direito a justiça e igualdade social, à democracia e à soberania, então, afinal, se poderá avançar para a paz. Claro que não se faz paz por decreto. Mas é urgente que se comece a andar nessa direção. Não concebemos que a solução esteja na desmobilização e no desarmamento da guerrilha. Essa forma já foi tentada e fracassou, porque a essência do conflito é social; e foi o conflito social que levou ao levante armado. É preciso portanto ir às causas originárias do conflito, para encontrar soluções. Só assim será possível superar o conflito e mudar a situação em campo. (Rede Castor) Continua na Parte 2 de 17/9/2012 (em tradução)

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Marighella

Vai, Carlos, ser Marighella na vida (José Carlos Capinam) "Ai Brasil, Quem escapa do desamor em tuas noites ferozes Quem se salva da ciência dos teus doutos sábios doutores Quem foge de teus senhores algozes Nasce com alguma forma de homem E se não morre dos sete dias Nem do angu de farinha Vai um dia pro batismo Recebe por sorte um nome Vai ser João ou Maria Vai ser José ou das Dores Vai ser de Deus Jesus ou dos Santos Ou serão Carlos que nunca foram E serão assim brasileiros como tantos E serão sempre brasileiros Que serão de algum terreiro Bloco sujo carnavalesco Lesco-lesco café ralo com torresmo Ou de nada nada mesmo Como nós assim a esmo E quem capitão de areia num livro de Jorge Amado Aprende lição das coisas E quem insone nas madrugadas é mulher de lobisomem Ou aprende nas ciladas que o pior lobo dos homens Talvez seja o próprio homem Quem retirante escapa num quadro de Portinari Quem poeta quer ter frátria de Veloso ou de Vinícius pátria amada Quem gracilianamente deságua desta vida seca agrária Ou na solidão urbana sonha a vida humana solidária Quem na cartilha suburbana soletra o nome fulo Quem nasce de negra índia ou branco E sobe ligeiro ou manco as ladeiras do Pelô Quem descasca uma banana E se consome no sonho da grande mesa comum Para a imensa toda fome Quem assim vive não morre Vai virando jacarandá ou poesia pau-brasil Virando samba e cachaça Se torna gol de Garrincha se torna mel de cabaça Se torna ponta de lança do esporte clube da raça Se torna gente embora gente nem nascida Mas (quem sabe?) pode ser Um dia gauche na vida Se torna nossa aquarela Torna-se Carlos Marighella Um anjo doce na morte Que os homens tortos quiseram Sem que te matassem ainda" Marighela entendia profundamente o povo e a ginga brasileira. E por isso ainda vive, nos inspirando e dando intuição. Comandando a nossa revolução brasileira. E agora os bandidos não vão poder matá-lo. Durmam de olho aberto, canalhas! (Perfil do amigo Beto) (Chupado do Blog 'Ousar lutar, ousar vencer')

Millôr, o genio de direita

Uma bola é o que rola. Branco é o sem cor nenhuma nele. Colo é o que a gente quer de noite, mas de dia o quintal é melhor. Galinha é pra gente correr atrás a não ser as que estão no choco. Comida tem sempre demais no prato mas sobremesa nunca tem bastante. Crescido é o que se fica ao deixar de ser pequeno. Lagartixa é pra gente arrancar o rabo e ver ele mexendo sozinho. Cachorro é onde a gente bota a culpa duma porção de coisas que foi a gente que fez. Machucado é quando não se presta atenção nenhuma no que a mamãe diz. Sonho é o que dá um medo danado, mas quando a gente acorda a mãezinha está bem quentinha ali junto. Irmão é pra gente ter muita raiva e depois fazer as pazes. Buraco é o que sobra quando se tira terra de dentro dele. Quente é o que a gente procura quando está frio, frio. Resfriado é o que escorre do nariz. Pai é com quem a gente tem conversas de homem pra homem. Mosca é pra se matar com o jornal dobrado. Botão é pra gente andar sempre desabotoado. Cachorro é pra gente chatear ele, a não ser os que avançam. "O escuro é onde a gente vê o que não está lá. Vem quando a mamãe diz: "Boa noite, dorme direitinho, meu filhinho" e apaga "O relógio é o que anda mas não tem pernas. Isto é, tem duas pernas, como a gente, mas coladas na barriga, lá dele. Serve pra gente ver que está atrasado pro colégio de manhã, e pra saber quanto tempo falta pra acabar a aula. O relógio inda é muito bom pra gente rir quando é o do papai, que a gente adianta meia hora e então o papai salta da cama e faz tudo correndo, pra não perder o trabalho, mas de noite quando ele chega vem com aquela cara e logo perguntando qual foi de vocês que fez aquela gracinha, de novo hoje de manhã? Fora disso o relógio só é bom quando quebra e a gente vê que lá dentro ele está cheio de carrapeta." a luz. Aí a gente só sente os barulhos e fica pensando noutras coisas completamente diferentes daquelas que tem no quarto quando o quarto está claro. Aí dá muito medo e a gente chora até que a mãe da gente volta e acende a luz e o escuro sai pro corredor." Millôr)

Montesanto

