terça-feira, 30 de abril de 2013

Papa

Os consultores do papa
Escrito por Dom Demétrio Valentini  



Ao completar o seu primeiro mês como “Bispo de Roma”, o Papa Francisco tomou a decisão mais importante do seu pontificado. Ele constituiu um grupo de cardeais, para ajudá-lo no governo da Igreja.



A medida é original. Nenhum papa partilhou, oficialmente, o seu poder com outras pessoas. Mas além de original, esta medida tem objetivos bem claros e importantes.



Verdade que desde Paulo VI, logo depois do Concílio, a sugestão de formar um grupo de “conselheiros próximos”, uma espécie de “senado” que acompanhasse o papa nas decisões que ele deve tomar, começou a ser excogitada, como resposta aos anseios de maior participação que o Concílio tinha suscitado.



Mas a sugestão só agora toma forma, com o grupo constituído pelo Papa nesta semana.



Vale a pena intuir as intenções desta medida. São diversos ângulos por onde dá para ir entrando, na tentativa de compreender o alcance desta iniciativa.



Podemos começar pela data. A medida foi tomada depois que ele completou o primeiro mês de pontificado. Todos já iam se perguntando, depois dos gestos e das primeiras mensagens, quais seriam suas decisões práticas, para implementar as esperanças que suscitou. A data serve de indicativo do que ele de fato quer fazer. A medida de agora faz parte, portanto, do seu plano de governo.



Outra observação importante. Escolheu cardeais de todos os continentes. Isto significa, claramente, que as medidas que ele espera implementar com a ajuda desses seus “consultores” são para toda a Igreja. Ele quer sentir de perto a realidade de cada continente. De certa maneira, ele busca os mesmos objetivos dos “sínodos continentais”, instituídos por João Paulo II. E quem sabe, com um grupo menor de pessoas, a dinâmica de trabalho possa ser mais ágil.



O critério de escolha foi claramente geográfico. Mas observando atentamente, há diferenças significativas. A África, a Ásia, a Austrália, um representante de cada continente, o que parece normal. Mas a Europa ficou só com um Cardeal, de Munique, na Alemanha, e um bispo para o encargo prático de secretário. Mas a diferença maior está na América Latina, de onde ele chamou dois cardeais, do Chile e de Honduras, respectivamente o Cardeal Errazuris, e o Cardeal Maradiaga. E ainda da América, o Cardeal de Boston.



Diante destas constatações, é evidente a intenção do papa de valorizar a Igreja da América Latina. Ele assume o desafio que muitos já lhe sugeriram: temos um Papa vindo da América Latina, que universalize para toda a Igreja os valores positivos da caminhada da Igreja da América Latina.



Mas nesta constatação dá par intuir outra segurança que o papa Francisco está buscando. Ele quer “sentir firmeza” com a boa experiência que ele teve na Conferência de Aparecida, em 2007, quando foi coordenador da equipe de redação. E seus auxiliares imediatos eram o Cardeal Errazuris, do Chile, e o Cardeal Maradiaga, de Honduras. Agora, chamou os dois, privilegiando a América Latina com dois representantes, que foram seus companheiros no momento talvez mais importante que teve, antes de ser papa, a Quinta Conferência da América Latina. E ainda por cima estabeleceu o Cardeal Maradiaga como coordenador do grupo todo.



Portanto, dá para esperar muitos encaminhamentos, decorrentes desta importante iniciativa do papa Francisco. Ele quer encontrar um primeiro consenso entre estes seus auxiliares mais próximos, para contar com o consenso de todos, nas importantes decisões que a Igreja e a humanidade estão esperando em nosso tempo.





D. Demetrio Valentini é bispo da diocese de Jales (SP).

Para ajudar o Correio da Cidadania e a construção da mídia independente, você pode contribuir clicando abaixo.

Pensamentando

Os suspeitos (Os culpados)

David Remnick, New Yorker, ed. 29/4/2013
“The Culprits”
Traduzido (só o que interessa) e comentado pelo pessoal da Vila Vudu

David Remnick
Entreouvido na Vila Vudu: Esse artigo não é nenhuma maravilha. Longe disso. Começamos por ter de corrigir o título. E decidimos excluir as manifestações nada jornalísticas de simpatia “por Boston”, que não interessam e distorcem todas as avaliações, a começar pelo que diz o presidente Obama; não interessam a ninguém, como informação – que não são: são puro opinionismo falso-jornalístico – e ajudam a criar o clima ideológico necessário para justificar todas as práticas policiais, por mais violentas e menos democráticas que sejam.

Além disso, o artigo é carregado de “interpretações” gratuitas, sem qualquer fundamento – como a “conclusão” de que, “porque” alguém assiste a determinados vídeos ou escreve coisas pelo Twitter, estaria “provada” alguma culpa.

Mas, dado que até quando é tão ruim e manipulatório quanto qualquer jornalismo (The New Yorker é uma espécie de revista (não)Veja, mas dirigida a público menos analfabeto); o jornalismo norte-americano ainda assim é melhor que o jornalismo brasileiro – que é o pior do mundo –, decidimos traduzir.

Aproveitam-se daí, pelo menos, algumas linhas objetivas sobre os dois acusados.

Evidentemente não são, ainda, culpados de coisa alguma. E até que sejam julgados e condenados, são, evidentemente, inocentes – embora um já tenha sido morto e o outro, no hospital, só tenha, de futuro, a tortura, como todos já sabem, mas o “jornalismo” de The New Yorker não informa.

Tamerlan e Dzhokar Tsarnaev
Durante a 2ª Guerra Mundial, Joseph Stálin declarou que o povo da Chechênia  seria desleal à URSS e expulsou os chechenos de sua terra original, no norte do Cáucaso, para a Ásia Central e o fundo da Sibéria. Dezenas de milhares de chechenos, com membros de outros grupos étnicos menores do Cáucaso e da Península da Criméia, morreram durante a operação de deportação em massa ou logo depois – muitos de frio, muitos de fome.

