sexta-feira, 31 de maio de 2013

Frida kahlo

O vermelho de Frida Kahlo
em artes e ideias por Hudson Eygo em 28 de mai de 2013 às 02:05

A artista mexicana de traçado firme e formas surreais teve sua vida marcada pelo vermelho de seu sangue e de suas paixões. Consumida pela agonia incessante de ser ela mesma, Frida Kahlo sempre preferiu apoiar-se em suas próprias verdades para sobreviver à dor e às suas agonias.


“No se si mis pinturas son o no surrealistas pero que lo si estoy segura es que son la expresión más franca de mi ser.”






Assustadoramente excitante. Essa definição é – a meu ver – a melhor forma de descrever a obra de Frida Kahlo (1907-1954). A artista mexicana de traçado firme e formas surreais teve sua vida marcada pelo vermelho de seu sangue e de suas paixões. Consumida pela agonia incessante de ser ela mesma, Frida sempre preferiu apoiar-se em suas próprias verdades para sobreviver à dor e às suas agonias.

Magdalena Carmen Frieda Kahlo y Calderón, de nascença, Frida Kahlo por opção, a artista tinha uma personalidade forte e marcante. Talvez tenha sido – em uma análise superficial - essa devoção com que enxergava a vida, e o viver, o melhor modo que ela encontrou para lidar com as tragédias de sua história. Digo “em uma análise superficial”, pois Frida não é, nem nunca foi, uma dessas personalidades que se permitem ser entendidas. Sejam lá quais foram os motivos da pintora, nobres ou torpes, uma coisa é certa: mergulhar no mundo cheio de formas de Kahlo é uma viagem sem volta.


Imprevisível e autêntica - como só ela sabia ser - a originalidade sempre esteve presente em cada instante de sua trajetória. O colorido de sua vida foi consecutivamente marcado pelo gosto intrínseco e ferroso do vermelho que, em um momento ou outro, lhe era empurrado garganta a baixo.

A primeira vez foi aos seis anos de idade quando, vítima de poliomielite, Frida se viu fadada a passar o resto de sua vida com uma deficiência, uma perna fina e um pé torto, que lhe rederam o apelido de “Frida pata de palo”.

A segunda vez em que ela se viu assediada pelo aconchego do vermelho foi quando, embalada pelos sonhos de cursar medicina, entrou para o “Las Cachuchas” a Liga da Juventude Comunista Mexicana onde, inesperadamente, conheceu o jovem Alejandro Gómez Arias. E o aroma doce do vermelho preenche o vazio de uma vida solitária. Nos braços de seu eterno “Alex”, Frida se rendeu a seu primeiro amor sem reservas. Essa foi à terceira vez que sua vida foi marcada pelo vermelho.



Na quarta vez em que o vermelho atravessa a vida de Frida, foi sem pedir licença, de um modo menos quente e romântico, na forma de uma viga de ferro que violentou sua pélvis e saiu pela sua vagina. No súbito acidente de um ônibus contra um trem, ela perdeu sua virgindade, seu corpo, seu sangue e seu grande amor.

Frida experimenta, literalmente e integralmente, o que é a morte, e todos os limites do que chamamos de dor, mas que, para ela, adquirem um novo significado. É em meio aos pedaços de seu corpo todo desfeito e refeito, fadada à sua própria forma desconstruída e cirurgicamente recriada, que Frida entra em contato com a pintura.
“Pinto autorretratos por que estoy gran parte de mi tiempo sola, por que soy la persona a quien mejor conozco” - Frida Kahlo


E no quinto encontro, o vermelho molhado da tinta, esboça nas telas a dura realidade com a qual Frida tem que viver e conviver diariamente. Sua verdade. Seu modo de enxergar a sua própria vida, para muitos, insano e surreal, para ela, nada mais era que sua realidade expressada em pincel e tinta. Frida tinha um traço forte, marcante e encharcado de sentimento.




Depois de ter a coluna vertebral destruída, e de passar por diversas cirurgias, a jovem Frida teve seu corpo reconstruído. Foi nesse período, fadada a usar um corselete de gesso que ia de sua clavícula até a pélvis, presa em seu leito várias horas por dia, que ela começou a pintar. Utilizando a velha caixa de tintas de seu pai, um cavalete especial e um espelho instalado sobre sua cama, Frida arriscava-se em pintar autorretratos.

Aos 21 anos ela entrou para o Partido Comunista, onde conheceu pintor Diego Rivera (1886-1957), seu inferno e sua salvação. É possivelmente aqui que o vermelho se apresente à Frida em sua forma mais densa e escura. Em sua paixão por Rivera, Frida se viu corrompida e impelida a despir-se de seus preconceitos, tornando-se permissiva, experimentou a lesividade de seus mais primitivos instintos.

O dia 21 de agosto de 1929 é eternizado como a data de seu casamento com Rivera, e o início de uns dos relacionamentos mais intensos, sedutores, turbulentos e inebriantes de todos os tempos. O sexto encontro de Frida com o vermelho é marcado a lápis nessa data no calendário. Ela se entregou de corpo e alma a essa paixão que mudaria sua vida e obra para sempre.



No momento mais frágil de sua vida, em que ela se encontrava perdida e assustada, estranha de seu próprio eu, aprisionada em um corpo destroçado, Rivera lhe apareceu como uma base sólida, transmitindo segurança, acreditando nela e, principalmente, acreditando em sua arte. A pintora nunca negou saber dos casos extraconjugais de Rivera, todavia sujeitou-se a eles. Estimando não perder seu grande amor, acabou perdendo-se de si mesma. Nessa busca, Frida foi mais longe que qualquer um e, ao assumir essa nova identidade, perdeu-se em si mesma e se reinventou, descobrindo novos prazeres.

As próximas vezes em que o vermelho se mostra para Frida são tentativas menos sedutoras, inebriadas pelo aroma torpe da morte e do adultério. A série de acontecimentos que segue marca profundamente seu casamento, sua obra e sua vida. Em meios aos vários adultérios de seu marido, às brigas exaustivas e violentas no casamento, à morte de seus pais, Frida sofre a amargura de três abortos - por complicações herdadas do acidente de ônibus - e descobre um caso de seu marido com sua irmã mais nova.

Impedida da realização de seu maior sonho, o de se tornar mãe, e diante da traição imperdoável de seu amor com sua irmã, ela pede o divorcio. E, mais uma vez, e sem explicação, Frida encontra no sofrimento a inspiração necessária para criar, com seu estilo único e tracejado particular.

Aos poucos Frida vai ganhando espaço entre os maiores pintores de seu tempo, e conquistando admiradores em todo o mundo. Sua parceria com André Breton resulta em exposições em Nova Iorque e Paris, a artista mexicana agora tem renome internacional. Mas seu amor por Rivera ainda persiste, e eles reatam o relacionamento conturbado.

13 de julho de 1954 marca a última vez que o vermelho, agora silencioso e embebido de mistérios, cruza o caminho de Frida Kahlo. Ela é encontrada morta em sua casa. Em seu diário, as últimas palavras "Espero que minha partida seja feliz, e espero nunca mais regressar", deixa em aberto a suspeita de um possível suicídio, ou simples embolia pulmonar, resultando de uma forte pneumonia que havia contraído. Frida Kahlo deixa a vida, mas permanece eternizada em suas telas que, mudas, carregam consigo todo o peso e força da história de vida de uma mulher como poucas, autêntica até no seu ultimo ato.

Nota: Todas as frases atribuídas à Frida Kahlo foram retiradas de seu site oficial:http://www.fkahlo.com/espanol/index_espanol.html (acesso em 23 de janeiro de 2013).

Texto originalmente publicado em: http://ulbra-to.br/encena/2013/02/09/O-vermelho-de-Frida-Kahlo


hudsoneygo
Artigo da autoria de Hudson Eygo.
Paraíso dos Loucos.
Saiba como fazer parte da obvious.

Maria Bonita

Jetro Fagundes – Maria, a bonita guerrilheira
Lampião-e-maria-bonita

Lampião e Maria Bonita

Maria_Bonita_MBPor Jetro Fagundes(*), especial para sua coluna no QTMD?

Lá pro rumo do Nordeste
Sertão, Caatinga, Agreste
ainda lembram muito bem
uma guerreira nordestina
Maria, a Bonita heroína
que nunca temeu ninguém

Maria Bonita do Cangaço
nasce em Oito de Março
um dia internacional
ano de mil e novecentos
e onze, num aposento
Paulo Afonso, zona rural

Maria Gomes de Oliveira
antes de ser cangaceira
com sapateiro se casou
mas sofrendo maus tratos
do sujeito dos sapatos
dele se separou

Apesar dos dezoito anos
amava boneca de pano
morando com seu tio
ali conhece um guerreiro
o rei dos cangaceiros
e com ele se uniu

E a inimiga declarada
da canga tão pesada
que maltrata um boi
como mulher decidida
dona da própria vida
com Lampião se foi

E foi fazer a História
sendo mulher notória
com armas na mão
tendo uma ideologia:
O combate à oligarquia
empobrecedora do Sertão

Era autêntica guerrilheira
contra a vulga bandoleira
polícia do sertão
a milícia que saqueava
desalojava, deflorava
matava a população

Onde oligarca é nefasto
e latifúndio é fértil pasto
pra injustiça dominar
Maria, mulher verdadeira
como bonita guerrilheira
sabia bem se indignar

Por não ser fogo de palha
ao campo de batalha
levou a sua indignação
Pelos notórios feitos
soube adquirir respeito
inclusive de machão

Na temática sertaneja
ela faz parte das pelejas
históricas da região
e há muitas evidências
dela tendo influência
no Capitão Lampião

Avançada pros seus dias

Maria fazia e acontecia
contra donos dos currais
políticos coronelistas
e os maiores banditistas
os milicos oficiais

Maria do rio São Francisco
companheira de Corisco
de Dadá, linda também
E a Dadá, igual guerreira
manuseava cartucheiras
como poucos, muito bem

Maria dos deslocamentos
em constante movimento
nômade, peregrinação
destemida de verdade
odiada pela sociedade
hipócrita de então

Pra quem não acredita
ah, ela era, sim, bonita
no facial, no corporal
mas era bem mais bonita
lutando contra a maldita
oligarquia imoral

Brutalmente assassinada
a sua cabeça, degolada
foi motivo de exposição
mas ficou mais conhecida
mais admirada, querida
na nordestina região

Porém Maria destemida
sempre foi esquecida
no meio intelectual
numa arrogante ironia
a quem nasceu num dia
histórico, internacional

Se muitos historiadores
borra botas de ditadores
não registram seu papel
pouco importa, ela ainda
vive cada vez mais linda
na literatura de Cordel

Seu lutar continua vivo
no imaginário coletivo
e na oral tradução
onde um fato de verdade
longe das parcialidades
se conta com exatidão

Ela vive entre alagoano
sergipano, pernambucano
paraibano, em Bendirá
no santuário de Juazeiro
na pátria do Conselheiro
da Bahia ao Ceará

Vive entre os Cordelistas
irmãos literatos letristas
menestréis das canções
gente de bonito escrito
mais que certos eruditos
acadêmicos medalhões

Longe de ser libertina
conservou-se feminina
na trincheira do lutar
e como mulher genuína
no requinte de menina
soube bem se preservar

Ah, se ela hoje em dia
fosse chamada de vadia
por gente sem ocupação
ela desembanharia
cinto de couro, e daria
uma merecida lição

Paulo Afonso, na Bahia
sim, conserva, hoje em dia
a casa em que ela nasceu
é um turístico atrativo
museu, com acervo vivo
do que lhe pertenceu

Ela que honrou suas vestes
no país cabra da peste
do Xaxado, do Baião
notoriamente era a cara
lá da sua Malhada Caiçara
Paulo Afonso, baiano sertão.