Comerias inseticida? Por Víctor-M. Amela* Entrevista com Marie-Monique Robin, jornalista especializada em agroalimentação Tenho 48 anos. Nasci em Gourgé, povoado próximo a Poitiers (França), em uma família camponesa. Sou jornalista. Estou casada e tenho três filhas (11, 14 e 17 anos). Política? Não me caso com ninguém, meu compromisso é com as pessoas: por isso, coloco minha pluma na chaga. Sou agnóstica. -O que é a Monsanto? -O gigante da indústria agroquímica que domina o mercado mundial da alimentação. -Como a Monsanto consegue dominar a alimentação mundial? -Domina o mercado mundial de sementes: dominar as sementes é dominar os estômagos, a população mundial. -E como se consegue dominar as sementes? -Modificando-as geneticamente e patenteando-as. Antes de 1992 não era permitido patentear sementes, mas a Monsanto conseguiu que os Estados Unidos o permitissem. Hoje, têm mil patentes. -Isso é algo que deveria preocupar-me? -Se tu te preocupas com o que teus filhos comem, sim. Deves preocupar-te pelos 80.000 hectares cultivados com milho transgênico na Catalunha e em Aragão. -Por que a Espanha é o único país da Europa que aceita cultivos transgênicos? Isso não acontece em outros países europeus? - Está proibido. Com razão: carecemos de estudos sobre os efeitos dos organismos geneticamente modificados (OGM) na saúde humana e no meio ambiente. -E por que a Espanha não os veta? -No governo da Espanha, atualmente, há quatro pessoas relacionadas com a Monsanto. -Quem são essas pessoas? -Estou contrastando os dados e logo publicarei seus nomes. -Esse milho é um OGM da Monsanto? -Sim, chama-se milho Bt, iniciais de Bacillus thurigiensis: essa bactéria está no solo em forma natural e é inseticida. Se usada em preparos pulverizados é eficaz e o sol a degrada logo: resulta inócua para o meio ambiente. Porém, a Monsanto pegou o gen da bactéria que produz a toxina e o inseriram no genoma do milho. -Brilhante ideia: desse modo esse milho fica blindado contra os insetos, certo? -Sim. Porém, isso tem um custo perigoso: a toxina intoxica não somente o ‘piral’ -inseto que prejudica o milho-; mas também prejudica os insetos predadores do piral (como as mariposas, microorganismos do solo, pássaros que comem insetos...). -E pode me causar problemas? -Tu comerias inseticida? Pois esse milho inseticida é colocado nas farinhas, nos chips, tacos, cereais, sopas, tortas... Por que a cada dia existem mais alergias? São reações de nosso organismo diante de algo que não reconhece! -Se não comermos esse milho, estamos salvos? -Não, esse milho poliniza cultivos de milho ordinário, contaminando-os, convertendo-os também em transgênicos. Extinguirá o milho natural! E, mesmo que não ingiras esse milho diretamente, é dado como forragem aos animais, que serão comidos pelas pessoas. -Devo alarmar-me, então? -Meus pais eram camponeses, líderes sindicais agrários na França. No entanto, adotavam adubos, pesticidas convencidos de que geravam o desenvolvimento da agricultura. Hoje, estão arrependidos: a biodiversidade de variedade hortifrutíferas decresceu drasticamente.... e a maior proporção de câncer se dá entre agricultores. -Então, podemos nos alarmar... -O herbicida mais vendido no mundo chama-se Roundup, da Monsanto. Extermina toda a erva daninha.... Porém, não é biodegradável e é promotor de câncer e perturbador endócrino. Como não padecer cada dia mais de câncer, de diabetes, Parkinson e Alzheimer? Minhas filhas e eu já não comemos vegetais que não venham de cultivos biológicos! -Herbicidas e pesticidas causam câncer? -Os bebês já nascem com resíduos de dioxinas em suas células! As dioxinas são derivadas de sínteses químicas acontecidas em laboratórios e chegam aos bebês através do que suas mães comem. -Isso arrepia! -Estamos intoxicando-nos. Veja o pão. -O que tem o pão? -Para que a espiga de trigo produza mais grãos, foi geneticamente modificada e protegida com oito pesticidas e com vários hormônios cujos restos são comidos por nós através do pão. Claro que existem câncer de mama e de próstata, e o esperma perde fertilidade. Sete amigas de minha idade têm câncer. Nenhuma amiga de minha mãe o teve nessa idade (faixa dos 40 anos). -E por que não reagimos? -Porque priorizamos a quantidade, a produção, a viabilidade econômica, o negócio, os preços... Porém, esse sistema acabará também com os pequenos agricultores. -Por quê? -Porque eles compram sementes geneticamente preparadas para ser fumigadas com Roundup, são obrigados a comprar remessas novas a cada ano e são caras. Perdemos milhares de variedades tradicionais e os camponeses acabam nas mãos da Monsanto; muitos vão à ruína. -O que acontecerá se a situação continua assim? -Acontecerá que a Monsanto vai produzir todas as sementes... e todos os produtos fitosanitários sem os quais essas sementes geneticamente modificadas não frutificam (como o Roundup, que é responsável por 30% de seus lucros): negócio da China para a Monsanto! Se é confirmado que algum produto é perigoso, o retiram do mercado, e dão tempo para fabricar outro... até que seja demonstrado de novo que é cancerígeno ou perturbador hormonal. E assim vai, até que acabemos todos estéreis e doentes. -Isso é tão terrível... Custo a acreditar. Temos já o precedente do ‘agente laranja’, empregado por décadas como herbicida, usado na Guerra do Vietnam, ratificou sua toxicidade cancerígena. E foi retirado. Era fabricado pela Monsanto. E o que acontece com a Monsanto apesar dos milhões de danificados? - Nada! [http://www.tu.tv/videos/el-futuro-de-la-comida-2006-docu] * Do jornal La Vanguardia. (Envolverde/Adital) (Chupado de 'Sarau p todos')

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Chico