A família Tsarnaev acabou por se instalar numa cidade chamada Tokmok, no Quirguistão, não distante da capital Bishkek. Muitos dos que sobreviveram aos 13 anos seguintes de exílio foram afinal autorizados a voltar para casa, no final dos anos 1950s, no governo de Nikita Khrushchev, e reconstituíram um senso de pertencimento e de identidade. Alguns continuaram expatriados. Os chechenos falam russo com sotaque típico; e praticamente todos mantém o próprio idioma, noxchiin mott. A região do Cáucaso é extremamente multicultural, mas a religião predominante no norte é o Islã. O espírito nacional checheno aparece sempre, invariavelmente definido como “furiosamente independente”.

Localização da Chechênia
No colapso da União Soviética em 1991, rebeldes nacionalistas lutaram duas guerras terríveis contra o Exército Russo pela independência da Chechênia. No fim, os grupos rebeldes foram ou dizimados ou passaram para o lado dos russos. Mas a rebelião persiste, na Chechênia e em regiões vizinhas – Daguestão e Inguchétia – e agora já tem caráter fundamentalista. A palavra-de-ordem é “jihad global”. As táticas são sequestros, assassinatos, bombas.

Anzor Tsarnaev, checheno por etnia, que viveu grande parte da vida no Quirguistão, emigrou há uma década para a área de Boston com a esposa, duas filhas e dois filhos. Apesar da artrite nos dedos, ganhou a vida como mecânico de automóveis. Membros da família assistiam aos serviços religiosos, apenas ocasionalmente, numa mesquita da rua Prospect em Cambridge, mas nada jamais houve de fundamentalista no modo de viver ou conviver da família.

O filho mais velho de Anzor, Tamerlan, jamais deu a impressão de ter-se conectado plenamente com a vida nos EUA. “Não tenho nenhum amigo norte-americano”, contou a um fotógrafo, Johannes Hirn, que fotografava Tamerlan num treino de boxe. “Não compreendo os norte-americanos”. Frequentou aulas no Bunker Hill Community College, na turma preparatória para Engenharia. Descreveu-se como “muito religioso”; não bebia nem fumava. 26 anos e 90 quilos, boxeava regularmente no centro Wai Kru de artes marciais. Adorou “Borat” (apesar de algumas piadas, que são “um pouco demais”). Teve uma filha, mas nenhuma família estável. Foi preso, há três anos, por agressão doméstica. (“Nos EUA, não se pode nem encostar numa mulher” – Tamerlan disse ao Times).

David Bernstein, matemático aposentado, natural de Moscou, que emigrou há 33 anos, disse que conhecia a família, porque costumava levar o carro regularmente à oficina de Anzor. Observou que Tamerlan trabalhava às vezes na oficina, mas que não parecia satisfeito. “Conversei conversas à toa com Tamerlan” – Bernstein recordou:

Perguntei-lhe se sabia o significado de seu nome, “o grande guerreiro”. Ele falava às vezes de política e religião. Disse-lhe que, em certo sentido, todo mundo é religioso; ele me disse que eu deveria me converter à religião muçulmana. Respondi que “cada um inventa a própria religião” e encerrei a discussão.

Quando Bernstein soube que seu conhecido estava sendo considerado acusado por um ato de terrorismo na linha de chegada da Maratona de Boston, ficou zonzo. “Senti-me como um Forrest Gump”, disse ele. “De repente, ele fica famoso por causa desse ato, e eu, lá, tantas vezes conversando com ele. Mas quem poderá dizer que realmente o conhecia?”.

Dzhokhar, 19 anos, concluiu o ginásio na Cambridge Rindge and Latin School, onde era localmente famoso como lutador de luta livre, descrito como ágil, rápido e um pouco tímido. Ganhou uma bolsa de estudos da cidade de Cambridge. Trabalhou durante alguns anos como salva-vidas numa das piscinas do campus, em Harvard. Outro salva-vidas, seu colega, lembra dele como rapaz “agradável”, com “bom senso de humor”. Colegas de ginásio também recordam Dzhokhar com prazer. “Era bom sujeito” – disse Ashraful Rahman. “Nunca senti nele qualquer vibração ruim. Não era estudante-gênio, mas era esperto. Nos encontramos algumas vezes na mesquita em Cambridge. Dzhokhar ia mais à mesquita que eu, mas não era devoto absoluto. Penso no que aconteceu e me pergunto se teria sido obrigado a fazer o que fez. Terá sofrido lavagem cerebral? Nada, aí, parece ter a ver com ele. Mas não se pode esquecer que “estava na erva”. Fumava muito. Marijuana. E esse pessoal é calmo, mesmo, sempre devagar”.

Essah Chisholm, colega de luta livre, disse também que “ele era bom sujeito”. Mas quando Chisholm e alguns amigos viram fotos dos irmãos Tsarnaev pela televisão, na 5ª-feira à noite, ligaram para o número criado pelo FBI para receber informações. Na mesma noite, mais tarde, começou o confronto armado – tiroteiro, caçada furiosa, bombas. “Não dá p’ra entender” – disse Chisholm na 6ª-feira à tarde. “Cada vez que vejo o nome dele na televisão, é sempre inacreditável. Ler o nome de Dzhokhar, ver fotografias. Acho que tem a ver com o irmão mais velho. A menos que ele fosse alguma espécie de agente à espera. Acho que o irmão teve forte influência. Tamerlan talvez se sentisse excluído, diferente, e pode ter feito lavagem cerebral em Dzhokhar, para convencê-lo de ideias radicais, que distorcem o que diz o Corão.” (...)