*Jetro Fagundes é cordelista. Nasceu e mora na Ilha de Marajó (Pará). Vende nas ruas o mais popular dos alimentos dessa região, a farinha, o que lhe rendeu o título de Farinheiro Marajoara.  É autor de um livro de poemas , chamado “Jesus, o Cristo Libertador”, onde busca apresentar um Jesus histórico. Colabora com o “Quem tem medo da democracia?”, onde mantém a coluna: “Ventos do Marajó“
(QTMD)

Drummond

A Flor e a Náusea


A Flor e a Náusea

Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cizenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar este tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

( Carlos Drummond de Andrade )
(Magia da Poesia)

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Pensamentando

Entre a vida e a morte do sistema
By
Pablo Chácon

Vivemos a passagem para o capitalismo do comum, dos bens imateriais—diz Toni Negri. E avisa: a transição não será pacífica

Por Pablo Chacón, Revista Ñ | Tradução: Daniela Frabasile

Toni Negri esteve quatro vezes na Argentina. Em 2002, 2005, em março deste ano e na semana passada, quando participou de um fórum de intelectuais organizado pela Secretaria de Cultura na Nação. Embora tenha se mostrado avesso a entrevistas, o pensador italiano aceitou responder a algumas perguntas formuladas pela revista Ñ Digital.

Antes de Buenos Aires, Toni Negri esteve realizando palestras em Santiago do Chile, onde aproveitou para expressar publicamente seu apoio ao movimento estudantil que está colocando o governo de Sebastián Piñera em maus lençóis. O italiano comparou os chilenos com os indignados espanhóis e estadunidenses, e com os ativistas da chamada primavera árabe.

Na Argentina, deu uma palestra na Universidade Nacional San Martín (Unisam) e outra no lançamento da revista Debates e Combates. Negri recordou a Cúpula das Américas de 2005, em Mar da Prata, onde parte do bloco latino-americano, dirigido pelo então presidente argentino, Néstor Kichner, disse não à Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). Também elogiou o movimento piquetero, e até se surpreendeu (ou fingiu supreender-se) quando lhe disseram que nem todos os movimentos sociais estão de acordo com a estratégia econômica do governo.



Você deu muita importância para o movimento dos indignados, mas também foi criticado por não propor uma forma de organização.

Sim, essa é uma das críticas que me fazem. Ontem me perguntaram como fazer para introduzir a noção comum num país como a Argentina, absolutamente atravessado por um conflito (latente ou não) entre o setor agropecuário e o governo, onde os desequilíbrios são notáveis. Bom, a verdade é que eu não sei como fazer isso. É um problema que os políticos argentinos deveriam resolver. Mas eu acredito que a questão dos indignados é produzida num contexto de relativa riqueza, como é na Europa e nos Estados Unidos, que, por uma série de manobras especulativo-financeiras que levam anos, explodiu. Explodiu deixando vários endividados, além de uma juventude que não tem recursos para atingir uma renda mínima. O homem de hoje é um homem explorado. É um homem endividado. Isso também é uma consequência da fossilização das estruturas sindicais clássicas.

Em que sentido isso se dá?

É uma questão velha, que discutíamos desde os anos 1970, quando nasce na Itália a Autonomia Operária, que é uma reação contra a burocracia do Partido Comunista Italiano (PCI), acomodado com a situação de mediador entre capital e trabalho, e corrompido por essa mesma mediação. A ponto—como se diz do outro lado—de que esse capitalismo não foi sequer capaz de distribuir a renda. Mas o problema atual é que a dissociação entre capital e trabalho não existe mais. A sociedade industrial está em transição para outra sociedade, onde o valor mais avaliado é—e será cada vez mais—a produção imaterial. A produção social da riqueza, estruturalmente, será um bem comum. O capitalismo cognitivo se organiza em torno de um bem comum, sem hierarquias, produz ideias, conceitos, é horizontal. Assim, o estudo desses procedimentos—com Michael Hardt—nos fez construir outra noção: o comum, que não é público nem privado, que se autogoverna.

É um compromisso? Diz respeito à crise de representação?

Não, de maneira alguma é uma solução de compromisso. É uma transição para outra forma de capitalismo, definida pelo valor imaterial das ideias. Nessa direção, pode-se falar de um capitalismo cognitivo, e voltar à necessidade de um novo pensamento sobre a emancipação. Precisamente porque a produção social do conhecimento é um bem comum, compartilhável, suscetível de solidariedade e reprodução por fora dos cortes impostos pelo sistema de acumulação baseado no fordismo que Michel Foucault tão bem definiu em seu momento. Estamos indo para um lugar novo, onde não se administra a coisa pública porque o deslocamento do valor é intangível.

Um bem comum—repito—não precisa de um centro de gravidade, a fábrica, o sindicato, o escritório. O próprio corpo, o pensamento operam no espaço público, geram seus atos, podem inventar saberes e formas de organização. Deixamos claro que a transição não será pacífica, e eu não acredito que será. Se não se pensa que os organismos internacionais de crédito são uma extensão dos bancos, não se entendem as medidas que está tomando a Europa para salvar a Grécia, endividando todos os seus habitantes.

Não se entende o disciplinamento a que a Islândia está submetida, ou a Irlanda, que até muito pouco tempo eram consideradas exemplos de capitalismo “responsável”. Sobre a crise de representação, acredito que tudo já foi dito: só vou dizer que ela não é causada apenas por um aumento da demanda dos direitos sociais, mas também por essa divisão entre capital e trabalho. Porque precisará trabalhar sobre esse terreno baldio. E volto pela última vez a falar sobre Barack Obama, sua reforma do sistema de saúde. Ele pensou a reforma junto a movimentos sociais que o apoiaram para que alcançasse o governo. Mas, uma vez no governo, os abandonou. Agora, os movimentos sociais estão instalados em Wall Street, Los Angeles etc. E me animaria dizer que a reforma do sistema de saúde, que era pouco, mas melhor que nada, será boicotado. Não deveríamos ter vergonha de dizer que os presidentes desses países são reféns ou empregados da especulação financeira, dos bancos.

E qual seu julgamento quanto à América Latina?

É o único lugar do mundo onde os movimentos sociais têm certa potência, apesar da crise da forma-partido. Se articularam, mas não sem condições. O problema é que, na medida em que a crise monetária se agrava, também entra em crise a forma-Estado. E ainda não acredito que esse dilema esteja próximo de uma solução imediata. Se existem movimentos sociais, não é apenas por uma crise de representação, mas porque o público e o privado não se distinguem. Dependem dos mesmos insumos. E existe muita corrupção. Brasil, Chile, Argentina, Bolívia, Venezuela são laboratórios políticos: não estão totalmente nas mãos do capital, ao contrário da Europa. Centro-esquerda e centro-direita estão completamente subordinadas ao capital. A crise europeia é a crise do capital financeiro. Para repetir um velho ditado: estamos na presença de algo que não acabou de morrer e algo que não acabou de nascer.
(Outras palavras)

Erotismo feminino

chickporn: entreterimento erótico para mulheres
publicado em artes e ideias por priscilla santos
Cada vez mais presentes em um mercado antes predominantemente masculino, elas impõem novas linguagens ao erótico e provam que o pornô, posto que sexo, também é coisa de mulher.



É um dogma escrito em algum lugar, que mulheres não gostam de pornô. É como aquilo de que os brancos não ouvem rap, algo dito tantas vezes, tão reiterado que soa como verdade imemorial. Bem, devemos admitir que até as crenças mais absurdas têm seu fundamento, e quanto à essa, nada mais compreensível: dominado à décadas pelo olhar masculino, o cinema de sexo explícito é feito para eles, das câmeras às posições, passando pela iluminação tosca e pelas longuíssimas tomadas de sexo oral (nele, claro) somadas às nada factível degustações de semem. Tudo verozmente testado e aprovado por seus senhores.

Mas como se explica que na Inglaterra, o número de mulheres que baixa pornografia na internet cresceu cerca de 30% e que no Brasil, em cinco anos, o canal a cabo Sexy Hot verificou um aumento de 40% para 51% no número de assinantes mulheres? E quanto ao boom de lojas especializadas em apetrechos sexuais, último dos lugares onde encontraremos um homem hetero? Mulheres não gostam de pornô? Percebam, sociedade é movimento constante de relações e de mudança de relações, temos hoje novas demandas, nosso século... ora, nosso século é um império dos desejos e estamos por aqui encontrando novos modos de exercê-lo. Mulher gosta de sexo e, se no pornô tem sexo, é certo que lá estarão elas, devidamente excitadas, no meio dele. Viva!

As mulheres estão ávidas por explorar o entretenimento erótico e criar nele uma linguagem que lhe seja própria, reflete Erika Lust, sueca, uma das pioneiras do cinema pornô direcionado para o público feminino. Ela acredita que, antes de filmes como os seus, seria impossível imaginar o que vemos hoje: homens estimulando suas parceiras para que se juntem a eles na diversão de assistir um filme adulto, produções bem cuidadas e que explorem o sexo dentro de um contexto, ou mesmo cenas com atrizes de peitos reais.


O desenvolvimento do mercado iniciou-se com o chamado cinema erótico para mulheres inaugurado nos anos 80 pela diretora e ex-atriz pornô Candida Royalle, seguida por figuras como Erika Lust (ex-cientista social) onde o foco eram as situações cotidiano-cômicas (mulher atende o entregador de pizza achando que ele queria seduzi-la mas, na verdade, ele esquecera o capacete) ora revanchistas (mulher é traída pelo marido com melhor amiga e resolve dar uma festinha reunindo todos amigos dele do futebol). Hoje o seguimento foi rebatizado, tem-se o chickporn cuja principal potência é a “The Romance Series”, ramo fêmea da produtora “New Sensation”; investindo pesado em histórias românticas, verdadeiros livros Bianca e Julia tornados filme, que são estreladas por nomes da elite pornô norte americana como Tori Black.
O comportamento feminino é relacional, as mulheres se constroem umas às outras de forma mútua, sócio-culturalmente, através da comparação. Observam as outras; sua mãe, a amiga, a capa da Marie Claire. Essa audiência promissora, oriunda da classe média e da classe média alta, quer se identificar com os enredos, quer atrizes que realmente demonstrem gostar do que fazem – teoricamente esvaziando a mecanicidade do sexo-pago, do sexo-trabalho – que demonstrem poder, liberdade, coisas novas, didáticas e realizáveis. Que o cunilingus seja demorado, é essencial. Tudo isso nada menos é do que revolucionário de tornar o sexo explícito “palatável” para as mulheres significa a criação de uma nova linguagem estética que atenda a uma demanda já há tempos interessada no assunto, mas intimidada com as restrições e gosto duvidoso daquelas maquiagens. O pornô no mainstream tem deixado as coisas cada vez mais interessantes, mais refinadas. Finalmente elas também poderão gozar de tão deliciosas películas.



prill
priscilla santos é adoradora de cervejas e colabora com a obvious. Saiba como fazer parte da obvious.

Leia mais: http://obviousmag.org/archives/2010/08/chickporn_entreterimento_erotico_para_mulheres_1.html?utm_source=feedburner&utm_medium=email&utm_campaign=Feed%3A+OBVIOUS+%28obvious+magazine%29&utm_content=Yahoo%21+Mail#ixzz2UXaKddO5

Drummond

Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.


maioridade penal

Perda dos sentidos: um conto sobre maioridade penal
By
Rute Beviláqua

“O estampido se ouviu ao longe, mas não ali nos barracos, onde criancinhas engatinhavam e aprendiam o gosto da terra”

Por Rute Bevilaqua | Imagem: Rubem Grilo

Ele tinha nascido ali na beira daquele rio. A mãe tinha lavado roupa até quase na hora do parto. Ele foi o sétimo filho, a mãe dizia que foi como expelir um caroço de pitomba. A vizinha do barraco ao lado a ajudou, já tinha prática, achou que nem valia mais a pena entrar numa fila do SUS para ser atendida, isso sem contar que estava difícil arranjar uma condução para chegar até lá. O pai só apareceu para conhecê-lo três semanas depois, estava trabalhando longe.