Todos Buarque de Hollanda em música por Tatiani Távora em 21 de jan de 2012 às 02:58 Seu Francisco Buarque de Hollanda. Aquele que, dizem as boas línguas, tem alma de mulher. É feito de mulher da cabeça aos pés, também artista na descrição das dores e confusões inerentes ao ser humano. Das amplitudes aos mais do que devidamente cabidos partos. Talvez o único dos homens premiado a sentir em amplitude a confusão bélica feminina. Mesmo nascido em berço de ouro, fala de uma vivência de humanidade e subjugo que vai além de uma comum capacidade. Mesmo acreditando que sua mais feroz intenção fosse apenas a de "malandrear" e pisotear uma (desde sempre) sociedade insana e desleal. O amor e Chico Buarque. Fala sempre de amor como quem consegue conjugar, em único verbo, as tensões das palavras 'guerra' e 'paz'. A seu modo e sob uma aparência pacata, burlou as armadilhas de uma sociedade escrota, criticando a guerra moral e ditadura como quem apenas buscasse a solução para um mal de amor. Talvez daí também advenha boa parte da sua significância para o universo da música. Sinceridades nos interessam, Chico Buarque parece mentir como quem jura às verdades existentes. Mas só e, justamente, porque possui um jeito único de deixar explícito o que quer dizer sem precisar quase nada mover, enquanto a maioria de nós vive a divagar em longas justificativas. Ah, este azul! Se os olhos azuis que nem precisamos ver para saber de sua força, assinalados pela dureza do tempo, soubessem do bem que já fizeram ao feminino (de nascimento ou não), descansariam em paz em meio a estas mesmas entranhas e, vislumbrariam ali, o verdadeiro gozo litero-musical d'alma. Uma "santa" Budapeste! Salve, Chico. "Eu não sei se ela sabe o que fez, quando fez o meu peito cantar outra vez. Caminhando na ponta dos pés como quem pisa nos corações que rolaram dos cabarés. Nunca será de ninguém, mas eu não sei viver sem, e fim. Arrasa o meu projeto de vida: querida, bandida, santa, artista, demente, egípcia, vadia, espinho, penélope, filha, fada, esfinge, lebre, o meu projeto de vida... a falsa, a gueixa, a rosa. Você vai pagar e é dobrado, cada lágrima rolada nesse meu penar. Imagina hoje à noite a gente se perder, a lua se apagar? Tinha cá pra mim que agora sim, eu vivia enfim um grande amor. Pra quem você tem olhos azuis, e com as manhãs remoça? No sonho de quem você vai e vem com os cabelos que você solta? Eu nunca sonhei com você, Lígia." tatianitavora Artigo da autoria de Tatiani Távora. Não se pode afirmar que sempre será dito algo novo, muito menos a verdade de forma absoluta e imutável. Garanto a aventura de transcrever percepções. Para que, cheia de alguma recém nascida obviedade, o produto disso possa ser degustado com o lance "além dos olhos e ouvidos". Sempre além.. Saiba como fazer parte da obvious. e sobre as matérias em questão. Leia mais: http://lounge.obviousmag.org/retrato_da_substancia/2012/01/elas-todas-buarque-de-hollanda.html#ixzz27RbVtxRP

Loucura

Loucura Viagem além da loucura e da normalidade By admin – 17 de setembro de 2012Posted in: Geral Extração da pedra da loucura (Bosch) Extração da pedra da loucura (Bosch) “Como montar o cavalo selvagem do desejo, que exige montador de corpo forte, capaz de ser um e muitos e de ser atravessado por forças vitais? Um corpo capaz de correr os riscos da experiência de ser possuído por demônios” Por Sindia Bugiarda, na Uninomade* Estou indo longe demais. O alerta apareceu nos primeiros passos. Linhas 457 e 239. Da zona sul direto para Engenho de Dentro. Engenho de dentro para fora, uma valsa: Dentro fora, dentro fora, dentroforadentroforadentro a rodopiar. Seria um caminho sem volta? – C’est l’hôtel de folie! Entrem, comam tudo o que quiserem. Mas não pode levar nada para casa. Je suis Judith, le gérant de l’hôtel. Judith-Reginaldo-Naná, homem-mulher de uma perna só, enfeitada de perucas coloridas, aleatoriamente combinadas com boás de penas sintéticas, igualmente coloridas. É assim que ela recebe os hospedes, entre a alegria e o safanão. Entro. Essa viagem só faz sentido se for possível me desfazer das camadas duras, sedimentadas, da rocha que instaura o Eu. Se puder me destituir dos passos pesados, arrastados, se puder largar o fardo. A mulher negra pára à porta de entrada do hotel. Faz uma prece e entra. Ela é um demônio que fala 150 línguas e se tranca no banheiro ou se amarra com os próprios braços às camas dos quartos do hotel. Ela mente e confunde: — Vocês acham que estão fazendo diferente das pessoas do quinto andar? Vocês são como eles! Andam com o demônio! Vão me bater!? E ela espera o golpe, que não vem. Chamo-a pelo nome: Sonia Rosa. — Não permito que você diga o meu nome. Sua boca é suja. Então, Rosa entra pela cozinha, e rouba tudo o que pode: um saco de goiabinha, bebidas, copos, talheres. — Meu! Meu! Meu! Ela diz. Pergunto como posso chamá-la. — Me chama de você. E então, ela retorna à ala de crise no quinto andar. É o labirinto. Me seguro repetindo incessantemente: Até aqui, tudo bem. Até aqui, tudo bem. Até aqui, tudo bem. Ter um único nome a nos acompanhar pelo resto da vida é uma maneira de impor uma forma fixa a um corpo, a uma subjetividade em constante movimento de diferenciação. Incontáveis estados do ser, como dizia Nise da Silveira. Numa passagem bíblica, ao fazer um exorcismo, Jesus pergunta: qual é o seu nome? E o demônio responde: Legião é o meu nome, porque somos muitos. O demoníaco é ao mesmo tempo eu e nós. Uma multidão que confunde o sujeito singular com o sujeito plural, destruindo a própria distinção numérica. É o que Negri chama de o lado sombrio da multidão. Essa capacidade que a multidão tem de confundir, de ser um e muitos ao mesmo tempo, numa indefinição que ameaça todos os princípios de ordem política. A multidão é coisa do demônio. Quantos eus podem habitar um corpo? Não importa. Deleuze já dizia: não se trata de chegar ao ponto em que não se diz mais eu, mas ao ponto em que já não tem qualquer importância dizer ou não dizer eu (Deleuze & Guattari, 2006, 11). Aqui, neste labirinto, o pronome pessoal não reclama pessoas, mas forças e quereres. Ah, esses homens do desejo, capazes de partir. Nomadismo que escapa das identidades, algo tão simples quanto nascer e morrer. Tão simples quanto falar em nome próprio, sem impedir permissão. Desejo a que nada falta, fluxo que atravessa barragens, códigos, nome que não mais designa eu algum (Deleuze & Guattari, 2010, 177). Talvez porque nesta jornada, importa menos a queda do que a aterrisagem. A queda: “Cavalos são bichos selvagens. Não se doma um cavalo pela força, mas pelo espirito”, as palavras de Nise1 não cessavam de correr em meus ouvidos. Sê prudente, Ariadne, tens pequenas orelhas, tens minhas orelhas… Quem além de mim, sabe quem é Ariadne?