Feiz Muhammad
Mas a impressão de alheamento – “Parecia bom sujeito” – começa a desaparecer, à medida que nos aproximamos dos irmãos Tsarnaev. O canal Youtube de Tamerlan exibe vários vídeos de apoio ao fundamentalismo e à jihad violenta, dentre os quais uma fala de Feiz Muhammad, clérigo australiano e ex-boxeador que vive na Malásia; num dos vídeos, o clérigo critica o “paganismo” pervertido dos filmes de Harry Potter. Noutro, vê-se uma dramatização da profecia do Armageddon dos Bandeiras Negras de Khurasan, poderosíssima força militar islamista que se levantará na Ásia Central para derrotar os infiéis; é uma das principais profecias marciais-religiosas de que se alimenta a Al-Qaeda.

A conta de Dzhokhar na (empresa) Twitter (@J_tsar) é estranha combinação de banalidade e desesperança. (Ele parece ter continuado a tuitar mesmo depois das explosões da 2ª-feira passada). Se se lê o que escrevia, descobre-se um pouco do que pensa: suas piadas, seus ressentimentos, seus preconceitos, sua fé, os desejos.

14/3/2012: “uma década já nos EUA, quero cair fora”

16/8/2012: “A vida humana não vale nada hoje em dia É #tragic”

22/8/2012: “Sou o melhor jogador de beer pong em Cambridge. Eu sou #verdade”. Vídeo a seguir:

1/9/2012: “não sei por que tão difícil para tantos de vocês aceitar que 11/9 foi serviço interno. Quero dizer, fodam-se os fatos, vcs são mesmo #patriots #gethip [abram o olho]”

24/12/2012: “Irmãos na mesquita pensam que sou convertido, ou da Argélia ou Síria Outro dia me perguntaram como cheguei ao Islã”

15/1/2013: “Não discuto com idiotas q dizem que Islã é terrorismo e não vale nada. Idiotas, continuem idiotas”

13/3/2013: “Não tente espetar o garfo num minitomate, se estiver de camisa branca: ele explodirá”.

10/4/2013: “Ganhe conhecimento, ganhe mulheres, arranje dinheiro #livestrong”

15/4/2013: “Não há amor no coração da cidade Se cuidem, pessoal”.

15/4/2013: “Tem gente que sabe a verdade mas cala & tem gente que diz a verdade mas ninguém ouve porque são a minoria”.

16/4/2013: “Sou do tipo que não estressa”.


Gregory Shvedov
Gregory Shvedov, editor de uma página Web com base em Moscou, “Caucasian Knot” [Nó caucasiano], visita regularmente o Cáucaso e estuda o movimento jihadista, o governo russo e sua ação militar na região. Não manifestou qualquer surpresa ante a notícia de que dois chechenos étnicos, criados há longo tempo nos EUA, mas ainda profundamente ligados ao país de origem, possam ter praticado um ato “tipo bomba soft”, como o da Maratona. “Hoje há redes sociais, e as pessoas as usam para tomar decisões” – disse ele, de Moscou. “Não me surpreenderia que tivessem outra vida, nas mídias sociais. Que vídeos veem? O que leem e o que veem por YouTubes, sobre jihad?”.

Mas se Tamerlan fez o que é suspeito de ter feito, pode não ter sido educado, ou instruído, exclusivamente por meios digitais. Dia 12/2/2012, viajou de New York para Moscou, alvo regular da ira dos chechenos. Só retornou sete meses depois. (...)

Já no final do dia de ontem, era impossível não sentir alguma simpatia também pelos pais dos acusados, nenhum dos quais aceita sequer a possibilidade de que seus filhos sejam culpados. Entrevistados no apartamento onde vivem em Makhachkala, capital do Daguestão, falaram de “armação” urdida pelo FBI. A mãe, Zubeidat Tsarnaeva, disse à rede de televisão Russia Today: -“Meu filho me telefonava todos os dias e perguntava “Como está, mamãe?” Os dois telefonavam. “Mamãe, amo você”. Meu filho não tinha segredos”. O pai falou de Dzhokhar como “um anjo”.

No final da 6ª-feira, já manhã de sábado no Daguestão, o destino dos dois filhos do casal mudara completamente: um estava morto; o outro, ferido, hospitalizado e preso.

A família Tsarnaev já sofreu o peso da história antes – a fúria do império, a dor do deslocamento, por exílio e emigração. O asilo numa nova terra promissora pouco ajudou. Quando o pai, Anzor, sentiu-se doente, há alguns anos, decidiu retornar ao Cáucaso: era impensável, para ele, morrer nos EUA. Atravessara meio mundo, para bem longe da terra dos antepassados, mas algo o arrastou de volta ao Cáucaso. O sonho americano não é igual para todos. Mas nunca poderia prever o destino terrível que teriam seus dois filhos, destruídos pelo terror. A era digital não garante asilo a nenhum extremismo, muito menos à combinação tóxica de fanatismo religioso e doloridas decepções de homens fortes e jovens. Uma década já nos EUA, quero cair fora.
(Redecastor)

Maiakóvski

BLUSA FÁTUA

Costurarei calças pretas
com o veludo da minha garganta
e uma blusa amarela com três metros de poente.
Pela Niévski do mundo, como criança grande,
andarei, donjuan, com ar de dândi.

Que a terra gema em sua mole indolência:
“Não viole o verde de as minhas primaveras!”
Mostrando os dentes, rirei ao sol com insolência:
“No asfalto liso hei de rolar as rimas veras!”

Não sei se é porque o céu é azul celeste
e a terra, amante, me estende as mãos ardentes
que eu faço versos alegres como marionetes
e afiados e precisos como palitar dentes!

Fêmeas, gamadas em minha carne, e esta
garota que me olha com amor de gêmea,
cubram-me de sorrisos, que eu, poeta,
com flores os bordarei na blusa cor de gema!

( Maiakóvski – tradução: Augusto de Campos )


Palestinos

Operação Chumbo
Eduardo Galeano
Escritor e jornalista uruguaio
Adital

Tradução: ADITAL

Para justificar-se, o terrorismo de Estado fabrica terroristas: semeia ódio e colhe álibis. Tudo indica que essa carnificina de Gaza que, segundo seus autores, quer acabar com os terroristas, conseguirá multiplicá-los.