Diziam que viera ao mundo quase pronto para enfrentar as barras que viriam. Era um moleque saudável que pegou com garra o peito da mãe. Esgotada que andava, quase o matou de fome antes de pintar o primeiro colostro. Logo o leite acabou e ele acabou sendo criado com o “Leve Leite”, que tinha que ser muito diluído em água poluída. Milagre foi ter vencido as anemias e as diarreias. A primeira vez que o ar penetrou seus pulmões, o vento soprava do rio Pinheiros para a favela, foi trazendo o cheiro com o qual conviveria o resto da vida. Cheiro de merda nunca o incomodou.

Sua vida foi em cinza e seus olhos se acostumaram a ver o mundo em preto e branco. Cores aconteceriam raramente em sua existência. Ele olhava, mas não via. Logo aprendeu a não ouvir. Para quê ouvir a surra e os gritos da mãe quando o pai voltava bêbado do trabalho no fim de semana? Durante a semana, era bem mais calmo. A mãe saía pra conseguir algum alimento e voltava de noitinha. Neste tempo ele ficava por lá, cuidado pelos irmãozinhos maiores. Quase sempre preso no barraco. Um dos primeiros sabores que aprendeu foi da terra do chão batido, ainda engatinhava quando suas mãozinhas tateavam pelo chão a procura de grãos de arroz e feijão que se espalhavam por toda parte quando os irmãos mais velhos se serviam. Muitas vezes a esses gostos se misturavam os de urina e de diarreia. Enfim, sobreviver ali não era pra qualquer um, faltava de água a oxigênio. Falar em amor ali seria luxo.

A criança mais privada de tudo ainda aprende algumas coisas: foi assim que aprendeu que chorar não adiantava nada, que não tinha a quem pedir ajuda. Foi assim que reagiu quando estuprado aos 5 anos por um vizinho adolescente retardado na presença de duas irmãs de 7 e 9 anos. Foi assim que aprendeu o que era impunidade e adquiriu conhecimentos que o serviriam pelo caminho pelo qual enveredou. Foi assim que aos 17 anos conseguia ser invejado nos arredores, todos o temiam. Foi assim que conseguiu ver lampejos de cores e brilhos no 38 que portava, nas verdinhas que trocava por drogas, nos capôs dos carros que roubava. Foi assim que conseguiu ampliar seu paladar com os hambúrgueres do McDonald’s, sentir cheiros em perfumes que contrabandeava, aprimorar o tato e sentir quase um orgasmo ao apertar gatilhos, quase o mesmo orgasmo que sentia ao estuprar.

Foi por tudo isso que se transformou num imenso buraco negro, que sugava tudo, não retornava nada, e que sempre passou muito longe de uma matéria desconhecida chamada amor. Foi então que explodiu de violência e desapareceu numa tarde em que houve uma batida policial na favela. Ia completar dezoito anos na semana seguinte. O estampido se ouviu ao longe, mas não ali nos barracos, onde criancinhas engatinhavam e aprendiam o gosto da terra.
(Outras palavras)

Marilyn Monroe e Virgínia Woolf

Histórias do Primeiro Sexo: Marilyn Monroe e Virgínia Woolf

Marilyn Monroe e Virginia Woolf, mesmo com todas as diferenças, obtiveram fama, sucesso e alcançaram a posteridade, mas enfrentaram o preconceito e todas as intempéries provenientes do machismo. Ainda assim compartilham frustrações e tragédias que se comunicam.



Marilyn Monroe e Virginia Woolf. Marilyn e Virginia, mulheres de vidas atribuladas, que lutaram por espaço e reconhecimento e que encontraram finais trágicos. Tais percursos são resultados de suas histórias que as aproximam, mesmo que de maneira contestável. As carreiras que tiveram e as escolhas que fizeram para alcançar a notoriedade são pontos que as afastam. Porém, ambas estão unidas no modo como foram exauridas por um mundo hostil à força, ao talento e ao magnetismo feminino. Friedrich W. Nietzsche escreveu a certa altura de seus registros filosóficos que, “Quando as mulheres possuem virtudes masculinas, não há quem resista a elas; quando não possuem virtudes masculinas são elas que não resistem”, o que leva a concluir que as tão aclamadas qualidades femininas de delicadeza, generosidade e de capacidade de resolver conflitos por intermédio dessas duas qualidades citadas, tão alardeadas pelo mercado de trabalho (como algo valorizado por ele), são na verdade forma de consagrar uma ilusão: a da humanização de um sistema bruto em sua essência, o do capitalismo. Um sistema que se apresenta cada vez mais competitivo (que exige especialistas flexíveis), individualista e que abandona seus retardatários. Ou seja, a sensibilidade perde espaço para um tratamento “rés-do-chão”. Neste mundo, sobrevivem Margareth Thatcher, Dilma Rousseff, Angela Merkel etc., mulheres que na aparência não trazem elementos de simpatia ou sedução. Essas líderes políticas contribuem para a sustentação das relações de poder baseadas em princípios que mantêm os mais fortes (a representação de um mundo engendrado por homens brancos judeu-cristãos oriundos do Mediterrâneo que encontram o imperialismo estadunidense liberal capitalista) no topo da cadeia alimentar político-econômica.

Marilyn e Virginia pertencem a um grupo particular, mas muito comum: a de mulheres femininas que possuíam uma força interna sistematicamente fragilizada por severas estruturas de um mundo conservador, impositivo, pungente em suas interdições, porém hipócrita, pois objetificava à mulher, tornando-a dona de casa ou realizadora de fantasia sexual, ao mesmo tempo em que extraía dela qualquer coisa de apelo comercial. Marilyn e Virginia foram pessoas distintas com destinos semelhantes. Virginia foi uma das principais escritoras e intelectuais do século XX, feminista que sempre pensou a condição da mulher na sociedade ocidental. E Marilyn um mito de beleza e sensualidade eternas. No entanto, tais definições as enclausuram na superfície daquilo que aspiraram e realizaram, cingem-nas aos mil e um detalhes que percorrem nosso imaginário sobre essas mulheres públicas.

Marilyn Monroe e Virginia Woolf compartilham frustrações e tragédias que se comunicam: ambas sofreram abuso sexual na infância, ambas não poderão realizar o desejo de se tornar mãe e, no fim, ambas cometeram suicídio, depois de algumas tentativas fracassadas. Marilyn, aos 36 anos, vitimada por uma overdose de medicamentos (ingeriu em excesso barbitúrico); a sua morte é cercada por mistérios e teorias conspiratórias devido ao seu caso sexual com os poderosos irmãos Kennedy, John e Bob, respectivamente, Presidente em chefe e senador da república (ambos assassinados no auge da carreira política). E Virginia, aos 41 anos, ceifou sua própria vida nas águas geladas do rio Ouse, na Inglaterra, após encher os bolsos com pesadas pedras que a impediram de submergir. Ambas estiveram ligadas, também, pela depressão, por uma hipersensibilidade e por inúmeros medos.



Segundo o principal biógrafo de Virginia Woolf, Quentin Bell, que era seu sobrinho (filho de sua irmã Vanessa), a escritora era uma mulher competitiva, porém insegura, que nutria receios da crítica, mas que criou obras memoráveis, mesmo que acossada por esse pavor da reprovação. Ainda, conforme Bell, Virginia não percebia valor em escritores de sua época – pelo menos não publicamente –, como, por exemplo, James Joyce; talvez por revanchismo ou por uma análise aguçada. A autora de obras-primas como “Mrs. Dalloway” (1925), “Passeio ao Farol” (1927) e “As Ondas” (1931), teve relações, ou melhor, ligações românticas com mulheres, mas, segundo seu sobrinho-biógrafo, não houve consumação do desejo carnal com nenhuma delas, pois Virginia entendia o intercurso sexual como algo quase abominável. Porém, apesar disso, nunca afastou de si a vontade de ser mãe. Consta que Leonard Woolf, marido de Virginia e sócio dela na Editora Hogarth Press, considerava temerário uma mulher com a instabilidade psicológica da escritora ter filhos. Apesar de todas as frustrações, Virginia deixou uma enorme contribuição para o desenvolvimento do fluxo da consciência na literatura, e para a crítica da situação da mulher em uma civilização opressora vários ensaios e resenhas.

A deslumbrante atriz de “Nunca Fui Santa” (1956) e “Quanto Mais Quente Melhor” (1959) foi uma mulher problemática, melancólica e ávida pelo reconhecimento de seu talento artístico. De certa forma, Marilyn construiu (ao mesmo tempo em que uma Hollywood, uma mídia, um público estavam à procura de algo etéreo, mas de carne e osso, para perseguir e adorar) sua imagem sobre as vantagens de ser tratada como um símbolo sexual, entretanto, à margem da respeitabilidade como atriz que sempre pretendeu (e merecia por atuações como em “O Príncipe Encantado”, de 1957, ao lado de Laurence Olivier, que lhe rendeu o prêmio “David di Donatello”, maior honraria do cinema italiano). Marilyn Monroe fora (é) a essência do sexo nas telas de cinema e, diferentemente de Virginia Woolf, a exuberante loira, casada três vezes, gostava de sexo e não prescindiu dele como arma, pois abusava de seus atributos físicos para conquistar e de sentir desejada. Segundo Anne Plantagenet, “Marilyn Monroe vai para a cama com todo mundo. Enquanto seu corpo ainda puder servir. Ela precisa ter a prova de que os homens ainda a desejam” (Marilyn Monroe. Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 193). No entanto, o furacão sexual Marilyn escondia uma proeminente inteligência (no caso, a indústria do cinema, os tabloides e a voracidade da cobiça masculina pelo corpo da atriz geravam o bloqueio para tal aparição), a necessidade de ser amada e de não ser apenas uma “boneca de carne”. Na verdade, não escondia, gritava por essas necessidades. Mas num mundo movido por mitos e escândalos que a alimentam, a indústria das celebridades encontrou em Marilyn Monroe um “prato cheio”. A mulher frágil, elegante (sim, Marilyn, na vida real, era uma pessoa invulgar), inteligente (que não conseguiu provar isso aos seus detratores e aos milhares de fãs que cultuaram apenas o símbolo da beleza) e deprimida recebeu a possibilidade de uma releitura – e o mito ganhou novos componentes para reafirmar seu status de imortal – com o lançamento, em 2010, de “Fragmentos – Poemas, Anotações e Cartas de Marilyn Monroe” (no Brasil, editado pela Tordesilhas), que apresenta os pensamentos, as poesias e a visão de mundo da atriz. Além mostrá-la como leitora de Albert Camus, Joseph Conrad, James Joyce entre outros. Uma chance para compreendermos que as aspirações de alguém nem sempre encontram ressonância na vida em que se pôde/conseguiu construir. Marilyn fora vítima do star system, assim como eleita por ele, e quando sua privacidade confundiu-se com sua figura pública seus traumas e desejos incorporaram-se à mulher frágil, na qual a maioria só enxergava futilidade e apelo sexual. No fim, os traumas venceram os desejos.
Simone de Beauvoir, em “O Segundo Sexo”, escreve que, “O privilégio econômico detido pelos homens, seu valor social, o prestígio do casamento, a utilidade de um apoio masculino, tudo impele as mulheres a desejarem ardorosamente agradar aos homens. [...] Disso decorre que a mulher se conhece e se escolhe, não tal como existe para si, mas tal qual o homem a defini” (Ed. Nova Fronteira, s/d, p. 177). No mundo contemporâneo, centenas de mulheres quebram diariamente esse paradigma erigido num mundo masculino denunciado com perspicácia por Simone de Beauvoir. Virginia Woolf não percebeu no casamento uma fuga, um trunfo ou uma necessidade, na verdade, ela se recusava a casar. Porém, mais tarde uniu-se a Leonard, em quem encontrou um companheiro. Marilyn Monroe imaginava o casamento ideal, perseguiu-o e encontrou três matrimônios que faliram ruidosamente. Virginia procurou romper barreiras e derreter grilhões que obstruíam o reconhecimento da vocação feminina para qualquer atividade que uma mulher pretendesse exercer. Já Marilyn buscava a aceitação, um olhar de compreensão e um amor cúmplice, afetivo, que saberia conviver com a mulher complexa, frágil e autocrítica e com o símbolo sexual que planejava aos poucos superar esse status.