… Sou teu labirinto (Deleuze, 2006, 114). Como montar o cavalo do desejo, cavalo selvagem que exige montador de corpo forte, capaz de se construir, de ser um e muitos, capaz de ser constantemente atravessado por forças vitais? Um corpo capaz de correr os riscos da experiência de ser possuído por demônios. Experiência que envolve vertigens, deslocamentos horizontais, os terrores e as alegrias do desconhecido. E não romantizemos, é possível falhar, é possível morrer nesse processo. Milton Freire: — Minha primeira crise aconteceu quando eu tinha 15 anos. Fui me fragmentando e descendo, descendo. Às vezes a gente desce tanto, que não tem mais como voltar. Isso é a doença. Outras vezes a fragmentação é para cima. Ao longo de 10 anos, Milton se fragmentou e se constituiu diante de inúmeras internações em hospitais psiquiátricos do Rio de Janeiro. A literatura o ajudou a superar as sequelas deixadas pelos tratamentos que recebeu: “eletrochoques e comas insulínicos, intensificados pelo sadismo e pela perversão de uma cultura da mortificação”. Ele conseguiu retomar sua vida e se recuperar após um tratamento em serviço aberto com Nise da Silveira: “A vida, a convivência, a arte e o afeto, foram os melhores remédios”. Afeto incondicional, sem pedir nada em troca, fragmentação para cima, celebração. Quando a fragmentação é para cima, Milton explica, vivemos a potencia da nossa própria força, livre daquilo que a ensejou. Deixamos de nos ensimesmar sozinhos. Então, esta fragmentação não é vivida na solidão. Ela é um desvio. É a segunda morte. Morte impessoal que se vira contra a própria morte e gera um segundo acontecimento: o surgimento do “plebeu”, do homem sem qualidades, do novo homem do eterno retorno, ou do super-homem (Gil, 2008, 93). Mas é preciso cautela na escolha dos meios do procedimento. Samuel Enoque: — Eu sou a sua mãe. Ao invés apertar o meu pescoço, como costuma fazer com muitos visitantes do Nise, Samuel segura meu pescoço e me beija a boca e vai embora. É do desejo construir um corpo-sem-órgãos. Foi ai que percebi: sou um cavalo em disparada, que morreu numa praça pública, babando espuma, cansado de tanto desejar. Dissolução, estilhaçamento do eu. Como passar do corpo-sem-orgãos-destruidor, do corpo peneira, ao corpo-sem-órgãos-criador? (Gil, 2008, 181). A aterrisagem: Vitor Pordeus: – Você precisa cuidar da sua espiritualidade. Vitor era um menino no carro me dizendo em tom de bofetada. Espiritualidade? Espiritualidade é corpo, respondi raivosa. Ele concordou e ao mesmo tempo jogou uma mulher ferida em meu colo. A jovem mulher estava estirada na calçada, cansada demais para chegar na UPA. Vitor a colocou no carro, ela queria vomitar. A passamos para o banco de trás para evitar que o motorista se atrapalhasse. Ela era uma jovem mulher que dizia ter tanta raiva de si mesma que bateu a cabeça na parede, inúmeras vezes, até sangrar. Seus olhos estavam roxos de dor. Ela dizia querer enlouquecer e deitou a cabeça em meus ombros. Aterrorizada pelo medo de não poder acolher a mulher que sentia dor, busquei o olhar do menino no carro. Vitor olhava pela janela, como se não tivesse nada haver com aquilo. Ele me deixava sozinha com a desconhecida mulher que tinha dor. Foi quando senti o cheiro dela. Era um perfume de corpo, estranho ao olfato, como uma rosa que fica por muito tempo num vaso com água, seu caule de desfaz e aquele esfacelar-se pastoso espalha-se pelos dedos, e o cheiro da rosa sobe. Toquei seu rosto: Tudo era pele, cabelos, olhos roxos, esparadrapo e lamento. E havia também o latente desejo de enlouquecer. É possível tocar a vida pulsando? Judith-Reginaldo-Naná me pergunta: o que você sabe sobre o amor? Estou viva, então sei do amor, lhe respondi ressabiada. Ele riu da resposta certeira em tom de pergunta. Se estou viva, sei do amor? Era óbvio, Judith-Reginaldo-Naná era um deus que podia pisar na terra, deus pleno em corpo, deus cansado de subir os degraus, deus cujos músculos não suportavam mais o peso dos passos. Mas ele seguia impiedoso: O que você sabe do amor? Mais uma vez, busquei o menino no carro, Vitor ainda olhava pela janela. Ele fazia de propósito, corifeu de Nise, seguia me enlouquecendo com seus sussurros: “cavalos são bichos selvagens. Não se doma um cavalo pela força, mas pelo espirito”. Um homem que cura com planta se aproxima. Peço um cigarro. Fumo. Vomito. Mexericas. Fecho os olhos para enxergar e vejo o preciso momento em que uma mulher de longos cabelos loiros, se transforma em borboleta, o exato segundo em que ela sai do casulo e voa. “Espiritualidade é corpo, tem que cuidar”, Vitor agora olha para mim. Choro e toco meu corpo no rosto da jovem mulher ferida em meu colo. Sim, posso acolher a mulher ferida que sente dor e deseja enlouquecer. Afeto incondicional. Ocupar é se deixar invadir, se deixar tomar, é também tomar, invadir. Segundo o dicionário, ocupar é encher um espaço de lugar e de tempo. Ocupar é uma afirmação, é afirmar-se, é afirmação da presença de um povo que nos habita. Foram três semanas de intensas atividades e convívio durante a Ocupação do Instituto Nise da Silveira. Artistas de rua, loucos, poetas, cientistas, cada um dos nove quartos do Hotel da Loucura foi tomado, invadido, ocupado. Gente de todo o Brasil. Uma multidão ardente, desejosa de sol, do quente das relações. Nas paredes do hotel, o registro: As únicas pessoas para mim são as loucas. Loucas para amar. Loucas para viver. Loucas para serem salvas. Que querem tudo ao mesmo tempo. E que bocejam diante do comum. E que ardem, ardem e ardem, como fabulosos fogos de artifício. E que explodem, em mil centelhas, entre as estrelas. *Versão p escrita da fala apresentada à Casa de Rui Barbosa, seminário “A ascensão selvagem da classe sem nome – tatu or not tatu”, em 6 de setembro de 2012 (Outras Palavras)