Desde 1948, os palestinos vivem condenados à humilhação perpétua. Não podem nem respirar sem permissão. Perderam sua pátria, suas terras, sua água, sua liberdade, seu tudo. Nem sequer têm direito a eleger seus governantes. Quando votam em quem não devem votar são castigados. Gaza está sendo castigada. Converteu-se em uma ratoeira sem saída desde que o Hamas ganhou limpamente das eleições, em 2006. Algo parecido havia acontecido em 1932, quando o Partido Comunista triunfou nas eleições de El Salvador. Banhados em sangue, os salvadorenhos expiaram sua má conduta e desde então viveram submissos a ditaduras militares. A democracia é um luxo que nem todos merecem.

São filhos da impotência os foguetes caseiros que os militantes do Hamas, encurralados em Gaza, disparam com desajeitada pontaria sobre as terras que haviam sido palestinas e que a ocupação israelita usurpou. E o desespero, à beira da loucura suicida, é a mãe das bravatas que negam o direito à existência de Israel; gritos sem nenhuma eficácia, enquanto a muito eficaz guerra de extermínio está negando, há anos, o direito à existência da Palestina.

Já resta pouca Palestina. Passo a passo, Israel vai apagando-a do mapa.

Os colonos invadem, e atrás deles os soldados vão corrigindo a fronteira. As balas sacralizam o despojo, em legítima defesa.

Não há guerra agressiva que não diga ser guerra defensiva. Hitler invadiu a Polônia para evitar que a Polônia invadisse a Alemanha. Bush invadiu o Iraque para evitar que o Iraque invadisse o mundo. Em cada uma de suas guerras defensivas, Israel ‘tragou’ um pedaço da Palestina, e os ‘almoços’ continuam. A ‘devoração’ se justifica pelos títulos de propriedade que a Bíblia outorgou; pelos dois anos de perseguição que o povo judeu sofreu e pelo pânico que os palestinos geram à espreita.

Israel é o país que jamais cumpre as recomendações e as resoluções das Nações Unidas; é o que nunca acata as sentenças dos tribunais internacionais; o que se ri das leis internacionais; e é também o único país a legalizar a tortura dos prisioneiros.

Que lhe deu o direito de negar todos os direitos? De onde vem a impunidade com que Israel está executando a matança em Gaza? O governo espanhol não teria podido bombardear impunemente o País Basco para acabar com o ETA, nem o governo britânico teria podido arrasar a Irlanda para liquidar a IRA. Por acaso a tragédia do Holocausto implica em uma apólice de eterna impunidade? Ou essa luz verde provém da potência ‘manda chuva’ que tem em Israel o mais incondicional de seus vassalos?

O exército israelense, o mais moderno e sofisticado do mundo, sabe a quem mata. Não mata por erro; mata por horror. As vítimas civis são denominadas ‘danos colaterais’, três são crianças. E os mutilados são milhares, vítimas da tecnologia do esquartejamento humano, que a indústria militar está ensaiando exitosamente nessa operação de limpeza étnica.

E, como sempre, sempre o mesmo: em Gaza, cem a um. Para cada cem palestinos mortos, um israelense.

Gente perigosa, adverte o outro bombardeio, a cargo dos meios de comunicação em massa de manipulação que nos convidam a acreditar que uma vida israelense vale tanto quanto cem vidas palestinas. E esses meios também nos convidam a acreditar que são humanitárias as duzentas bombas atômicas de Israel e que uma potência nuclear chamada Irã foi a que aniquilou Hiroshima e Nagasaki.

A chamada comunidade internacional existe?

É algo mais do que um clube de mercadores, banqueiros e guerreiros? É algo mais do que o nome artístico que os Estados Unidos assumem quando fazem teatro?

Ante a tragédia de Gaza, a hipocrisia mundial brilha uma vez mais. Como sempre, a indiferença, os discursos vazios, as declarações ocas, as declamações altissonantes, as posturas ambíguas rendem tributo à sagrada impunidade.

Ante a tragédia de Gaza, os países árabes lavam as mãos. Como sempre. E como sempre, os países europeus esfregam as mãos.

A velha Europa, tão capaz de beleza e de perversidade, derrama uma ou outra lágrima enquanto secretamente celebra essa jogada mestra. Porque a caça de judeus sempre foi costume europeu; porém, há meio século essa dívida histórica está sendo cobrada aos palestinos, que também são semitas e que nunca foram,nem são, antissemitas. Eles estão pagando, com sangue constante e sonante, uma conta alheia.

(Este artigo é dedicado a meus amigos judeus assassinados pelas ditaduras latino-americanas assessoradas por Israel).
[NdE.: Original em espanhol publicado em Página/12, Argentina].

Maiacovski

MINHA UNIVERSIDADE

Conheceis o francês,
sabeis dividir,
multiplicar,
declinar com perfeição.
Pois, declinai!
Mas sabeis por acaso
cantar em dueto com os edifícios?
Entendeis por acaso
a linguagem dos bondes?
O pintainho humano
mal abandona a casca
atraca-se aos livros
e a resmas de cadernos.
Eu aprendi o alfabeto nos letreiros
folheando páginas de estanho e ferro.
Os professores tomam a terra
e a descarnam
e a descascam
para afinal ensinar:
“Toda ela não passa dum globinho!”
Eu com os costados aprendi geografia.
Não foi à toa que tanto dormi no chão.
Os historiadores levantam
a angustiante questão:
- Era ou não roxa a barba de Barba Roxa?
Que me importa!
Não costumo remexer o pó dessas velharias!
Mas das ruas de Moscou
conheço todas as histórias.
Uma vez instruídos,
há os que propõem
a agradar às damas,
fazendo soar no crânio suas poucas idéias,
como pobres moedas numa caixa de pau.
Eu, somente com os edifícios, conversava.
Somente os canos dágua me respondiam.
Os tetos como orelhas espichando
suas lucarnas atentas
aguardavam as palavras
que eu lhes deitaria.
Depois
noite a dentro
uns com os outros
palravam
girando suas línguas de catavento.