Ambas, Marilyn e Virginia sabiam que pertenciam a um mundo em que o homem assumia a prerrogativa (gerada pela imposição física – discursiva, certamente, mas os argumentos eram respaldados no apelo da força corporal) pelas escolhas das mulheres, mas elas, cada uma a seu modo, encontraram formas de se infiltrar nesse universo, que controla os desiderativos femininos, marcas de uma potência criadora (Virginia) e de sedução que vai além da carga erótica de um mito (Marilyn). Contudo ambas eram depressivas, solitárias, possuíam medos irreversíveis e sucumbiram à atração pela morte. Mas esse ponto elevou-as ao panteão das mulheres que deixaram um registro de vida e obra que desmascara um mundo avesso e adverso à fragilidade da beleza e à beleza da fragilidade (tanto a inteligência quanto a beleza feminina são vistas com desconfiança, e, geralmente, dissociadas por esse gigante devorador de sonhos que é o capitalismo, o que vale dizer, um sistema cruel que engendra interdições e pune àqueles que se recusam a render-se a ele).

Nota de curiosidade: Em 1939, Virginia Woolf se encontrou com Sigmund Freud num salão do bairro de Hampstead, em Londres. E Marilyn Monroe consultou-se com Anna Freud, filha do próprio pai da psicanálise.

Observação: Se são as mulheres que possuem a capacidade de gerar as crianças, elas são o Primeiro Sexo, pois sem as fêmeas os machos não povoariam a Terra (e nem teriam a chance de manchá-la com sangue). E, por favor, sem história de costela que dá a vida à Eva, a modo de refutação.


wuldsonmarcelo
Artigo da autoria de Wuldson Marcelo.
Corintiano apaixonado por literatura e cinema, nascido em 1979, em Cuiabá, que possui Mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea e graduação em Filosofia (ambos pela UFMT). É autor do livro de contos “Subterfúgios Urbanos” (2013, Editora Multifoco)..
Saiba como fazer parte da obvious.

Drummond

 Amar – Carlos Drummond de Andrade

Amar – Carlos Drummond de Andrade
Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho,
 e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa,
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

( Carlos Drummond de Andrade )

terça-feira, 28 de maio de 2013

Palestinos

Palestinos derrubam parte do muro do apartheid

20/5/2013, Linah Alsaafin. Al-Monitor Palestine Pulse
“Palestinians Demolish Part of Separation Wall”
 Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Linah Alsaafin
Na 6ª-feira, 16/5, à noite, um grupo de vinte palestinos abriram uma passagem no muro do apartheid, no posto de controle de Abu Dis, entre as vilas de al-Ezzariya e Abu Dis, e derrubaram parte do muro, para chegar aos arredores de Ras il-Amood, em Jerusalém.

A reação do exército de Israel foi, previsivelmente, frenética e desproporcionada. Atiraram com munição real contra os palestinos, além de bombas de som e granadas de choque. O buraco no muro foi ampliado para 4m, e, segundo Salah Khawaja, porta-voz da Ministério do Estado da Autoridade Palestina para Questões das Colônias e Muro do Apartheid, pelo menos três pessoas entraram em Jerusalém e chegaram à Mesquita al-Aqsa para as orações da tarde.

Abu Dis e Ras il-Amood sempre foram cidades vizinhas, antes de serem separadas pelo Muro do Apartheid, que separou vizinhos e parentes e multiplicou as distâncias e as dificuldades para ir de uma vila à outra.

Um jovem palestino escala o muro israelense do apartheid, durante confronto com o exército de Israel, no Dia da Nakba, 15/5/2013, próximo ao posto de controle de Qalandia, nos arredores de Ramallah, Cisjordânia. (Foto de Uriel Sinai/Getty Images)
A derrubada de parte do muro vem na sequência de várias manifestações contra a ocupação israelense, para marcar os 65 anos da ocupação da Palestina para criar Israel, o Dia da Nakba [a Catástrofe], que se completaram dia 15/5. As manifestações prosseguirão durante o verão, segundo Khawaja, e estarão focadas em protestos contra a judaicização de Jerusalém, que Israel tenta conseguir, mediante expulsão de moradores, demolição de casas e assalto, para ocupação, de todas as terras palestinas dos arredores.

De pouco nos servem as negociações, em que não confiamos. Dependemos só de nós mesmos para pressionar a comunidade internacional a tomar medidas concretas, para que Israel seja obrigada a responder pelo que faz  – disse Khawaja a esse Al-Monitor. Em 2004, a Corte Internacional de Justiça definiu o muro do apartheid como construção ilegal, a ser imediatamente demolida. Até agora, não se viu qualquer ação para fazer valer a sentença daquela alta corte. Cabe a nós aplicar a decisão da Corte Internacional.

Yasin Sbeih, residente no campo de refugiados de Shuafat, manifestou seu integral apoio à ação para demolir o muro.

O que aconteceu aqui na 6ª-feira à noite foi excelente. É ação a ser repetida em todos os pontos onde haja muro – disse ele – a tática pode ser efetiva para forçar o exército ocupante a dispersar esforços em várias frentes. Significa também que os palestinos começam a agir para derrubar o muro do apartheid. É ação a ser empreendida em vários pontos, para chamar a atenção para a ilegalidade de todos os muros israelenses, para evidenciar que os muros em nada melhoram a “segurança” de Israel, como alegam. E mostrar que o muro só tem finalidades discriminatórias.

Desde que se divulgaram pela primeira vez os planos para construir uma muralha em torno de Jerusalém, inúmeros analistas têm repetido que a barreira visa exclusivamente a controlar o crescimento demográfico dos palestinos que vivem na cidade – que, em 2012, já eram, pelo menos, 38% da população de Jerusalém, mais de 200 mil pessoas – assegurando espaço exclusivo para colonos israelenses.

Resultado de roubo de terras palestinas pelos judeus

Está previsto que o muro acompanhe todas as fronteiras municipais de Jerusalém – fronteiras que o governo israelense inventou e anexou, 17 dias depois da ocupação de Jerusalém leste em 1967, movimento jamais reconhecido pela lei internacional. O traçado do muro, que não passa de mecanismo para roubo de terras palestinas, inclui os prédios da colônia Gush Etzion, no sul; de Giv’at Ze’ev ao norte; e de Ma’ale Adumim a leste, todas essas colônias exclusivas para judeus, cercando, no total, 164 quilômetros quadrados de terra palestina na Cisjordânia. O muro é construído próximo da região de Jerusalém leste, que fica separada, o que, para os israelenses, garantiria a separação intencional entre os colonos judeus e os habitantes originais palestinos.

Cerca de 60 mil palestinos em várias áreas, com documentos de identidade azuis, de residentes em Jerusalém, estão impedidos de chegar diretamente a Jerusalém, e são obrigados a passar por um posto de controle do exército de Israel, diariamente, para chegarem a escolas e aos respectivos locais de trabalho. É o que acontece com os palestinos que vivem no campo de refugiados Shuafat, em Ras Khamis e nas vilas de Semiramis, Kufr Aqab, al-Ezzariyeh e Abu Dis.

Os enclaves que ficaram na área excluída pelo muro do apartheid não recebem praticamente nenhum serviço público básico. Estão sob jurisdição da prefeitura de Jerusalém controlada por Israel, que os abandonou completamente; e a Autoridade Palestina é proibida, pelo Acordo de Oslo, de entrar nessas áreas. Consequentemente, não é raro ver ali ruas tomadas completamente por lixo, a infraestrutura urbana está destruída, as estradas são praticamente intransitáveis e há alta incidência de crimes de todo o tipo.

Em resumo, nenhuma autoridade local se interessa por garantir serviços municipais básicos à população palestina. Daí resultou a privatização dos serviços públicos por várias empresas e organizações não-governamentais. Mesmo sem receber qualquer tipo de serviço de qualidade satisfatória, os palestinos que ali residem são obrigados a pagar impostos municipais, sob pena de perderem os documentos de cidadania jerusalemita, o que limitaria ainda mais seus direitos de ir e vir e cancelaria o direito, que ainda têm, de estudar e trabalhar em Jerusalém.

A passagem escavada no muro, em Abu Dis, ainda está aberta. Mas o exército israelense já instalou ali seus jipes blindados e soldados armados, até que o governo de Israel reconstrua o muro.
Postado por Castor Filho às 16:11:00
(Redecastor)

Fome

“10 empresas controlam 85% dos alimentos”

José Coutinho Júnior
Da Página do MST

Sociólogo lança livro "Destruição em Massa - Geopolítica da Fome". Foto: Rafael Stedile

O sociólogo suíço Jean Ziegler, ex-relator especial para o Direito à Alimentação da Nações Unidas (ONU), denunciou que a fome é um dos principais problemas da humanidade, em um debate na última segunda-feira, em São Paulo.

- O direito à alimentação é o direito fundamental mais brutalmente violado. A fome é o que mais mata no planeta. A cada ano, 70 milhões de pessoas morrem. Destas, 18 milhões morrem de fome. A cada 5 segundos, uma criança no mundo morre de fome – disse Ziegler.

Na década de 1950, 60 milhões de pessoas passavam fome. Atualmente, mais de um bilhão.

- O planeta nas condições atuais poderia alimentar 12 bilhões de pessoas, de acordo com estudo da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). Não há escassez de alimentos. O problema da fome é o acesso à alimentação. Portanto, quando uma criança morre de fome ela é assassinada – completou.

Ziegler afirma que é a primeira vez que a humanidade tem condições efetivas de atender às necessidades básicas de todos. Depois do fim da Guerra Fria, mais especificamente em 1991, a produção capitalista aumentou muito, chegando a dobrar em 2002. Ao mesmo tempo, essa produção seguiu um processo de monopolização das riquezas. Hoje, 52,8% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial está nas mãos de empresas multinacionais.

A concentração da riqueza nas mãos de algumas empresas faz com que os capitalistas tenham uma grande força política.

- O poder político dessas empresas foge ao controle social. 85% dos alimentos de base negociados no mundo são controlados por 10 empresas. Elas decidem cada dia quem vai morrer de fome e quem vai comer – afirmou Ziegler.

O sociólogo ainda relatou que essas empresas seguem blindadas pela tese neoliberal de que o mercado não deve ser regulado pelo Estado. Segundo ele, na Guatemala, 63% da terra está concentrada em 1,6% dos produtores.

- A primeira reivindicação que fiz, após a missão, foi a realização da Reforma Agrária no país. Fui rechaçado, pois uma intervenção no mercado não é possível. Não havia sequer um cadastro de terras lá: quando os latifundiários querem aumentar suas terras, mandam pistoleiros atacar a população maia que vive ao redor.

Especulação

A especulação financeira dos alimentos nas bolsas de valores é um dos principais fatores para o crescimento dos preços da cesta básica nos últimos dois anos, dificultando o acesso aos alimentos e causando a fome. De acordo com o Banco Mundial, 1,2 bilhão de pessoas encontram-se em extrema pobreza hoje, vivendo com menos de um dólar por dia. Segundo Zigler, quando o preço do alimento explode, essas pessoas não podem comprar.

- Apesar de a especulação ser algo legal, permitido pela lei, isso é um crime. Os especuladores deveriam ser julgados num tribunal internacional por crime contra a humanidade – denunciou Ziegler.

A política de agrocombustíveis, que, além de utilizar terras que poderiam produzir comida, transforma alimentos em combustível, é mais um agravante. Para o sociólogo, é inadmissível usar terras para fazer combustível em vez de alimentos em um mundo onde a cada cinco segundo uma pessoa morre de fome.

Política da fome

Ziegler afirma que não se pode naturalizar a fome, que é uma produção humana, criada pela sociedade desigual no capitalismo. Prova disso são as diversas políticas agrícolas praticadas tanto por empresas e subsidiadas por instituições nacionais e internacionais.

