segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Europa

Alemanha: tempestade em copo d’água
A crise envolvendo o presidente alemão, Christian Wulff, mostra, de certo modo, o lado frágil do otimismo com que grande parte da população e da mídia do país encara a presente crise européia e o papel da Alemanha nela. Quem pode se afogar no copo d’água não é só o presidente; é esse otimismo também.
Flávio Aguiar

Diz-se que para alguém se afogar, bastam 10 centímetros de água, o suficiente para cobrir o nariz e a boca.

Também é possível se engasgar com um copo d’água.

É o que parece estar acontecendo com o presidente alemão, Christian Wulff, e a crise armada em torno de um empréstimo que recebeu de um amigo, o empresário Egon Geerkens, no valor de 500 mil euros, para a compra de uma casa.

Ocorre que, quando era primeiro ministro do estado da Baixa Saxônia, Christian Wulff foi interrogado por um deputado verde sobre se teria ligações econômicas com aquele (ou outro) empresário. E ele respondeu que não. Ou seja, mentiu.

Quando veio à luz no fim deste ano que houvera o empréstimo, Wulff alegou que não o recebera do amigo, mas sim da mulher do amigo. Depois, comprovou-se que fora o amigo mesmo o autor do empréstimo. Ou seja, ele mentiu de novo.

Foi um auê. Parte da mídia alemã reagiu de modo sensacionalista – inclusive aquela que não apela comumente para esse estilo. Surgiram copiosas reportagens (inclusive no vestusto Der Spiegel, que publicou uma capa com a manchete “Der falsche Präsident”, que, mais ou menos, quer dizer “O presidente de mentira”) esquadrinhando a vida do presidente alemão, apontando-a como recheada (algo indevidamente) de luxos escandalosos. Apontou-se que Wulff teria uma propensão ostentatória, passando férias em casas luxuosas de amigos, freqüentando lugares e restaurantes carésimos, etc. Mas, a bem da verdade, nada se descobriu de criminoso. Nenhum favorecimento retumbante, por exemplo.

Qual a raiz da crise, então? Ocorre que o presidente da Alemanha é, de certo modo, mais frágil do que a rainha da Inglaterra. Por quê? Porque, paradoxalmente, é mais forte. Para a rainha da Inglaterra, basta ser rainha e cumprir funções protocolares para manter a confiança da população no estado e na monarquia. O presidente alemão vai um pouco além disso.

Certo, ele tem essas funções de receber chefes de estado, passar tropas em revista, acenar com a mão para visitantes e para o público em geral, fazer a saudação de Natal, etc. Mas tem poder de veto sobre leis aprovadas no Parlamento e no Conselho da República, uma espécie de Senado do país.

Sua função decorativa também cumpre um papel decisivo no imaginário alemão do pós-guerra. Todo o sistema político federal alemão foi montado em função de impedir uma concentração de poderes nas mãos de um homem ou mesmo de um único partido. É claro que isso se apóia na lembrança do Führer do passado, que levou a Alemanha à catástrofe militar e política da Segunda Guerra. Mas não só. Aí está também a lembrança do chanceler de ferro, Otto von Bismark, e também da sua disputa política (que levou à sua destituição) com o Kaiser Wilhelm II em busca de maior espaço. Consciente ou inconscientemente a queda de Bismark é relacionada com a eclosão da Primeira Guerra Mundial.

Toda a armadura política alemã tornou-se assim muito resiliente e conservadora, no sentido de que é quase impossível abalar seus fundamentos, ou promover reviravoltas bruscas – ainda mais depois que tanto o Partido Social Democrata quanto o Partido Verde aderiram ao capitalismo triunfante depois da Guerra Fria e à quase completa filiação ao Ocidente, com o envio de tropas ao Afeganistão.

A figura neutra e supra-partidária do presidente, ao lado da chancelaria executiva, funciona como uma espécie de fulcro de equilíbrio desse sistema político – tanto no sentido prático quanto no sentido imaginário. Ao ser designado (eleito por um Colégio Eleitoral especialmente formado para esse fim) presidente, o titular desse cargo deve imediatamente se desligar de qualquer partido político. E deve desempenhar um papel ao mesmo tempo simpático e circunspecto. Ou seja, não pode nem deve ser apanhado mentindo.