Casadáliga

 Deixa a cúria, Pedro
pilatos

Na bacia arrumada, Pilatos se lava, legalista e covarde

Poema de Dom Pedro Casaldáliga, bispo emérito da prelazia de São Félix do Araguaia, para reflexão pós-renúncia do papa.

Deixa a Cúria, Pedro,
Desmonta o sinédrio e as muralhas,
Ordene que todos os pergaminhos impecáveis sejam alterados
pelas palavras de vida e amor.

Vamos ao jardim das plantações de banana,
revestidos e de noite, a qualquer risco,
que ali o Mestre sua o sangue dos pobres.

A túnica/roupa é essa humilde carne desfigurada,
tantos gritos de crianças sem resposta,
e memória bordada dos mortos anônimos.

Legião de mercenários assediam a fronteira da aurora nascente
e César os abençoa a partir da sua arrogância.
Na bacia arrumada, Pilatos se lava, legalista e covarde.

O povo é apenas um “resto”,
um resto de esperança.
Não O deixe só entre os guardas e príncipes.
É hora de suar com a Sua agonia,
É hora de beber o cálice dos pobres
e erguer a Cruz, nua de certezas,
e quebrar a construção – lei e selo – do túmulo romano,
e amanhecer
a Páscoa.

Diga-lhes, diga-nos a todos
que segue em vigor inabalável,
a gruta de Belém,
as bem-aventuranças
e o julgamento do amor em alimento.

Não te conturbes mais!

Como você O ama,
ame a nós,
simplesmente,
de igual a igual, irmão.

Dá-nos, com seus sorrisos, suas novas lágrimas,
o peixe da alegria,
o pão da palavra,
as rosas das brasas…
… a clareza do horizonte livre,
o mar da Galileia,
ecumenicamente, aberto para o mundo.

Pedro Casaldáliga

Leia também: “O problema é ter medo do medo” (entrevista exclusiva de D. Pedro Casaldáliga ao QTMD?)

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Venezuela

Maduro sai da defensiva, e critica Capriles e EUA
Em três pronunciamentos feitos em cadeia de rádio e televisão em horários diferentes, presidente eleito da Venezuela afirmou que vai usar ‘mão dura contra o fascismo’. Ele avisou que seu governo não reconhecerá governadores que o considerem ilegítimo – Capriles governa Miranda – e acusou os EUA, um dos poucos países que não reconheceram sua vitória – de financiar a oposição.

Jonatas Campos e Vinicius Mansur - ComunicaSul



Caracas – O presidente recém-eleito da Venezuela, Nicolás Maduro, aumentou o tom e partiu para o ataque no debate político por todo o dia de hoje (16). Em três pronunciamentos feitos em cadeia de rádio e televisão em horários diferentes, Maduro afirmou que vai usar “mão dura contra o fascismo” e proibiu uma marcha chamada pelo candidato derrotado Henrique Capriles Radonski para esta quarta-feira (17). O chavista ainda avisou que seu governo não vai reconhecer governadores que o considerem ilegítimo. Capriles é governador do Estado de Miranda.

Maduro também acusou a embaixada norte-americana de estar financiando a oposição. O governo dos Estados Unidos é um dos únicos das Américas que aderiu à campanha da oposição de pedir a recontagem dos votos. Ele anunciou medidas de segurança para o sistema elétrico do país que, segundo ele, vem sofrendo inúmeras tentativas de sabotagem.

Na segunda-feira (15), Capriles pediu nas redes sociais que seus seguidores "descarregassem sua raiva" ante a proclamação do presidente Nicolás Maduro no Conselho Nacional Eleitoral (CNE) e convocou um “panelaço” para as 20h da noite. Como resultados dos protestos desde ontem à noite, o governo afirma que ocorreram setes mortes perpetradas por ataques de pessoas ligadas à oposição.

“Agora estão planejando uma marcha ao centro de Caracas. Não vamos permitir. Vocês não vão para lá enchê-lo (o centro) de morte e sangre, não vou permitir que façam o que querem fazer. Vou usar a mão dura contra o fascismo e a intolerância, então digo, se querem me derrubar, venham para mim, aqui estou com o povo e uma Força Armada, seu burguês”, asseverou Maduro em uma inauguração de um centro de saúde.

Já a tarde, em um evento com trabalhadores da Petróleos da Venezuela (PDVSA), o presidente eleito acusou a embaixada dos Estados Unidos de financiar os atos de violência e alcunhou o seu opositor como o “novo Carmona", referindo-se ao empresário Pedro Carmona, que liderou o golpe fracassado contra o presidente Hugo Chávez em abril de 2002.

Em sua terceira aparição, já inaugurando um hospital no Estado Aragua, a algumas horas de Caracas, Maduro disse não reconhecer Capriles como governador o chamou os chavistas a protestar em favor do governo. “Chamo a todo o povo chavista, nacionalista e patriota, para isolar os golpistas. Não venha agora a disfarçar-se de pacifista. Não confundam nossos anseios de paz com debilidade”, disse o presidente em franco ataque.

Capriles
Por sua vez, Capriles desistiu de realizar a marcha e acusou o governo de estar por detrás dos episódios de violência. “Amanhã não vamos nos mobilizar, peço aos meus seguidores que se recolham. Amanhã ninguém vai. Quem sair está ao lado da violência. O governo quer que haja mortos no país”, acusou em coletiva de imprensa.

O oposicionista sustentou que “informações de inteligência” vindas das Forças Armadas revelaram que o governo pretendia infiltrar pessoas na marcha desta quarta-feira (17). “O governo quer através da violência que não se fale do assunto pelo qual estejamos aqui”, disse, referindo-se a sua demanda de recontagem de 100% dos votos.