O dumping agrícola consiste em subsidiar alimentos importados em detrimento dos alimentos produzidos internamente. De acordo com Ziegler, os mercados africanos podem comprar alimentos vindos da Europa a 1/3 do preço dos produtos africanos. Os camponeses africanos, dessa forma, não conseguem produzir para se sustentar.

Ziegler denunciou o “roubo de terras”, que é o aluguel ou compra de terras em um país por fundos privados e bancos internacionais, que ocorreu com mais de 202 mil hectares de áreas férteis na África, com crédito do Banco Mundial e de instituições financeiras da África. Os camponeses, por conta desse processo, são expulsos das terras para favelas. Esse processo tem se intensificado uma vez que os preços dos alimentos aumentam com a especulação imobiliária.

O Banco Mundial justifica o roubo de terras com o argumento de que a produtividade do camponês africano é baixa até mesmo em um ano normal, com poucos problemas (o que raramente acontece). Um hectare gera no máximo 600 kg por ano, enquanto que na Inglaterra ou Canadá, um hectare gera uma tonelada. Para o Banco Mundial, é mais razoável dar essa terra a uma multinacional capaz de investir capital e tecnologia e tirar o camponês de lá.

- Essa não é a solução. É preciso dar os meios de produção ao camponês africano. A irrigação é pouca, não há adubo animal ou mineral nem crédito agrícola, e a dívida externa dos países impedem que eles invistam na agricultura – defende Ziegler.

Soluções

Segundo Ziegler, a única forma de mudar as políticas que perpetuam a fome é por meio da mobilização e pressão popular. Ele afirma que devemos exigir dos ministros de finanças na assembleia do Fundo Monetário Internacional que votem pelo fim das dívidas externas e nos mobilizar para impedir o uso de agrocombustíveis e acabar com o dumping agrícola.

- A única coisa que nos separa das vítimas da fome é que elas tiveram o azar de nascer onde se passa fome.

O ex-relator especial para o Direito à Alimentação da Nações Unidas (ONU) veio ao Brasil lançar o livro “Destruição em Massa – Geopolítica da Fome” (Editora Cortez) e participar da 6ª edição do Seminário Anual de Serviço Social, que aconteceu no Teatro da Universidade Católica (TUCA).
(Ibase)
“10 empresas controlam 85% dos alimentos”

José Coutinho Júnior
Da Página do MST

Sociólogo lança livro "Destruição em Massa - Geopolítica da Fome". Foto: Rafael Stedile

O sociólogo suíço Jean Ziegler, ex-relator especial para o Direito à Alimentação da Nações Unidas (ONU), denunciou que a fome é um dos principais problemas da humanidade, em um debate na última segunda-feira, em São Paulo.

- O direito à alimentação é o direito fundamental mais brutalmente violado. A fome é o que mais mata no planeta. A cada ano, 70 milhões de pessoas morrem. Destas, 18 milhões morrem de fome. A cada 5 segundos, uma criança no mundo morre de fome – disse Ziegler.

Na década de 1950, 60 milhões de pessoas passavam fome. Atualmente, mais de um bilhão.

- O planeta nas condições atuais poderia alimentar 12 bilhões de pessoas, de acordo com estudo da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). Não há escassez de alimentos. O problema da fome é o acesso à alimentação. Portanto, quando uma criança morre de fome ela é assassinada – completou.

Ziegler afirma que é a primeira vez que a humanidade tem condições efetivas de atender às necessidades básicas de todos. Depois do fim da Guerra Fria, mais especificamente em 1991, a produção capitalista aumentou muito, chegando a dobrar em 2002. Ao mesmo tempo, essa produção seguiu um processo de monopolização das riquezas. Hoje, 52,8% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial está nas mãos de empresas multinacionais.

A concentração da riqueza nas mãos de algumas empresas faz com que os capitalistas tenham uma grande força política.

- O poder político dessas empresas foge ao controle social. 85% dos alimentos de base negociados no mundo são controlados por 10 empresas. Elas decidem cada dia quem vai morrer de fome e quem vai comer – afirmou Ziegler.

O sociólogo ainda relatou que essas empresas seguem blindadas pela tese neoliberal de que o mercado não deve ser regulado pelo Estado. Segundo ele, na Guatemala, 63% da terra está concentrada em 1,6% dos produtores.

- A primeira reivindicação que fiz, após a missão, foi a realização da Reforma Agrária no país. Fui rechaçado, pois uma intervenção no mercado não é possível. Não havia sequer um cadastro de terras lá: quando os latifundiários querem aumentar suas terras, mandam pistoleiros atacar a população maia que vive ao redor.

Especulação

A especulação financeira dos alimentos nas bolsas de valores é um dos principais fatores para o crescimento dos preços da cesta básica nos últimos dois anos, dificultando o acesso aos alimentos e causando a fome. De acordo com o Banco Mundial, 1,2 bilhão de pessoas encontram-se em extrema pobreza hoje, vivendo com menos de um dólar por dia. Segundo Zigler, quando o preço do alimento explode, essas pessoas não podem comprar.

- Apesar de a especulação ser algo legal, permitido pela lei, isso é um crime. Os especuladores deveriam ser julgados num tribunal internacional por crime contra a humanidade – denunciou Ziegler.

A política de agrocombustíveis, que, além de utilizar terras que poderiam produzir comida, transforma alimentos em combustível, é mais um agravante. Para o sociólogo, é inadmissível usar terras para fazer combustível em vez de alimentos em um mundo onde a cada cinco segundo uma pessoa morre de fome.

Política da fome

Ziegler afirma que não se pode naturalizar a fome, que é uma produção humana, criada pela sociedade desigual no capitalismo. Prova disso são as diversas políticas agrícolas praticadas tanto por empresas e subsidiadas por instituições nacionais e internacionais.

O dumping agrícola consiste em subsidiar alimentos importados em detrimento dos alimentos produzidos internamente. De acordo com Ziegler, os mercados africanos podem comprar alimentos vindos da Europa a 1/3 do preço dos produtos africanos. Os camponeses africanos, dessa forma, não conseguem produzir para se sustentar.

Ziegler denunciou o “roubo de terras”, que é o aluguel ou compra de terras em um país por fundos privados e bancos internacionais, que ocorreu com mais de 202 mil hectares de áreas férteis na África, com crédito do Banco Mundial e de instituições financeiras da África. Os camponeses, por conta desse processo, são expulsos das terras para favelas. Esse processo tem se intensificado uma vez que os preços dos alimentos aumentam com a especulação imobiliária.

O Banco Mundial justifica o roubo de terras com o argumento de que a produtividade do camponês africano é baixa até mesmo em um ano normal, com poucos problemas (o que raramente acontece). Um hectare gera no máximo 600 kg por ano, enquanto que na Inglaterra ou Canadá, um hectare gera uma tonelada. Para o Banco Mundial, é mais razoável dar essa terra a uma multinacional capaz de investir capital e tecnologia e tirar o camponês de lá.

- Essa não é a solução. É preciso dar os meios de produção ao camponês africano. A irrigação é pouca, não há adubo animal ou mineral nem crédito agrícola, e a dívida externa dos países impedem que eles invistam na agricultura – defende Ziegler.

Soluções

Segundo Ziegler, a única forma de mudar as políticas que perpetuam a fome é por meio da mobilização e pressão popular. Ele afirma que devemos exigir dos ministros de finanças na assembleia do Fundo Monetário Internacional que votem pelo fim das dívidas externas e nos mobilizar para impedir o uso de agrocombustíveis e acabar com o dumping agrícola.

- A única coisa que nos separa das vítimas da fome é que elas tiveram o azar de nascer onde se passa fome.

O ex-relator especial para o Direito à Alimentação da Nações Unidas (ONU) veio ao Brasil lançar o livro “Destruição em Massa – Geopolítica da Fome” (Editora Cortez) e participar da 6ª edição do Seminário Anual de Serviço Social, que aconteceu no Teatro da Universidade Católica (TUCA).
(Ibase)

Drummond

Poema de Sete Faces – Carlos Drummond de Andrade (com vídeo)



Poema de Sete Faces

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

( Carlos Drummond de Andrade )
(Poema digitado e conferido por mim mesmo em 2 de setembro de 2012, publicado em Antologia Poética - 12a edição - Rio de Janeiro: José Olympio, 1978, p.
(Magia da Poesia)

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Dilminha


Financial Times: o roto falando do bem cosido
É interessante o modo como o jornal britânico constrói a retórica contra o governo Dilma: primeiro, fala-se de tudo o que Brasil conquistou recentemente; depois, garante, tudo isto não passa de uma “fachada”; daí vem a ladainha da miséria: na verdade, este bem-estar aparente esconde um mal-estar.

Flávio Aguiar


Em editorial de 19/05/2013 (“Go-go to go-slow”), o Financial Times “rides again” contra o Brasil e contra o governo Dilma.

É interessante o modo como se constrói a retórica. Primeiro, fala-se de tudo o que Brasil conquistou recentemente: recorde no leilão da Petrobrás, 11 bilhões de dólares; a captação da oferta pública da carteira de seguros do Banco do Brasil permanece sendo a maior, 5,6 bi. Empresas de petróleo pagaram 1,4 bi por licenças de exploração. Um diplomata brasileiro está à testa da OMC. A popularidade de Dilma está na estratosfera, “graças ao pleno emprego”. A sua reeleição parece garantida.

Mas, garante o jornal, tudo isto não passa de uma “fachada”. Daí vem a ladainha da miséria: na verdade, este bem-estar aparente esconde um mal-estar. Os investimentos caem (como se explica isto diante dos números do outro parágrafo é um mistério). O Brasil só reinveste 18% do seu produto, contra 24% do conjunto da América Latina e 30% da Ásia.

O modelo baseado no consumo interno está esgotado. O estilo “deixa-que-eu-chuto” (“Bossy-boots”, um insulto de natureza pessoal) da presidente é inadequado politicamente, as decisões são demasiadamente centralizadas. Isto favorece o combate à corrupção,o jornal admite, mas atrasa as decisões. Seu governo não aplica as necessárias reformas favoráveis ao mercado (“[the governement] eschewed market-oriented reforms”) em favor de indústrias com lobbies tradicionais, como as montadoras.

Diz-se que o Brasil está perdendo oportunidades. O dinheiro (para investir em infra-estrutura, por exemplo) está sobre a mesa, mas parado. É tempo de agir, adverte o jornal. O dinheiro está barato, mas não vai ser sempre assim.

De novo, fica aquele cheiro de queimado no ar. Trata-se de levantar a bola do companheiro Aécio? De baixar a bola do Brasil em tempos de sucesso? De associar pleno emprego e desaceleração econômica? (Sem falar nos aumentos de salário para quem não investe nem sabe gastar, como o povão)? Tudo junto incluído? Pode ser. Porque a bem costurada política econômica brasileira – com seus rasgões e remendos existentes e por fazer – vai dando certo, e por isso mesmo só mderece o desprezo – que disfarça o pânico – de quem pensa sempre “market-oriented”.

Mas o cheiro de queimado permanece, e se estende. Porque ele vem das entranhas do jornal. Tudo o que seus editoriais defendem já deu e está dando errado. O ideário “market-oriented” que é a pedra de fundamental de seu ideário está levando a Europa – onde ele vive, o jornal – para a hecatombe, porque para o brejo já levou.

No dia seguinte ao do editorial (20/05, “Europe’s Hollow Efforts to Save a Lost Generation”, “O esforço vazio da Europa para salvar uma geração perdida”) a Spiegel International publicou uma matéria escachapante sobre o desemprego entre os jovens na Europa. A palavra “hollow” significa “vazio”, “oco”, “cavidade”, “buraco”; mas ela tem uma conotação moral. Quer dizer também “insincero, irreal, pouco profundo, sem valor”. É uma das palavras-chave de poema famoso de T. S. Eliot, “The hollow mwn”, escrito em 1925, na moldura do desencanto vivido na esteira da Primeira Guerra Mundial:

We are the hollow men
We are the stuffed men
Leaning together
Headpiece filled with straw. Alas!

