terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Cartola

José Ramos Tinhorão fala sobre o primeiro disco de Cartola, lançado em 1974, quando Cartola tinha 65 anos:

“Pouco mais de seis meses após produzir para a Odeon o melhor elepê de Nélson Cavaquinho (Nélson Cavaquinho, CMOFB – 8809), o paulista J. C. Botezelli, o Pelão, acaba de confirmar sua condição de boa fada dos melhores compositores populares brasileiros com o lançamento de um novo trabalho de sua resposabilidade: o elepê Cartola (Disco Marcus Pereira 403.5007).

Por incrível que pareça, esse disco que só a perspectiva histórica permitirá compreender a verdadeira importância, no futuro, é o primeiro long-play de um dos poucos verdadeiros gênios da música popular brasileira, o compositor Angenor de Oliveira, chamado Cartola.

(...) Em certo sentido, porém, foi bom que o primeiro elepê de Cartola tivesse demorado tanto. Graças ao entusiasmo de Pelão e ao sentido cultural do trabalho de Marcus Pereira, o disco Cartola é perfeito. Sem citar o próprio compositor, que canta suas músicas com um admirável sentido de interpretação (de agora em diante, cantor que gravar samba de Cartola precisa ouvi-lo primeiro, para aprender), o elepê reúne dez dos mais competentes músicos populares brasileiros ligados à fonte popular, a saber, Horondino Silva, o Dino, e Jaime Florence, o Meira (violões), Valdiro Tramontano, o Canhoto (cavaquinho), Raul de Barros, fazendo uma espécie de gloriosa reentrée (trombone), Nicolino Cópia (flauta), Gilberto (surdo e pandeiro), Milton Marçal (cuíca e caixa de fósforo), Roberto Pinheiro, o Luna (tamborim e agogô), Jorge da Silva, o Jorginho (pandeiro), e Wilson Canegal (ganzá e reco-reco).

Dirigidos por Horondino José da Silva, o maior violão de sete cordas do Brasil, o que fizeram esses músicos e ritmistas? Ofereceram ao velho Cartola, com aquele sentimento de alegre companheirismo do povo, a melhor, mais competente, mais criativa e mais bonita moldura musical que qualquer compositor-cantor poderia esperar, para nela exibir seu talento.

Assim, fica difícil apontar o que é melhor nesse disco sem defeitos desde a capa, onde Cartola sorri, por trás dos seus óculos escuros, numa foto granulada que o mostra indefinido e único como os insondáveis mistérios do seu próprio gênio criativo. Dizer qual dos sambas do disco é o melhor? Mas como, se qualquer um deles só pode ser comparado aos de Nélson Cavaquinho, e quando se pergunta ao próprio Nélson Cavaquinho qual é o maior compositor brasileiro ele responde – Cartola.

De qualquer forma, há algumas recomendações que um estudioso de música popular brasileira pode fazer ao público, e que passo a enumerar: 1º) comprar com urgência o elepê de Cartola e, após ouvi-lo dez ou vinte vezes em seguida, começar a pressionar os amigos a fazerem o mesmo, sob pena de não poderem mais falar em música popular; 2º) atentar bem para certas passagens de sambas de Cartola, e comparar sua harmonia com o que os compositores da geração bossa-nova afirmaram ter sido a maior contribuição do movimento à música popular brasileira; 3º) ouvir com atenção o violão de Dino; 4º) demorar-se na apreciação do trabalho de trombone de Raul de Barros, em suas duas pequenas intervenções; 5º) procurar avaliar bem a riqueza do ritmo, não apenas na parte da percussão, mas de todo o conjunto; 6º) sentir o imprevisto, a originalidade e a beleza poética de certos versos (atenção para os sambas em parceria com Carlos Cachaça) e 7º) tirar o chapéu para os artistas das camadas populares urbanas brasileiras.

Porque este long-play de Cartola revela, afinal de contas, é esta verdade que qualquer pessoa imbecilizada pela cultura de massa sabe muito bem: quando a grandeza da criação repousa no espontâneo, fora do povo não há salvação. E é com ele que se deve aprender”.

José Ramos Tinhorão - Jornal do Brasil (11 de junho de 1974)

Reproduzido de www.vermutecomamendoim.com

Leia também o Livro "Cartola - Os tempos idos" de Marília Barboza da Silva e Arthur de Oliveira Filho, Editora Gryphus, RJ, 2008

Este artigo encontra-se em www.cecac.org.br

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