Na coletiva, Capriles apresentou denúncias de irregularidades ocorridas no pleito de 14 de abril. Segundo o opositor, 535 máquinas de votação estariam danificadas; testemunhas da oposição teriam sido retiradas de 283 centros de votação; haveria mais de 600 mil falecidos nas listas de votantes; em 1176 centros, Maduro teria tido mais votos do que Chávez; em 564 centros eleitores teriam sido acompanhados irregularmente até a urna; toldos vermelhos do partido de Maduro (PSUV) estariam irregularmente próximos a 421 centros; motoqueiros teriam amedrontado eleitores em 397 centros.

Capriles ainda apresentou supostas listas de votantes e ata de verificação cidadã de uma mesma mesa de votação, no estado de Trujillo, onde haveria 181 votos a mais na ata do que pessoas na lista. Em tom de denúncia, Capriles também afirmou que pessoas com mais de 100 anos votaram.

A despeito da grita da oposição, Maduro reafirmou que não há necessidade de recontagem dos votos, visto que o sistema eleitoral venezuelano já prevê uma auditoria de 54% das caixas onde os votos são depositados depois de fechadas as mesas. A maior parte dos países das Américas já reconheceu a vitória de Maduro, entre eles, Brasil, Argentina, Equador, México, Bolívia, Colômbia, Peru, Uruguai, Haiti, Cuba, Guatemala e Nicarágua.

(Carta Maior)

Crianças palestinas

ALÉM DO RACISMO: ISRAEL E SIONISMO
 

Por Abdel Latif Hasan Abdel Latif, médico palestino

Dez crianças palestinas, com idades de 4 a 5 anos de idade, foram mortas em um acidente de trânsito perto de Jerusalém, em 16 de fevereiro de 2012. Outras quarenta criancinhas ficaram feridas, sendo oito em estado grave.

Uma notícia que deveria ser “normal”. Acidentes de trânsito acontecem diariamente no mundo inteiro. Há vítimas fatais nesses acidentes, inclusive crianças. É verdade que a morte de crianças é sempre mais trágica e mais triste. Todas as crianças do mundo devem nascer para viver longamente e morrer na idade certa, não morrer prematuramente em acidentes de trânsito, desnutrição e doença e muito menos morrer em guerra.

O mundo acostumou-se a presenciar, às vezes ao vivo, a morte das crianças palestinas, vítimas de ataques israelenses contra suas cidades e suas casas. Durante o último grande massacre em Gaza em 2008/2009, mais de quatrocentas crianças palestinas foram assassinadas, sob alegação de que eram sacrificadas para a garantia da segurança do Estado judeu.

A maioria dos governos do mundo que se auto-intitula civilizado, se cala  sob a subserviência e temor ao lobby  sionista mandante do  planeta.

A morte de civis palestinos é considerada  efeito colateral aceitável e justificável nesse genocídio que Israel realiza há mais de sessenta anos. Mas, mesmo quando os palestinos morrem em acidentes “naturais”, há algo mais trágico e mais triste. Certamente não porque os palestinos são diferentes ou são o povo escolhido de Deus, mas porque a situação em que eles vivem é anormal em todos os sentidos.

Na Palestina ocupada, a ocupação israelense transformou a vida dos palestinos em seqüências de tragédias, massacres, uma luta constante pela sobrevivência.

Na Palestina ocupada, não há normalidade, porque a ocupação em si é algo anormal, insano e patológico. Até a morte “natural” dos palestinos é anormal.

O acidente que causou a morte das crianças palestinas no último dia 16 é exemplo disso.Esse acidente levanta questões que a consciência elástica, racista e seletiva do ocidente e principalmente dos Estados Unidos, tenta ocultar.

Primeiro: mais do que racismo, é uma doença. A morte de crianças deveria causar solidariedade, tristeza e reflexão, independentemente da religião ou nacionalidade das vítimas.  Esta regra tem exceção em  Israel quando as vítimas são palestinas.

Vários sites de notícia em Israel celebraram a tragédia palestina. No site de notícias israelenses WALLA, foram publicados vários comentários racistas de judeus celebrando o ocorrido. Exemplos dos trechos publicados:

BENNY – “Acalmem-se, todos os mortos são crianças palestinas”

TAL – “Graças a Deus, são palestinos. Como seria bom se acontecesse todo dia”.

ALEYAH – “O ônibus de crianças palestinas, vamos rezar para muitos morrerem. Que boa notícia para começar o dia”.


O jornal israelense HAARETZ, no dia seguinte ao acidente, publicou outros comentários, que apareceram no facebook do primeiro ministro israelense. “Deixem que eles morram. Por que devemos ajudar?”; “Pagam dinheiro para eles, porque os árabes se importam mais com dinheiro do que com seus próprios filhos”, “Mande mais caminhões para os territórios ocupados” (era israelense o caminhão que se chocou com o ônibus escolar).

Segundo o jornal israelense, os responsáveis pela página de Netaniahu não retiraram os comentários racistas, muito menos condenaram esses comentários. Mesmo na página oficial da polícia israelense, mais comentários racistas. Um deles declarou: “São apenas futuros terroristas, Deus tomou suas providências”. Celebrar a morte de crianças mostra o grau de decadência moral que uma sociedade colonialista pode chegar. Isso ultrapassou o racismo para ser uma doença, que vai além do mínimo aceitável por  qualquer sociedade minimamente civilizada.

Segundo: o acidente mostra a infraestrutura de ocupação e apartheid nos territórios palestinos. Na Palestina, há dois tipos de estrada. O primeiro tipo são estradas de primeiro mundo, modernas, seguras e construídas nas terras confiscadas dos palestinos, e se destinam apenas para uso dos colonos judeus instalados ilegalemente nos territórios palestinos. Os palestinos são proibidos de trafegar nessas estradas.  O segundo tipo são as estradas antigas, não conservadas e perigosas, destinadas aos palestinos, nativos e verdadeiros donos da terra.