Nós somos os homens ocos
Os homens empalhados
Uns nos outros amparadosd
O elmo cheio de nada. Aí de nós!,

(Na tradução de Ivan Junqueira)

O vaticínio do poema pode se aplicar tanto os “maket-oriented” hegemônicos na Zona do Euro, como o mundo que estão moldando, semeando o desencanto e o desespero num continente que vai perdendo o passo do futuro.Os números são estapafúrdios. Mesmo na próspera Alemanha, de pouco desemprego, entre os de menos de 25 anos (e 18 ou mais) o desemprego é de 7,9%. No restante da Zona do Euro: Áustria, 9,9%; Holanda, 10,3%; Malta, 16%; Luxemburgo, 18,5%; Estônia, 19,4%; Finlândia, 19,5%; Bélgica, 19,6%; França, 26,9%; Eslovênia, 27,1%; Chipre, 28,4%; Irlanda, 30,9%; Eslováquia, 35,9%; e agora os campeões – Portugal, 38,6%; Itália, 38,7%; Espanha, 55,5% e Grécia, 59,4%. Média ponderada, 23,5%: uma catástrofe. Nas palavras da matéria, “Está se formando na Europa uma geração perdida”.

Voltemos ao período entre-guerras. A expressão “uma geração perdida” foi usada como epigrafe no romance “O sol também se levanta”, de Ernest Hemingway, começado em 1925 e publicado em 1926. Na época o autor atribuiu a expressão à escritora Getrude Stein, e ele mesmo associou-a à geração que amadureceu durante a Primeira Guerra Mundial e foi por ela irremediavelmente “danificada”. Depois Hemingway escreveu que na verdade o criador da expressão fora o proprietário da oficina onde Stein mandava consertar seu carro.
Voltando ao nosso século, o artigo da Der Spiegel assinala que a aversão das elites políticas européias por qualquer coisa que signifique “dispêndio de verbas” vai estrangulando na prática os programas e promessas de criação de projetos para estimular a geração de empregos em geral, quanto mais entre os mais jovens. “Big promises, scant results”, resume a revista: “Grandes promessas; resultados pífios”, traduzindo livremente.

Enumera a revista: em fevereiro deste ano o Conselho Europeu votou um investimento de 6 bilhões de euros até 2020 para geração de empregos entre os mais jovens, mas desavanças entre os países-membros sobre a aplicação do dinheiro fez o começo do programa ser postergado para 2014. Um programa de investimento franco-germânico nos países do “sul da Europa” com o mesmo objetivo permenece “nebuloso”, apesar do entusiasmo da ministra alemã do Trabalho, Ursula von der Leyen, uma candidata da CDU à uma possível sucessão de Angela Merkel. A prática alemã tem sido mais a de contratar jovens nos países mais prejudicados para trabalhar... na Alemanha, o que não ajuda muito a economia destes.

Novas promessas estão em curso, pelo menos no plano das intenções. A próxima cúpula européia deve priorizar o tema. Mas pouco será feito, provavelmente, dentro da ótica de mostrar para o público em geral que está se fazendo tudo o que é possível gastando o menos possível também. Alertados pelas lições da história advindas daquele período da “geração perdida” e dos “homens ocos”, analistas de diferentes procedências (historiadores, economistas não obcecados pela “market-orientation”, escritores, artistas, antropólogos, psicólogos, etc.) vêm advertindo sobre os riscos inerentes a esta situaçào européia: afinal, foi naquele “vazio de perspectivas” que os nazi-fascismos prosperaram.

Mas nada disto abala os “market-oriented”. Sem sombra de dúvida, o sem mundo de certezas iluminadas não admite sombras nem dúvidas. Muito menos uma sombra do tamanho do Brasil.




Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior em Berlim.

Drummond

Nosso Tempo – Drummond

I

Esse é tempo de partido,
tempo de homens partidos.

Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra.

Visito os fatos, não te encontro.
Onde te ocultas, precária síntese,
penhor de meu sono, luz
dormindo acesa na varanda?
Miúdas certezas de empréstimos, nenhum beijo
sobe ao ombro para contar-me
a cidade dos homens completos.

Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.

II

Esse é tempo de divisas,
tempo de gente cortada.
De mãos viajando sem braços,
obscenos gestos avulsos.

Mudou-se a rua da infância.
E o vestido vermelho
vermelho
cobre a nudez do amor,
ao relento, no vale.

Símbolos obscuros se multiplicam.
Guerra, verdade, flores?
Dos laboratórios platônicos mobilizados
vem um sopro que cresta as faces
e dissipa, na praia, as palavras.

A escuridão estende-se mas não elimina
o sucedâneo da estrela nas mãos.
Certas partes de nós como brilham! São unhas,
anéis, pérolas, cigarros, lanternas,
são partes mais íntimas,
e pulsação, o ofego,
e o ar da noite é o estritamente necessário
para continuar, e continuamos.

III

E continuamos. É tempo de muletas.
Tempo de mortos faladores
e velhas paralíticas, nostálgicas de bailado,
mas ainda é tempo de viver e contar.
Certas histórias não se perderam.
Conheço bem esta casa,
pela direita entra-se, pela esquerda sobe-se,
a sala grande conduz a quartos terríveis,
como o do enterro que não foi feito, do corpo esquecido na mesa,
conduz à copa de frutas ácidas,
ao claro jardim central, à água
que goteja e segreda
o incesto, a bênção, a partida,
conduz às celas fechadas, que contêm:
papéis?
crimes?
moedas?

Ó conta, velha preta, ó jornalista, poeta, pequeno historiador urbano,
ó surdo-mudo, depositário de meus desfalecimentos, abre-te e conta,
moça presa na memória, velho aleijado, baratas dos arquivos, portas rangentes, solidão e asco,
pessoas e coisas enigmáticas, contai;
capa de poeira dos pianos desmantelados, contai;
velhos selos do imperador, aparelhos de porcelana partidos, contai;
ossos na rua, fragmentos de jornal, colchetes no chão da costureira, luto no braço, pombas, cães errantes, animais caçados, contai.
Tudo tão difícil depois que vos calastes…
E muitos de vós nunca se abriram.

IV

É tempo de meio silêncio,
de boca gelada e murmúrio,
palavra indireta, aviso
na esquina. Tempo de cinco sentidos
num só. O espião janta conosco.

É tempo de cortinas pardas,
de céu neutro, política
na maçã, no santo, no gozo,
amor e desamor, cólera
branda, gim com água tônica,
olhos pintados,
dentes de vidro,
grotesca língua torcida.
A isso chamamos: balanço.

No beco,
apenas um muro,
sobre ele a polícia.
No céu da propaganda
aves anunciam
a glória.
No quarto,
irrisão e três colarinhos sujos.

V

Escuta a hora formidável do almoço
na cidade. Os escritórios, num passe, esvaziam-se.
As bocas sugam um rio de carne, legumes e tortas vitaminosas.
Salta depressa do mar a bandeja de peixes argênteos!
Os subterrâneos da fome choram caldo de sopa,
olhos líquidos de cão através do vidro devoram teu osso.
Come, braço mecânico, alimenta-te, mão de papel, é tempo de comida,
mais tarde será o de amor.

Lentamente os escritórios se recuperam, e os negócios, forma indecisa, evoluem.
O esplêndido negócio insinua-se no tráfego.
Multidões que o cruzam não vêem. É sem cor e sem cheiro.
Está dissimulado no bonde, por trás da brisa do sul,
vem na areia, no telefone, na batalha de aviões,
toma conta de tua alma e dela extrai uma porcentagem.

Escuta a hora espandongada da volta.
Homem depois de homem, mulher, criança, homem,
roupa, cigarro, chapéu, roupa, roupa, roupa,
homem, homem, mulher, homem, mulher, roupa, homem,
imaginam esperar qualquer coisa,
e se quedam mudos, escoam-se passo a passo, sentam-se,
últimos servos do negócio, imaginam voltar para casa,
já noite, entre muros apagados, numa suposta cidade, imaginam.
Escuta a pequena hora noturna de compensação, leituras, apelo ao cassino, passeio na praia,
o corpo ao lado do corpo, afinal distendido,
com as calças despido o incômodo pensamento de escravo,
escuta o corpo ranger, enlaçar, refluir,
errar em objetos remotos e, sob eles soterrados sem dor,
confiar-se ao que bem me importa
do sono.

Escuta o horrível emprego do dia
em todos os países de fala humana,
a falsificação das palavras pingando nos jornais,
o mundo irreal dos cartórios onde a propriedade é um bolo com flores,
os bancos triturando suavemente o pescoço do açúcar,
a constelação das formigas e usurários,
a má poesia, o mau romance,
os frágeis que se entregam à proteção do basilisco,
o homem feio, de mortal feiúra,
passeando de bote
num sinistro crepúsculo de sábado.

VI

Nos porões da família
orquídeas e opções
de compra e desquite.
A gravidez elétrica
já não traz delíquios.
Crianças alérgicas
trocam-se; reformam-se.
Há uma implacável
guerra às baratas.
Contam-se histórias
por correspondência.
A mesa reúne
um copo, uma faca,
e a cama devora
tua solidão.
Salva-se a honra
e a herança do gado.

VII

Ou não se salva, e é o mesmo. Há soluções, há bálsamos
para cada hora e dor. Há fortes bálsamos,
dores de classe, de sangrenta fúria
e plácido rosto. E há mínimos
bálsamos, recalcadas dores ignóbeis,
lesões que nenhum governo autoriza,
não obstante doem,
melancolias insubornáveis,
ira, reprovação, desgosto
desse chapéu velho, da rua lodosa, do Estado.
Há o pranto no teatro,
no palco? no público? nas poltronas?
há sobretudo o pranto no teatro,
já tarde, já confuso,
ele embacia as luzes, se engolfa no linóleo,
vai minar nos armazéns, nos becos coloniais onde passeiam ratos noturnos,
vai molhar, na roça madura, o milho ondulante,
e secar ao sol, em poça amarga.
E dentro do pranto minha face trocista,
meu olho que ri e despreza,
minha repugnância total por vosso lirismo deteriorado,
que polui a essência mesma dos diamantes.

VIII

O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
prometa ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta
um verme.

( Carlos Drummond de Andrade )
(Magia da Poesia)

Rede Globo


     Não foi culpa da Globo

    

    É claro que a Globo não tem culpa alguma na morte das três turistas brasileiras na queda do balão na Turquia. Elas estavam lá por livre e espontânea vontade.  Mas é inegável a força da emissora em influenciar pessoas.  O grupo de turistas brasileiros decidiu conhecer a distante Capadócia por causa das belas imagens dos balões mostradas na novela “Salve Jorge”.

    É provável que 99 por cento dos brasileiros jamais tenham ouvido falar na Capadócia e muito menos sabiam que a grande atração turística do local eram os  passeios de balões no céu. Uma imagem plasticamente bonita e romântica, que os craques da Globo sabem editar como ninguém. 

    E foi essa edição de belas imagens que levou o casal Rosana Faria Santo e Wagner Ferreira Santo, que estão entre os oito brasileiros feridos, a comprar a passagem para a Capadócia, tão logo terminou a novela.  Seus filhos em São Paulo, informa a matéria do UOL, confirmaram que “os pais decidiram viajar à Capadócia  depois de ver imagens do local na novela "Salve Jorge".

    A reportagem do UOL ouviu também Marco Ferraz, presidente da Associação Brasileira das Operadoras de Turismo, e ele confirmou que desde que a novela começou a ser exibida cresceu o interesse dos brasileiros pela Turquia.

    Ele revelou que o mesmo fenômeno aconteceu com outras duas novelas escritas por Glória Perez, “Caminho das Indias”, que aumentou o fluxo de turistas para a India, e “O Clone”, o mesmo com relação ao Marrocos.

    Se por um lado, as novelas ajudam a divulgar as desconhecidas belezas do planeta, por outro a gente se assusta com esse poder da Globo em influenciar corações e mentes dos telespectadores.  E isso nos leva a imaginar essa mesma influência em relação às notícias que divulga em seus telejornais.