Ou mesmo dizendo verdades incômodas. O antecessor de Christian Wulff, Horst Köhler (que foi diretor presidente do FMI), foi apanhado num desses momentos incômodos, ao dizer que a presença militar alemã no exterior também serviria para garantir as rotas e os mercados comerciais para o país. A afirmação levantou uma chuva de críticas pesadas, pois ela foi associada com a presença no Afeganistão. Köhler ainda tentou se defender dizendo que na verdade ele pensara nos ataques piratas na costa da Somália. Mas não adiantou: as críticas continuaram, e ele, desgastado e ofendido, renunciou. Imediatamente as críticas voltaram-se para seu gesto, dizendo que ele fora uma “overreaction”, ou seja, afirmando explicitamente que do presidente alemão não se esperam gestos precipitados.

Na seqüência Wulff foi eleito, numa disputa contra Joachim Gauck, um pastor protestante da antiga Alemanha Oriental, apoiado pelos Verdes e pelo SPD (a Linke não o apoiou). Wulff foi eleito apenas em terceiro escrutínio, o que foi considerado uma derrota para a chanceler Ângela Merkel, que lançara a sua candidatura.

Entretanto Wulff se fortaleceu, demonstrando ter luz própria. Teve uma reação mais progressista quando Thylo Sarrazin (paradoxalmente militante do SPD) lançou um livro dizendo que a Alemanha se auto-destruía ao aceitar tamanha imigração muçulmana. Wulff exigiu que ele se afastasse do Conselho Diretor do Banco Central Alemão, dizendo que, se o Islã não era “a lei da Alemanha”, ele também fazia parte do país, coisa que desagradou sobremodo a direita mais reacionária do país e da Europa.

Quando veio à tona a existência de uma célula terrorista de extrema direita, responsável por uma dezena de assassinatos e alguns atentados a bomba, sobretudo contra imigrantes turcos, e que agira durante mais de dez anos à sombra e nas barbas da polícia e dos serviços de inteligência, Wulff prontamente recebeu os familiares das vítimas. O gesto foi lido como um desagravo, já que durante anos a polícia se limitara a procurar uma fantasmagórica “máfia turca”, negando sempre a possibilidade de atentados de extrema-direita.

Tudo isso não lhe retirou a pecha de ser uma “criação” de Ângela Merkel. Enfraquecer o presidente, portanto, equivale a enfraquecer a semi-enfraquecida chanceler, que se é a “persona forte” na Europa, enfrenta crescentes dificuldades internas para manter seu governo de pé.

A crise – que tem algo, portanto, de futrica – se estende agora. Wulff pediu desculpas por ter mentido duas vezes, e disse que não renunciava. Porém a mídia voltou a atacar, com apoios jurídicos. Para substituir o empréstimo do amigo, que já era a juro baixo, Wulff tomou um empréstimo junto ao banco público BWBank, no mesmo valor (500 mil euros), a juros entre 0,9% e 2,1%, bem mais baixos do que o usual. O resultado foi uma nova torrente de críticas e de desgaste. O caso gerou tamanha marola que o próprio líder do SPD, Sigmar Gabriel, veio a público defender que Wulff não deveria renunciar: segundo ele, duas renúncias presidenciais em menos de dois anos abalariam demais a credibilidade alemã.

Por trás da marola toda está também o fato de que a Alemanha vem exercendo o papel de “diretora moral” da Zona do Euro, pregando e exigindo “austeridade” e “sacrifícios” por parte dos demais países. Há uma crença que beira a superstição nesse receituário herdeiro do FMI de antanho* e do Consenso de Washington (agora transformado no Consenso de Bruxelas), mas que se alimenta no que podemos chamar de “as virtudes teologais do capitalismo alemão”, protestante e sóbrio nem que seja na fachada. Pode-se ganhar dinheiro, mas não ostenta-lo indevidamente. De certo modo, a vida considerada “luxuosa” de Wulff (que é católico) ofende esse “espírito de contenção”, bem como o fato de ser apanhado mentindo para se proteger de acusações que previa, e se confirmaram.

É muito provável que Wulff não renuncie mesmo (73% dos alemães, em pesquisa recente, afirmaram que ele não devia renunciar, embora 50% dissessem achar que ele favoreceria amigos), a menos que algum ato lesa-lei venha à tona.

Mas essa crise mostra, de certo modo, o lado frágil do otimismo com que grande parte da população e da mídia do país encara a presente crise européia e o papel da Alemanha nela. Quem pode se afogar no copo d’água não é só o presidente; é esse otimismo também.




Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior em Berlim.

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