A estrada onde aconteceu a tragédia liga Jerusalém a Ramallah. Israel recusou vários pedidos da Autoridade Palestina para melhorar as condições de tráfego no local. Vários postos de controle militar israelense foram construídos nessa estrada a fim de dificultar ainda mais a vida dos palestinos.As próprias organizações israelenses falam em seiscentos postos de controle militar nas estradas dos palestinos.Sob a ocupação israelense, a morte chega aos palestinos não apenas com tanques e caças, mas também nas estradas projetadas para matar.

Terceiro: o acidente mostra mais uma vez, as armadilhas do Acordo de Oslo.  Com os acordos de Oslo, a verdadeira intenção de Israel não era chegar à paz com os palestinos, mas meramente um arranjo para continuar a ocupação e  o controle dos palestinos de uma forma menos visível e menos custosa. Uma ocupação de luxo.

Os acordos dividiram os territórios palestinos em três áreas:

Área A – 8% do território e sob controle da Autoridade Nacional Palestina. Essas áreas “independentes”  são cercadas por postos militares e assentamentos judaicos ilegais. São verdadeiros guetos, onde a entrada e saída de palestinos e seus bens são de total controle israelense. Até o próprio presidente da Autoridade Palestina, para sair do gueto de Ramallah, necessita de autorização de oficiais judeus.  

Área B – controle misto de israelenses e palestinos.

Área C – mais de 60% dos territórios ocupados. Controle exclusivo de Israel.

O acidente ocorreu na área C, sob controle israelense. O corpo de bombeiros e as ambulâncias da Autoridade Palestina necessitam de autorização dos israelenses, a cada movimentação.  Durante  o acidente, os israelenses não apenas demoraram para conceder a autorização para o socorro das crianças, mas também impediram que os populares presentes no local prestassem socorro às vítimas.

As crianças palestinas mortas são vítimas de acidente trágico de trânsito, mas os verdadeiros criminosos são a ocupação israelense, o racismo sionista e todos aqueles que não levantam sua voz contra o racismo e a ocupação.

Dez novas pequenas estrelas acenderam para iluminar o céu bonito da Palestina, enquanto Israel, o Estado, a sociedade e a ideologia continuam na suas trevas espirituais.

Sábios judeus já profetizaram: Israel é o túmulo do judaísmo.

Palestina, pátria dos palestinos, de sempre e para sempre, recebe de braços abertos e olhos cheios de lágrima seus pequenos filhos carbonizados pelo ódio e racismo judaicos. A alma palestina está mais determinada ainda: o dia da liberdade chegará!

Palestina, berço das religiões, terra de luz, de tolerância, cadinho de povos e raças e civilizações, tem o que seus inimigos, inimigos da humanidade, do que é belo e decente não tem: paciência, fé, esperança. Por isso, a Palestina sairá vitoriosa e eles serão derrotados.


Mônica Simões.
(Fonte?)

Poemas...

E então, que quereis?

maiakovski

E então, que quereis?

Fiz ranger as folhas de jornal
abrindo-lhes as pálpebras piscantes.
E logo
de cada fronteira distante
subiu um cheiro de pólvora
perseguindo-me até em casa.
Nestes últimos vinte anos
nada de novo há
no rugir das tempestades.
Não estamos alegres,
é certo,
mas também por que razão
haveríamos de ficar tristes?
O mar da história
é agitado.
As ameaças
e as guerras
havemos de atravessá-las,
rompê-las ao meio,
cortando-as
como uma quilha corta
as ondas.


Extraído do blog Maiakóvski- Poemas Traduzidos Selecionados
Enviado pelo pessoal da Vila Vudu
Redecastor)

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Palestinos

Uma jornalista israelense em terras palestinas
Amira Hass é considerada única jornalista israelense a residir junto aos palestinos nos territórios ocupados. Ao visitar São Paulo, ela fez um relato do difícil cotidiano das famílias palestinas diante das restrições impostas por Israel. Para ela, drama é simbolizado pela desigualdade no abastecimento de água, em falta para os palestinos, mas farta para abastecer piscinas de assentamentos.

Luciana Garcia de Oliveira

Há um pouco mais de um mês do dia em que é tradicionalmente comemorado os 65 anos da Independência do Estado de Israel, foi realizado um debate “Jornalismo e política: a construção da imagem de Israel e da Palestina” no auditório da B'nai B'rith, em São Paulo, com a ilustre presença da jornalista israelense Amira Hass. Filha única de dois sobreviventes do holocausto nazista, Amira Hass nasceu em Jerusalém, onde estudou na renomada Universidade Hebraica de Jerusalém. Ao longo da sua carreira como jornalista, muito frustrada com os desdobramentos da primeira Intifada, sobretudo com relação à cobertura israelense frente aos desdobramentos das manifestações palestinas, decidiu trabalhar diretamente dentro dos locais de conflito, os territórios palestinos ocupados, em 1991 e, desde então foi considerada (até o ano de 2003) como a única jornalista israelense a residir junto aos palestinos em regiões como Gaza (1993) e Ramallah (1997).

Em São Paulo, Hass relatou de maneira detalhada o modo pelo qual o discurso do holocausto é imposto dentro da sociedade palestina desde as primeiras migrações estrangeiras na região. É notado, no entanto que, a partir da fundação do Estado judeu, a história de Israel é permeada de inúmeras omissões, principalmente no que tange as esferas de comunicação e conhecimento. Sobre essa questão, Amira Hass ressaltou, diante de um público formado pela comunidade judaica de São Paulo, acerca do longo processo de destruição econômica, social e cultural da Palestina e dos palestinos desde antes de 1948.