    

    Superando obstáculos

    Na terra do Tio Sam, apesar da pressão republicana para envolver Barack Obama no chamado escândalo da Receita Federal (IRS), a popularidade do presidente se manteve firme, de acordo com nova pesquisa nacional CNN/ORC, divulgada nesta segunda-feira.

    Segundo os números da pesquisa, 53% das pessoas entrevistadas disseram que aprovam o trabalho do presidente, enquanto 45% desaprovam.  Na pesquisa do início de abril, a taxa de aprovação do presidente estava em 51%.

    Ao analisar esses números, deve-se levar em conta que os últimos dez dias foram talvez os piores enfrentados por Obama desde que assumiu o governo. Além do escândalo do IRS, o governo enfrenta a acusação de endurecer com setores da mídia que lhe fazem oposição. 

    A pesquisa revelou que os americanos estão vendo a polêmica sobre a atuação do IRS, que estaria perseguindo grupos conservadores que pleiteiam legalmente isenção de impostos, como muito importante, mas não a ponto de atingir o mesmo nível de Watergate, que derrubou o presidente Nixon.

    O próprio jornalista Bob Woodward, um dos que denunciaram Nixon na época, e atualmente em oposição ao governo Obama, resolveu jogar lenha na fogueira, afirmando que “o país estava diante de um novo Watergate”.  Mas, aparentemente, a opinião dele não foi levada a sério. E a pesquisa da CNN comprovou que a população não pensa como ele.

    A pesquisa quis saber a opinião dos entrevistados sobre Hillary Clinton, potencial candidata à Casa Branca em 2016. A ex-secretária de Estado  tem sido massacrada pela oposição que pretende a todo custo responsabilizá-la pelo que aconteceu em Benghazi, na Libia, no ano passado, quando foram mortos o embaixador Chris Stevens e outros três americanos.

    Claro, que essa é uma estratégia para enfraquecer o favoritismo de Hillary, que segue imbatível na preferência do eleitorado. A pesquisa indicou que ela conta com o apoio de 61 por cento dos pesquisados, que a veem como favorita para a indicação democrata na próxima eleição presidencial.

    Os democratas continuam dando as cartas no tabuleiro da política estadunidense. Eles podem não ser os melhores, mas são os menos ruins, com certeza.
    (Direto da Redação)

Médicos Cubanos

Defender os médicos cubanos; denunciar as políticas de saúde no Brasil! (uma contribuição ao debate)    Escrito por Otávio Dutra  





“Nós mal havíamos começado a pensar na Revolução e ainda no Moncada já estávamos falando dos serviços de saúde, e quando estávamos na Serra Maestra já prestávamos serviços de saúde a toda população com que tínhamos contato, desde os médicos, dentistas e enfermeiros que se incorporavam ao movimento. Isso deve ser uma convicção, um dever elementar dos revolucionários. Mas não somente do ponto de vista moral, também na prática política. Devemos dedicar mais atenção, mais recursos materiais e humanos aos serviços de saúde.”

Discurso pronunciado por Fidel Castro
no encerramento do VI Seminário
internacional de Atenção Primária em Saúde,
em 28 de Novembro de 1997.





Eis que surge uma noticia bombástica anunciada pelo governo brasileiro: nos próximos meses está para chegar ao Brasil o primeiro contingente dos mais de 6 mil médicos e médicas de Cuba previstos até 2015. O fato está gerando um intenso debate na sociedade brasileira, permitindo que na polarização criada identifiquemos os atores principais da polêmica, assim como suas intenções de fundo. No bojo deste debate aparece um tema coadjuvante, intrinsecamente ligado a ele, e não menos gerador de polêmicas e divergências na sociedade brasileira, a revalidação dos diplomas médicos expedidos no exterior.



Os atores neste projeto e suas máscaras



De um lado está o governo brasileiro, presidido por Dilma Roussef (PT). Por outro um dos setores mais conservadores da sociedade brasileira, capitaneados pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Associação Médica Brasileira (AMB), entre outros porta-vozes do status quo e do atual modelo hegemônico de saúde no Brasil, em que a saúde não é mais que uma mercadoria. Existe ainda um terceiro ponto de vista, que trataremos de enfatizar neste texto.



O Governo anunciou neste 6 de maio o convênio realizado em parceria com Cuba, que prevê a vinda de milhares de profissionais da medicina desse país para trabalhar fundamentalmente em 3 áreas do Brasil: sertão nordestino e Amazônia brasileira; Vale do Jequitinhonha; periferia das grandes cidades. O convênio faz parte do programa do governo federal “Brasil mais Médicos”, que tem como objetivo “interiorizar” o acesso à saúde no país. Desse programa faz parte também o Programa de Valorização dos Profissionais na Atenção Básica (PROVAB). Em paralelo, o governo federal tem reduzido anualmente os gastos do orçamento nacional destinado à área da saúde (somente em 2012 ocorreu um corte de mais de 5 bilhões de reais), assim como uma progressiva entrega dos serviços e da infra-estrutura pública da saúde à iniciativa privada, através de parcerias público privadas como as Organizações Sociais (OS), as Fundações Estatais de Direito Privado (FEDPs), as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs) e a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH). Tais medidas vêm - em síntese - no sentido de precarizar o acesso à saúde de grande parte da população, permitir a apropriação privada dos serviços, pesquisas e da infra-estrutura pública para gerar lucro e retirar direitos trabalhistas dos profissionais da saúde. Como se não bastasse, a presidenta Dilma aprovou nesse ano uma série de subsídios estatais para os planos privados de saúde. Tudo isso, quando pensamos em atenção integral em saúde, afunila o já estreito gargalo entre a atenção primária e os demais níveis de atenção em saúde: aos trabalhadores, saúde básica e precária; atenção especializada cada vez mais concentrada nos setores privados.



Com esse conjunto de medidas, o projeto de “interiorização” da saúde no país - com a vinda dos 6 mil médicos de Cuba e o PROVAB - atuaria apenas na ponta do Iceberg, levando profissionais de forma efêmera e precária para o interior, e deixando intacta sua profunda estrutura baseada no controle do complexo médico-industrial e farmacêutico da saúde, em que a existência do setor público serve como alicerce para a acumulação privada de capitais na área, potencializada por uma profunda cisão entre a atenção básica de saúde e os demais níveis de especialização. Enquanto isso, em se tratando da formação de recursos humanos em saúde, dos anos de 2000 a 2013 foram criadas 94 escolas médicas, sendo 26 públicas e 68 particulares, números que apenas confirmam os caminhos do sistema nacional de saúde, em que a formação dos profissionais da saúde é hegemonicamente voltada para o mercado da saúde e para os interesses do complexo médico-industrial e farmacêutico e das grandes empresas da educação superior. E pior, até mesmo nas universidade públicas esse modelo é hegemônico. Com esses elementos, não resta dúvidas de que o projeto de levar médicos para o interior do país não tem qualquer relação com uma política substancial que modifique o modelo de saúde do país e permita uma atenção integral a toda população brasileira.



No entanto, com a divulgação da vinda dos médicos cubanos ao Brasil, os setores mais conservadores da nossa sociedade começam a mostrar seus dentes gananciosos e elitistas. Utilizam como porta vozes o CFM e a AMB, entre outros. Por trás de um falso discurso que preza pela qualidade da atenção à saúde, esses setores corporativistas estão mais interessados em manter o poder e o mercado da categoria médica, fundamentados na medicina privada, defendendo em última instância o controle pelo complexo médico-industrial e farmacêutico do sistema nacional de saúde, inclusive alimentando-se da falta de qualidade da atenção pública para reverter exorbitantes recursos públicos ao privado. Este setores são xenófobos e anti-populares em sua essência, defendem o status quo da sociedade brasileira e, com o medo característico das elites nacionais (em permanente contra-revolução preventiva), direcionam toda sua munição de mentiras e manipulações para atacar a política de contratação dos médicos cubanos, contestando sua capacidade técnico-científica, assim como soltando todo seu veneno e falácias contra a realidade de Cuba e seu sistema socialista.



A saúde e a doença como um processo determinado socialmente



O processo saúde/doença de uma sociedade é determinado socialmente, e assim pelas relações de classe existentes em um modo de produção específico. É necessário compreender a questão da saúde desde uma perspectiva de classe e do antagonismo dos projetos societários das classes em luta, ou ficaríamos como cachorro que corre atrás do próprio rabo, girando sem rumo. Se nosso objetivo é transformar profundamente suas estruturas, torna-se fundamental pensar a saúde a partir da perspectiva societária dos trabalhadores e dos setores oprimidos na sociedade capitalista, aspecto de grande relevância para a construção de uma sociedade isenta da exploração entre seres humanos, necessariamente mais coletivizada e de trabalho essencialmente livre. Apenas nesse sentido a saúde passa, de fato, a ser pensada como a plena satisfação das necessidades materiais e subjetivas de cada indivíduo e da coletividade, emancipatória, e não apenas como ausência de doenças. É imprescindível, para tanto, a construção de um sistema de saúde obrigatoriamente público, 100% estatal, gratuito, que permita o acesso a todos os níveis de atenção à saúde e com alta qualidade para todos os indivíduos, em que o poder popular seja o principal instrumento de planificação, gestão e controle.



Não existe a possibilidade de mudanças estruturais do sistema de saúde sem profundas transformações da estrutura econômica e social de um país. Portanto, é uma luta que se insere no sentido de negar o modo de produção capitalista, um sistema doente e gerador de doenças; a luta por um outro modelo de saúde só pode existir se inserida numa estratégica anti-capitalista.  Torna-se necessário, como bandeiras táticas, defender que os recursos do orçamento nacional direcionados ao pagamento da dívida pública com os banqueiros e empresários, da isenção de impostos aos monopólios e da entrega dos nossos recursos naturais e infra-estrutura ao setor privado devem ser redirecionados aos gastos sociais, única forma de garantir um acesso universal, integral e de alta qualidade ao sistema de saúde. Tanto para a formação de recursos humanos, como para a interiorização com qualidade do acesso ao sistema de saúde, são necessários muito mais recursos do orçamento nacional voltados para as áreas de educação e saúde, assim como à previdência, à arte e cultura, ao esporte, à moradia, etc. Nesse sentido, apenas com uma Universidade Popular – que sirva aos anseios e às lutas do povo trabalhador, do ensino à produção de ciência e tecnologia – podemos garantir a formação de profissionais da saúde comprometidos com a elevação da qualidade de vida dos setores populares, assim como sua permanência consciente e voluntária no interior do país, que necessariamente vem acompanhado da ampliação de uma infra-estrutura para uma atenção integral em saúde. Não existem paliativos que sejam suficientes para resolver esses problemas.



Sobre Cuba e seu sistema de saúde



Em Cuba, desde o triunfo popular de 1º de janeiro de 1959, conhecido como Revolução Cubana, o panorama da saúde no país modificou-se completamente. Ao mesmo tempo em que se edificava uma nova forma de organização social - com coletivização dos meios de produção, do trabalho, das riquezas e do poder - se transformava profundamente o padrão de saúde e doença do povo cubano.  Passados 54 anos, hoje Cuba é indiscutivelmente uma potência nas áreas da medicina e da biotecnologia. Sobre a primeira basta dizer que tem os melhores indicadores de saúde de nosso continente (mortalidade infantil de 4,6 por cada mil nascidos vivos; 78,9 anos de expectativa média de vida ao nascer, entre outros), segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), assim como uma das maiores proporções médico/habitante do mundo (1 médico para cada 148 habitantes). Cuba hoje é considerada, por um estudo da organização britânica Save the Children, como um dos melhores países para a maternidade do mundo (o melhor da América Latina), pelo seu exemplar programa materno-infantil e pelos direitos garantidas à mãe e à criança. Na área da biotecnologia, mesmo sendo um país de apenas 11 milhões de habitantes, pobre em recursos naturais e bloqueado economicamente pelo maior e mais sanguinário império já existente na humanidade, produz mais de 80% dos medicamentos que consome, exporta medicamentos e vacinas para mais de 50 países, desenvolve pesquisas de ponta nas áreas de câncer, células tronco, úlcera diabética, catarata, vitiligo e HIV/AIDS; para resumir alguns dos avanços técnico-científicos na área da saúde.