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Soledad

SOLEDAD BARRETT, UMA HEROÍNA LATINOAMERICANA Por Aluizio Palmar · 25 de agosto de 2012 · Nenhum comentário Imagens, Resistência · Publicado no site http://elmuertoquehabla.blogspot.com.br/2011/01/soledad-barret-lleno-de-asombro-un.html Soledad Barret llenó de asombro a un Uruguay que vivia en la luna El 8 de enero de 1973 moría asesinada en Recife (Brasil) Soledad Barrett Viedma. Francisco Corral ABC (Paraguay) El 8 de enero de 1973 moría asesinada en Recife (Brasil) Soledad Barrett Viedma. Tenía 28 años, había nacido en Paraguay y era nieta del escritor hispanoparaguayo Rafael Barrett. Su brutal asesinato a manos de la policía política brasileña causó una profunda impresión entre las personas que la conocieron. Mario Benedetti escribió en su memoria el poema “Muerte de Soledad Barrett”. Daniel Viglietti compuso la canción “Soledad”. Cuando en 1977 llegué por primera vez a Asunción, Soledad Barrett permanecía viva en la retina de muchos. Su trágica muerte, ocurrida cuatro años antes, aún despertaba el horror y las lágrimas de quienes la habían conocido. Todos la recordaban como una joven adorable, extraordinariamente bella y dotada de un especial encanto personal con tu pinta muchacha pudiste ser modelo actriz miss paraguay carátula almanaque Poseía, además, esa particular gracia para el canto y la danza que brota como una armonía natural en muchas mujeres paraguayas. Quienes la escuchaban, quedaban inevitablemente deslumbrados por la magia suave de su sonrisa y de su voz con sólo colocárteles en frente sólo mirarlos sólo sonreír sólo cantar cielitos cara al cielo Pero si notable era su belleza física y su atractivo externo, no era menor la integridad de su personalidad y de su carácter: bondadosa, solidaria, sensible a todos los dolores ajenos e indiferente a los propios, rebelde frente a las injusticias, decidida, valiente. Soledad poseía una sólida conciencia moral que la impedía permanecer indiferente ante el despotismo y la empujaba a colocarse al lado de los oprimidos. Se diría que los ardientes e incisivos escritos de su abuelo, la denuncia dolorida de la explotación que Rafael Barrett había plasmado, por ejemplo, en “El dolor paraguayo”, se habían hecho carne viva en la persona de la nieta. pero el abuelo Rafael el viejo anarco te tironeaba fuertemente la sangre y vos sentías callada esos tirones ¿Quién podría sospechar que la vida injusta y cruel (o mejor dicho, la cruel condición de los seres humanos) iba a deparar a esta joven extraordinaria uno de los destinos más terribles que la mente humana pueda imaginar? Paraguay, Uruguay, Cuba y Brasil Había nacido el 6 de enero de 1945 en Paraguay. Y quienes gusten de cábalas o concedan algún valor al ciego azar de las fechas del calendario, anoten la curiosidad de que su abuelo Rafael había nacido un día después, el 7 de enero; y un día más tarde, el 8 de enero, fue la fecha fatídica de su propia muerte. Soledad se exilió en Uruguay con sus padres y vivió en Montevideo buena parte de su juventud. Allí protagonizó en julio de 1962 un incidente que tuvo amplia repercusión en la opinión pública uruguaya: un grupo neo-nazi la raptó en su condición de destacada dirigente estudiantil y con amenazas de muerte quisieron obligarla a gritar sus consignas. Como Soledad se resistió, le grabaron con una navaja cruces gamadas en la carne. hace diez años tu adolescencia fue noticia te tajearon los muslos porque no quisiste gritar viva Hitler ni abajo Fidel Era el comienzo de la violencia que en Uruguay llevaría a la instauración del régimen militar. Y Soledad tuvo que abandonar también ese país. Vivió varios años en Cuba y allí conoció al brasileño José María Ferreira de Araujo; se casaron y tuvieron una hija. Él volvió a Brasil en 1970 para integrarse a los grupos que en aquellos años aspiraban a realizar la revolución socialista inspirados en el ejemplo cubano. Un año después, Soledad le siguió. Al poco tiempo de llegar a Brasil supo que José María había sido apresado y muerto. Soledad encontró en esa muerte un motivo más para seguir en la lucha contra las dictaduras que por aquellos años dominaban los países latinoamericanos. Entra en escena el “Cabo Anselmo” Se llamaba Anselmo dos Santos y había tenido una actuación muy relevante en la política brasileña de los años 60. Fue uno de los líderes del llamado “movimiento de los marineros” que en 1963 se atrevió a desafiar la rígida estructura militar de la Marina reclamando condiciones dignas y el elemental respeto a la dignidad humana de los soldados. Bien es verdad que la situación política era favorable: el gobierno progresista de Joao Gulart no veía con malos ojos esas reivindicaciones. El 30 de marzo de 1964, cuando sólo tenía 24 años, el Cabo Anselmo tuvo su gran día de gloria. Como portavoz de los marineros que estaban amotinados, Anselmo compartió la tribuna nada menos que con el propio presidente de la