E como se não bastasse, Cuba exporta esse modelo de saúde para o mundo, seja através da missões médicas - ininterruptas desde os primeiros anos da Revolução - em territórios devastados por desastres e epidemias na Ásia, África e América Latina, seja pela formação de profissionais de saúde em todos os continentes, principalmente pela Escola Latino Americana de Medicina – ELAM. Hoje são mais de 30 mil médicos cubanos colaborando em missões internacionalistas e um contingente de mais de 20 mil estudantes de 116 países estudando em Cuba, a grande maioria nas áreas da saúde. O programa educacional neste país equilibra um alto nível de preparação técnico-científica (em todos os níveis de atenção em saúde) com a formação de valores humanos e princípios, indispensáveis para uma formação integral dos profissionais de área, fundamentados na saúde como direito universal e não negociável, na atenção integral e na solidariedade entre os povos. Sobre as missões internacionalistas, ainda que existam quase 30 mil médicos cubanos fora do país, não existe um sequer consultório de saúde de família (unidade básica da atenção primária em saúde no país) em que o médico atenda mais de 300 famílias. No Brasil, não seria fato incomum encontrar um só médico atendendo 3 ou 4 mil famílias em uma Unidade Básica de Saúde.



Para se ter uma idéia das diferenças entre o sistema de saúde brasileiro em relação ao cubano basta analisarmos que o número de médicos por habitantes em Cuba é de 1/148 habitantes[1], enquanto que a média do Brasil é de 1/555 distribuídos caoticamente, uma vez que no estado do Rio de Janeiro é de 1/295 e no Maranhão 1/1638[2]. Vale ressaltar que no Brasil, diferentemente de Cuba, a assistência à saúde não é igual para todos e tais proporções entre número de médicos por habitante ficam ainda piores se considerarmos aqueles que não podem pagar por serviços privados de saúde e dependem exclusivamente do SUS.



Neste mar de complexidades, o que pensar sobre a vinda dos mais de 6 mil médicos cubanos ao Brasil?



Em primeiro lugar precisamos destacar que a vinda dos mais de 6 mil cubanos está dentro dos planos do governo de Cuba e não deve alterar de forma significativa a atenção em saúde de seu povo, pelo contrário, já que grande parte dos recursos arrecadados pelo convênio com o Brasil serão direcionados para melhorar a infra-estrutura da área, que mesmo com os 12% do orçamento nacional de Cuba direcionados à saúde, tem dificuldades materiais importantes. Também é importante saber que o perfil dos profissionais que virão ao Brasil é de médicos e médicas com ampla experiência internacional (com no mínimo 2 missões cumpridas anteriormente) e de alto perfil técnico-científico, sendo que todos são especialistas em Medicina Geral Integral (Medicina da Família no Brasil) e a maioria tem outra especialidade médica, além de mestrado em áreas da educação.



Sobre sua atuação no Brasil, o fato é que sua chegada, ainda que trabalhem em condições precárias e inadequadas, modificará significativamente os índices de saúde das regiões onde irão atuar, principalmente em se tratando dos índices de mortalidade ocasionados por doenças infecto-contagiosas, que afetam principalmente populações vulneráveis como as crianças menores de 5 anos, grávidas e idosos. No entanto, a falta de recursos, de infra-estrutura e de uma rede de saúde que permitam a atenção integral à população não vão se modificar um milímetro sequer. É, sem sombra de dúvidas, mais uma das políticas paliativas do governo do PT em sua essência, com forte intencionalidade de conquistar aliados e votos para as eleições presidenciais de 2014.



Contudo, existe uma série de contradições que a vinda dos cubanos irá explicitar. Uma delas é o próprio debate sobre Cuba e seu modelo socialista, que naturalmente acontecerá em todos os espaços onde um cubano ou uma cubana estiverem trabalhando, assim como um intenso combate de idéias em toda a sociedade brasileira. Outro ponto é que, ainda que não resolva problemas estruturais, permitirá levar algum acesso à saúde para uma população esquecida pelos governos do Estado burguês, elemento que não podemos descartar, mesmo quando pensamos que o conceito de saúde é muito mais amplo do que a mera ausência de doenças. Ainda neste ponto, a presença de médicos de Cuba pode desencadear um debate/mobilização sobre a necessidade de ampliar os recursos à saúde, da formação de recursos humanos e de uma infra-estrutura que permita uma atenção integral e de alta qualidade, somente possível com um sistema 100% público e estatal.



Outra questão que deve surgir à tona é o urgente debate sobre a revalidação dos diplomas expedidos no exterior, hoje centrado num discurso corporativista e xenófobo do Conselho Federal de Medicina e seus apêndices conservadores, que antes de considerar a saúde da população preocupa-se com sua reserva de mercado, já que assim trata a saúde, como uma mercadoria mais a comprar e vender. No intuito de dificultar a entrada de “concorrentes”, fecha as portas realizando provas com alto grau de complexidade, e coloca num mesmo barco os indivíduos que vão buscar formação médica no exterior (principalmente em universidade privadas da Bolívia e da Argentina) e o projeto internacionalista de Cuba para a formação de médicos de ciência e consciência para a América Latina e o mundo, parafraseando Fidel, em que os princípios da saúde com um direito universal, público, gratuito, integral e de alta qualidade, convivem com valores como a solidariedade, o humanismo, o altruísmo e o internacionalismo proletário.



Em Cuba, além da qualidade da formação e o reconhecimento internacional de suas instituições de educação médica, existe uma homogeneidade da formação nas suas diversas instituições de ensino superior, sem as grandes disparidades da formação como existem no Brasil. E para além da inegável qualidade técnica da formação médica, há nos médicos formados em Cuba uma preocupação, como em nenhum outro lugar no mundo, com a questão humanística e a emancipação do ser humano, experiência que é levada por eles aos diversos locais do mundo onde estão presentes. Por esses motivos é imprescindível defender um processo de revalidação imediato dos brasileiros graduados nesse país, com complementação curricular à realidade brasileira e inserção no Sistema Único de Saúde (SUS). O mesmo deve ser defendido para os graduados no exterior em instituições de qualidade reconhecida internacionalmente.



No que diz respeito à problemática da revalidação dos demais diplomas expedidos no exterior, passa pelo mesmo debate a respeito da validação dos diplomas nacionais e deve vir em sintonia com um sistema de avaliação nos mesmos moldes dos cursos de medicina dentro do território nacional. No Brasil é fundamental a construção de um método de avaliação da formação médica com vistas a garantir a qualidade da formação e de promover os ajustes e investimentos necessários nas escolas médicas para manter e aprimorar a qualidade da formação. Deve ir, necessariamente, muito além de uma prova direcionada aos graduados em medicina; passa pela avaliação integral e continuada da instituição, do corpo docente e discente, da estrutura universitária, produção científica e da extensão, qualidade dos campos de estágio e da assistência estudantil. Está é a única forma possível de identificar quais as faculdades de medicina que não são mais do que fábricas de diplomas.



Vale lembrar que hoje o exame nacional de revalidação dos diplomas expedidos no exterior, o REVALIDA, é tão fragmentado e insuficiente quanto as propostas de Exame de Ordem para os graduados de medicina no Brasil, que tem sido sucessivamente rechaçados pelos estudantes, professores e trabalhadores de grande parte das faculdades de medicina do país, entre elas muitas de grande renome nacional[3].



As instituições que defendem o exame de ordem do direito e da medicina utilizam-se da dificuldade da prova para regular a entrada de profissionais no mercado de trabalho e tentam respaldar suas tentativas de controle da oferta da força de trabalho a partir do discurso da defesa da qualidade dos serviços. O REVALIDA, assim como o projeto de exame de ordem encabeçado pelo CREMESP, tem como principio norteador não o interesse dos usuários dos serviços de saúde ou a qualidade do atendimento, mas a regulação da entrada de força de trabalho no mercado. Interessante observar que nas lutas reais por maiores financiamentos para a saúde, a luta contra a privatização dos serviços públicos, contra as fundações da área da saúde, em defesa de educação pública de qualidade, mais verbas para a educação pública, entre muitas outras, essas entidades não participam.



E o mais importante, como agir frente a essa política?



A notícia da vinda desses milhares de cubanos e cubanos já desencadeou uma importante disputa no campo das idéias e das ações. É um momento em que as posições das classes sociais antagônicas dentro do sistema capitalista se acirrarão. Sendo assim, a posição dos revolucionários deve ser de crítica na essência das políticas de saúde do governo Dilma, mas de defesa dos médicos cubanos, sem deixar em qualquer momento de divulgar ao conjunto da sociedade as reais intenções de mais essa política paliativa, que ao mesmo tempo que chama médicos e médicas altamente qualificados de Cuba para trabalhar em regiões sem a estrutura adequada, corta recursos da saúde e privatiza os serviços e a infra-estrutura da área, para direcionar os recursos ao pagamento de banqueiros e empresários do Brasil e do mundo. Também será de fundamental importância a construção de um forte e amplo movimento social para amparar os cubanos assim que cheguem em território nacional, já que em muitos casos estará em risco, inclusive, sua segurança pessoal. Outra questão importante é aproveitar o momento de debate para defender a revalidação dos diplomas dos brasileiros e brasileiras graduados na Escola Latino Americana de Medicina em Cuba, com a devida complementação curricular nas universidades públicas do Brasil.



A experiência no Tocantins, estado cujo governo estadual em 2005 celebrou um convênio para a vinda de uma centena de médicos cubanos, mostrou que os setores mais conservadores da sociedade não estão no jogo para brincar. Muitos cubanos receberam violentas ameaças naquele momento e, depois de uma intensa luta jurídica, foram expulsos do Brasil. Esse fato, caso se repita, pode gerar uma importante mobilização social, que desde já deve ser preparada com a intensificação do debate em torno à luta por um sistema de saúde 100% estatal e pública, integral e de alta qualidade, contra qualquer tentativa de privatização/precarização e em defesa dos médicos e médicas de Cuba que trabalharão no Brasil, assim como da rebelde, incansável e persistente Revolução Cubana, exemplo de valores, de idéias e de resistência para os povos da América Latina e do mundo. E aos que insistem em atacar Cuba responderemos munidos de Eduardo Galeano:



“Não foi nada fácil esta proeza nem foi linear o caminho. Quando verdadeiras, as revoluções ocorrem nas condições possíveis. Em um mundo que não admite arcas de Noé, Cuba criou uma sociedade solidária a um passo do centro do sistema inimigo. Em todo esse tempo tenho amado muito esta Revolução. E não somente em seus acertos, o que seria fácil, senão também em seus tropeços e em suas contradições. Também em seus erros me reconheço: este processo tem sido realizado por pessoas simples, gente de carne e osso, e não por heróis de bronze nem máquinas infalíveis. A Revolução Cubana tem-me proporcionado uma incessante fonte de esperança. Aí estão, mais poderosas que qualquer dúvida, essas novas gerações educadas para a participação e não para o egoísmo, para a criação e não para o consumo, para a solidariedade e não para a competição. E aí está, mais forte que qualquer desânimo, a prova viva de que a luta pela dignidade do homem não é uma paixão inútil e a demonstração, palpável e cotidiana de que o mundo novo pode ser construído na realidade e não só na imaginação dos profetas.”



Havana, 11 de maio de 2013.



Otávio Dutra é estudante de medicina na Escola Latino Americana de Medicina em Cuba, militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e membro da Coordenação Nacional da União da Juventude Comunista (UJC).



[1] Organização Mundial da Saúde, “Cuba: Health Profile”, 2010.

[2] Conselho Federal de Medicina/IBGE, 2010

[3] Para maiores informações sobre o tema consultar o link: http://denemsul2.blogspot.com.br/p/exame-do-cremesp.html

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Partido Comunista Brasileiro – fundado em 25 de Março de 1922

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