República, João Gulart, en un momento trascendental para la historia de Brasil, una de las ocasiones que todos los libros de historia recogen. Fue en el local del Automóvil Club de Río de Janeiro, en un acto público que se recuerda como el último discurso de Gulart. A las pocas horas, al amanecer del día siguiente, se produjo el golpe de Estado que iniciaba 21 años de dictadura militar en Brasil. Como el personaje destacado que era, Anselmo fue expulsado del ejército en uno de los primeros decretos que firmó el nuevo gobierno militar y empezó a ser buscado intensamente. Consiguió asilarse en la embajada de México, pero luego renunció al asilo y abandonó la embajada para integrarse en los grupos que se mantenían en la clandestinidad. Poco después fue preso y permaneció detenido durante varios meses hasta que consiguió escapar de la prisión y salir de Brasil. Tras una corta estancia en Montevideo, viajó a Cuba donde permaneció desde finales de 1965 hasta el 15 de septiembre de 1970, fecha en que regresó a Brasil con identidad falsa para unirse a la lucha clandestina que en esos momentos se estaba organizando contra la dictadura. En la vida de Soledad se cruza el Cabo Anselmo Anselmo era amigo y camarada del compañero de Soledad, José María Ferreira, que también había sido marinero y había participado en las revueltas de Río de Janeiro. Es seguro, por tanto, que Soledad y Anselmo coincidieron en Cuba, e incluso tal vez ya antes en Uruguay. Cuando José María regresa de Cuba a Brasil entre junio y julio de 1970 junto con Edson Neves Cuaresma, uno de sus cometidos consistía en preparar el terreno a Anselmo y a otros que iban regresando desde el exilio. Pero coincidiendo casi con la vuelta de Anselmo (septiembre de 1970) José María es capturado y muerto. Soledad, por su parte, como ya hemos dicho, viaja a Brasil un poco después, en los primeros meses de 1971. Y sólo en Brasil sabe de la muerte de José María. Con el paso del tiempo, las vidas de Soledad y del viejo camarada y amigo de José María se van acercando; y Anselmo acaba convirtiéndose en el nuevo compañero de Soledad. Pero lo terrible de la historia, es que el Cabo Anselmo… era en realidad un infiltrado, un agente al servicio de la policía. La otra vida de Anselmo ¿Cómo y en qué momento pudo convertirse en un delator aquel joven que había llegado a ser todo un mito de la izquierda y que a los 24 años había alcanzado mayor protagonismo político que ningún otro líder revolucionario a esa edad? Algunos, como Edgar Morel o Jarbas Marques, que le conocieron en los años 60, dicen que en aquellos momentos ya sospecharon que podía ser un agente provocador encargado de radicalizar el movimiento de los marinos para fomentar enfrentamientos que justificaran el golpe militar. Y alegan como apoyo de esa versión la extraña historia de su renuncia al asilo en la embajada de México y su posterior huída de la cárcel. Otros, creen (y esto parece ser lo más probable) que cambió de bando cuando fue preso en São Paulo el 30 de mayo de 1971, unos ocho meses después de haber regresado de Cuba. La tortura y las amenazas de muerte habrían conseguido que Anselmo se prestara a colaborar con la policía política. En cualquier caso, no hay ninguna duda (y él mismo lo ha confesado) de que a partir de 1971 Anselmo colabora como confidente con los más sanguinarios grupos de la represión. Y lo hace con una eficacia terrible ¿se imaginan tener como infiltrado al más emblemático joven líder revolucionario? Nadie hubiera podido nunca desconfiar del prestigioso líder de los marineros. La razón se resiste a aceptar que alguien pueda llegar a tal grado de inhumanidad y de vileza como para denunciar sistemáticamente durante casi dos años a decenas (tal ven centenares) de compañeros, lo que significaba entregarles a la tortura y la muerte. Pero Anselmo llegó aún más lejos y completó su miserable traición entregando a los seis miembros del grupo del que él mismo formaba parte como infiltrado. Entre ellos se encontraba su propia compañera, Soledad, que además estaba embarazada. Los seis fueron apresados, torturados y muertos. La “masacre de la Chácara de São Bento” La versión oficial fue la de un “enfrentamiento a tiros” ocurrido el 8 de enero de 1973 en un lugar próximo a Recife conocido como la Chácara de São Bento. En el tiroteo entre la policía y un grupo de siete subversivos, seis de ellos habrían sido muertos y uno habría conseguido escapar. El que supuestamente habría escapado sería Anselmo y mediante esa estratagema, la policía esperaba poder seguir utilizando sus servicios. No sirvió de mucho, pues la traición quedó al descubierto y Anselmo se vio obligado a desfigurar su rostro para no ser reconocido y a vivir oculto desde entonces. Sólo a partir del año 1995, gracias a la ley nº 9.140, pudo crearse en Brasil una “Comisión Especial de Reconocimiento de los Muertos y Desaparecidos Políticos”. En 1996 la Comisión se ocupó de aquel asunto y enseguida confirmó lo que siempre se había sospechado: que la versión oficial era totalmente falsa. Se constató que uno de los seis integrantes del grupo (José Manoel da Silva) fue apresado la noche del día antes, 7 de enero, en una gasolinera. Otro de ellos (Jarbas Pereira Marques) fue detenido en la librería en la que trabajaba. Otros dos (Eudaldo Gomes da Silva y Evaldo Luiz Ferreira) en sus domicilios. Y los otros dos (Pauline Reichstul y Soledad Barrett) fueron detenidas en la boutique donde trabajaban. Una de las testigos presenciales, Sonja María Cavalcanti, testificó ante la Comisión que “Soledad y Pauline estaban en la boutique cuando cinco hombres, diciéndose policías, invadieron el local, golpearon salvajemente a Pauline mientras Soledad, que estaba embarazada, sólo se preguntaba insistentemente ¿por qué?”.. “después las dos fueron llevadas en dos autos”. Cuando le fueron mostradas fotos, la testigo identificó al Cabo Anselmo como uno de aquellos cinco hombres. No hay palabras que puedan reflejar lo que pasaría en aquellos momentos por la cabeza de Soledad. Tan sólo la sequedad tremenda de ese repetitivo “¿por qué?” nos indica algo de su desconcierto ante la brutal densidad del drama. Ni la más terrible tragedia griega ha llegado a dibujar una situación semejante: descubrir de golpe que se ha incubado el huevo de la serpiente y que su pareja y padre de su futuro hijo se ha transfigurado en el verdugo que empujará a la muerte a sus compañeros, a ella misma y a su propio hijo antes de nacer. mi vida entera no alcanza para creer que puedan cerrar lo limpio de tu mirada; no existe tormenta ni nube de sangre que puedan borrar tu clara señal Las declaraciones presentadas ante la Comisión son estremecedoras. Para no abundar en el horror, nos quedamos con una parte del testimonio de la abogada Mércia Alburquerque que logró entrar al depósito de cadáveres del cementerio de Santo Amaro y que describe así la escena que contempló: “Pauline estaba desnuda, tenía una perforación en el hombro y parecía haber sido muy torturada. Jarbas tenía perforaciones en la cabeza y en el pecho y marcas de cuerdas en el cuello. Soledad, también desnuda, tenía a su alrededor mucha sangre y a sus pies un feto”. Así, con esa imagen sangrienta de la crueldad, pusieron injusto fin a la vida de aquella mujer extraordinaria que fue Soledad Barrett. Su corta existencia fue un canto de rebeldía y libertad; su final, una triste historia de lucha, amor, traición y muerte en tiempos oscuros de dictadura. Una triste historia que no debería ser olvidada. Soledad no viviste en soledad por eso tu vida no se borra simplemente se colma de señales Soledad no moriste en soledad por eso tu muerte no se llora simplemente la izamos en el aire http://youtu.be/oiCnHj40yO Mario Benedetti y Daniel Viglietti son dos referentes de la palabra comprometida del Uruguay. No es casual que se hayan reunido y que esa reunión haya perdurado en el tiempo, abriendo un espacio que fue resignificándose con el paso de los años. En 1978, cuando el poeta y el cantautor se encontraron en el exilio en México cayeron en la cuenta de cuánto había en común en lo que estaban escribiendo cada uno por su lado y así nació la idea de encontrarse en A dos voces. Lo que comenzó como una experiencia que respondía a la necesidad de alzar las voces y de unirlas en el exilio terminó siendo un espectáculo que mantuvieron durante 27 años, y que llevaron por distintos países, de este lado de la orilla, en 1984 en Obras Sanitarias y en 1993 en el Gran Rex, y también en Montevideo, en 1985 en el cine 18 de Julio. “Lo que hicimos fue un trabajo casi de hilanderos, de tejido, empezamos a tejer confluencias”, definiría más tarde Viglietti. Así se entrelazan las voces de ambos cantando y recitando en homenaje a Roque Dalton (A Roque, de Benedetti, Daltónica, de Viglietti), a Nicaragua, a Chile y Salvador Allende. Y así van desfilando clásicos de cada uno como Bandoneón y Por qué cantamos, entre lo más cantado y repetido en postales de la obra de Benedetti, La llamarada y Otra voz canta, entre los temas más conocidos del repertorio de Viglietti. Y están los versos que cada uno por su lado escribió en homenaje a Soledad Barret, la militante paraguaya secuestrada en 1962 en Montevideo y asesinada en Recife, Brasil, y que tienen un significado especial en el disco Mario Benedetti recuerda en diálogo con Página/12 la importancia que tuvieron estos versos en el origen de A dos voces: “Con Daniel éramos muy amigos, desde hacía años. Nos encontramos en México, en el exilio, y empezamos a hablar de lo que estaba haciendo cada uno. Que esta canción, que este poema… Nos sorprendió encontrar que los dos le habíamos escrito a Soledad Barret, porque la habíamos conocido y le teníamos mucho cariño”, cuenta el autor de Gracias por el fuego. “Empezamos a ver que teníamos otros temas comunes, y así fuimos armando un recorrido de poesía y canción. Con el tiempo fuimos introduciendo muchos cambios en el repertorio, pero el poema y la canción de Soledad Barret siempre quedaron, son especiales para nosotros”, explica el poeta, que antes de A dos voces ya había hecho la experiencia de llevar sus versos a los escenarios junto a Alberto Favero y Nacha Guevara, con éxito masivo. Soledad Barret y La noche de los caimanes http://youtu.be/oiCnHj40yO “Se recuerda para preparar un futuro más justo, más fraternal y sin guerras” Arthur London Escrito por: GRACIELA AZCÁRATE Corría el año 1973 y en el Luna Park de Buenos Aires, Mikis Teodorakis acompañado de una orquesta sinfónica y un coro griego atronaba con su… “era la noche de los caimanes”. Los jóvenes no sabiamos que íbamos a ser traicionados. Era el músico de la película Estado de sitio, del relato de Dan Mitrione, de Costa Gravas, de la noche de los coroneles en Grecia. Era un tiempo de apocalipsis. Pero nosotros, la juventud de ese entonces no sabiamos nada de lo que estaba por venir. El genial compositor griego le habia puesto musica al Canto General de Pablo Neruda que fue premonición y augurio. En septiembre, en el Sur profundo se inicio la larga noche de espanto para los chilenos, en Buenos Aires la Triple A de López Rega desaparecía la juventud en flor y en Brasil, al empezar el año, el 8 de enero de 1973 para ser precisos mataban bajo tortura a Soledad Barret la nieta del divino Rafael Barrett el escritor anarquista español. El 8 de enero de 1973 fue torturada y asesinada en la ciudad de Recife en el norte de Brasil, Soledad Barrett Viedma. Tenía 28 años, había nacido en Paraguay y era la nieta del periodista español Rafael Barrett. Mario Benedetti escribió en su memoria el poema “Muerte de Soledad Barrett” y Daniel Viglietti compuso la canción “Soledad”. Sus biógrafos la relatan llena de encanto y con la gracia tan particular de la mujer paraguaya. Era bella por fuera pero por dentro la integridad de su personalidad y de su carácter bondadoso y solidario la hacia sensible a todos los dolores ajenos e indiferente a los propios. Era rebelde frente a las injusticias, decidida, valiente. Soledad estaba poseída por la sólida conciencia moral del abuelo que le impedía permanecer indiferente ante el despotismo y la empujaba a colocarse al lado de los desdichados. Como un mandato ancestral, como esas “cartas del pasado” que recuerdan toda una obligación generacional es posible que ella reinterpretara “los bastonazos aplicados por su abuelo al duque, que en realidad fueron, un verdadero vapuleo a toda una clase social atrincherada en sus bandidescos privilegios”. Porque el abuelo escribió ardientes e incisivos escritos donde denuncio la explotación de los yerbatales plasmado en “El dolor paraguayo”, “que se habían hecho carne viva en la persona de la nieta./pero el abuelo Rafael el viejo anarco/ te tironeaba fuertemente la sangre/ y vos sentías callada esos tirones” Soledad Barrett nació el 6 de enero de 1945 en Paraguay. Por un juego de cábala o de azar su abuelo Rafael nació un día después en 1876, y casi un siglo después la mataron de manera innoble y a traición. Soledad y su familia se exiliaron en Uruguay y vivió en Montevideo buena parte de su juventud. En julio de 1962, siendo una adolescente un grupo neo-nazi la raptó por su condición de dirigente estudiantil, la amenazaron de muerte, la quisieron obligar a gritar consignas por Hitler y como se negó le grabaron en carne viva una cruz gamada. Debió exiliarse y vivió varios años en Cuba donde conoció al brasileño José María Ferreira de Araujo con el que se casó y tuvo una hija. Él regreso a Brasil en 1970 para integrarse a los grupos clandestinos que trabajaban por el socialismo pero es apresado y muerto. Ella entonces encuentra a su ángel de la muerte. Se llamaba Anselmo dos Santos y tuvo una actuación muy relevante en la política brasileña de los años 60. Fue uno de los líderes del llamado “movimiento de los marineros” que en 1963 se atrevió a desafiar la rígida estructura militar de la Marina reclamando condiciones dignas y el elemental respeto a la dignidad humana de los solda Desde 1971 Anselmo colaboró como confidente con los más sanguinarios grupos de la represión con una eficacia terrible. El cabo Anselmo fue maestro de inhumanidad y vileza porque denunció sistemáticamente durante casi dos años a centenares de compañeros, lo que significaba entregarlos a la tortura y la muerte. Anselmo llegó bien lejos y completó su traición entregando a los seis miembros del grupo del que él mismo formaba parte como infiltrado. Entre ellos estaba su propia compañera, Soledad, que además estaba embarazada. Los seis fueron apresados, torturados y muertos. en lo que se llamo la masacre de la Chácara de São Bento” La versión oficial habla de un “enfrentamiento a tiros” ocurrido el 8 de enero de 1973 en un lugar próximo a Recife conocido como la Chácara de São Bento. Sólo a partir del año 1995, gracias a la ley 9.140, pudo crearse en Brasil una “Comisión Especial de Reconocimiento de los Muertos y Desaparecidos Políticos” En 1996 la Comisión se ocupó de aquel asunto y confirmó que la versión oficial era falsa. De los seis integrantes del grupo, José Manoel da Silva fue apresado la noche del día antes, 7 de enero, en una gasolinera, Jarbas Pereira Marques, fue detenido en la librería en la que trabajaba, Eudaldo Gomes da Silva y Evaldo Luiz Ferreira fueron apresados en sus domicilios. Pauline Reichstul y Soledad Barrett fueron detenidas en la boutique donde trabajaban. Una testigo presencial, Sonja María Cavalcanti, testificó ante la Comisión y dijo: “Soledad y Pauline estaban en la boutique cuando cinco hombres, diciéndose policías, invadieron el local, golpearon salvajemente a Pauline mientras Soledad, que estaba embarazada, sólo preguntaba insistentemente ¿por qué?”… “después las dos fueron llevadas en dos autos”. Cuando le fueron mostradas fotos, la testigo identificó al Cabo Anselmo como uno de aquellos cinco hombres. …Era la noche de los caimanes…y Soledad descubrió de golpe que habia incubado el huevo de la serpiente, que su pareja y el padre de su futuro hijo era el verdugo que empujó a la muerte a sus compañeros, a ella y a su propio hijo antes de nacer. “mi vida entera no alcanza para creer/ que puedan cerrar lo limpio de tu mirada;/ no existe tormenta ni nube de sangre que puedan borrar/ tu clara señal” Las declaraciones presentadas en 1995 ante la Comisión de reconciliación por la abogada Mércia Alburquerque que logró entrar al depósito de cadáveres del cementerio de Santo Amaro son estremecedoras: “Pauline estaba desnuda, tenía una perforación en el hombro y parecía haber sido muy torturada. Jarbas tenía perforaciones en la cabeza y marcas de cuerdas en el cuello. Soledad, también desnuda, tenía a su alrededor mucha sangre y a sus pies un feto”. solpernasmarcadas 150x150 SOLEDAD BARRETT, UMA HEROÍNA LATINOAMERICANA (Documentos Revelados)