Foram os desdobramentos da chamada guerra de Independência, conhecida como a ‘Nakba’ (catástrofe, em português), capazes de acarretarem em grandes levas de refugiados, impedidos de retornarem as suas casas até os dias de hoje. E, os demais que permaneceram em seus territórios, passaram a conviver sob uma realidade de completa segregação. Isso ocorre porque os palestinos que vivem nos territórios ocupados tem o direito de locomoção extremamente limitado, sendo submetidos diariamente aos chamados ‘checks in points’ (ou “barreiras de segurança”) a fim de cruzarem algumas fronteiras municipais. A complexidade da situação é capaz de impedir que cidadãos que residem na Cisjordânia sejam, do mesmo modo, proibidos de visitarem a Faixa de Gaza e vice-versa.

Todas as restrições relacionadas ao direito de locomoção de uma maneira geral, a qual abrange por sua vez, os direitos à visita, ao retorno dos refugiados da diáspora e de locomoção interna dentro dos territórios palestinos, tornam-se ainda mais urgentes, quando comparados ao tratamento dispensado à comunidade judaica da diáspora. Nesse caso, a chamada lei do Retorno, tende a beneficiar com direito à trabalho e moradia em Israel quaisquer indivíduo de origem judaica, incluindo aqueles que nunca estiveram naquela região. Tudo isso em detrimento de uma vasta comunidade palestina nascida no território compreendido pela Palestina histórica.

Ainda com relação ao tratamento absolutamente desigual, Amira Hass não olvidou em mencionar o que seria a violação considerada mais grave e desigual, a questão da água. O seu testemunho revelou que os palestinos que vivem nos arredores dos luxuosos assentamentos judaicos, localizados na Cisjordânia, são obrigados a adaptarem suas rotinas com a escassez permanente no abastecimento de água para as suas necessidades básicas e, ao mesmo tempo, conviverem com a ostentação de piscinas bastante abundantes e exclusivas para os moradores estrangeiros.

Viver do lado da ocupação, de acordo com a jornalista é acima de tudo, sobreviver com uma sensação de ameaça permanente. Isso ocorre porque não existe previsão para a cessação da ocupação, o que impede por sua vez que as famílias palestinas possam planejar seus futuros e que os territórios sob jurisdição israelense, tenham um desenvolvimento pleno. E, muito ironicamente toda a ocupação é mantido por razões de segurança, por parte de um Estado que detém um grande e treinado exército e um enorme aparato tecnológico. Toda a contradição presente na atual conjuntura israelense, segundo Hass tem grande probabilidade em provocar novas ondas de violência nos mesmo moldes de uma terceira Intifada.

Antes de finalizar a sua apresentação e a fim de apontar possíveis soluções para o conflito entre Israel e a Palestina, foi durante o debate com o público que Amira Hass defendeu a proposta pela solução de dois Estados, não com sendo um projeto ideal, mas como uma alternativa possível para amenizar o atual estado de hostilidade entre ambos os lados do conflito. Ainda, enfatizou acerca do compromisso da comunidade judaica da diáspora para a viabilização da coexistência na região, para ela isso será possível a partir do momento em que houver uma recusa ao apoio ao atual governo do Estado de Israel e quando grande parte da comunidade judaica passarem a prestar mais atenção aos prejuízos causados historicamente ao povo palestino.
(Carta Maior)

Genocídio

O estado de guerra orwelliano nos EUA: Carnificina e duplifalar da imprensa-empresa

17/4/2013, Norman Solomon, Commondreams
“The Orwellian Warfare State of Carnage and Doublethink”
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Norman Solomon
Depois das bombas que mataram e mutilaram tão horrivelmente na Maratona de Boston, políticos e jornalistas da imprensa-empresa dos EUA [sempre caninamente repetidos por políticos e jornalistas da imprensa-empresa no Brasi] não se cansam de repetir discursos de compaixão – e incansáveis “duplipensar e duplifalar”, que George Orwell definiu como:

...empenho em apagar e fazer esquecer todos os fatos inconvenientes.

Em sincronia com veículos comerciais em todo o país, o New York Times estampou manchete de apavorar, na 1ª página da edição da 4ª-feira:

Bombas de Boston Carregadas para Estraçalhar, dizem autoridades.

A matéria falava de uma panela de pressão cheia de pregos e pedaços de metal;

...montada para disparar fragmentos pontudos de metal, contra todos que estivessem no campo de explosão.

Explosão da bomba caseira próxima da chegada da maratona de Boston
Muito menos improvisadas e pesando quase 500 kg, as bombas CBU-87/B de fragmentação estavam classificadas sob a categoria de “munição de efeitos combinados”, quando foram disparadas, há 14 anos, por um bombardeiro que levava o nome de “Tio Sam”.

A imprensa-empresa nos EUA praticamente nem noticiou o “evento”.

Bomba de fragmentação (ing. cluster bomb) aberta e as "bolinhas" (ing. bomblets)
Numa 6ª-feira, ao meio-dia, forças da OTAN lideradas pelos EUA lançaram bombas de fragmentação sobre a cidade de Nis, na área vizinha de um mercado de legumes e frutas.

As bombas explodiram perto de um complexo hospitalar e de um mercado, causando mortes e cobrindo de estilhaços as ruas da terceira maior cidade da Serbia – leu-se em despacho do San Francisco Chronicle, dia 8/5/1999.

E:

Numa das ruas que leva ao mercado, viam-se corpos estilhaçados, entre cenouras e vegetais, em poças de sangue. Um dos cadáveres coberto por um lençol, de uma mulher, ainda tinha na mão a cesta de compras cheia de cenouras.

Destacando que bombas de fragmentação “explodem no ar e espalham pregos e fragmentos de metal sobre vasta área”, o correspondente da BBC, John Simpson, escreveu no Sunday Telegraph:

Usadas contra alvos humanos, as bombas de fragmentação estão entre as armas mais selvagens do moderno arsenal bélico.

Nos EUA, “armamento selvagem” não significa armamento proibido. De fato, para o então comandante-em-chefe, Bill Clinton e seus cérebros militares belicistas,  assessores em Washington, “selvagem” é um dos atributos positivos das bombas de fragmentação. Cada uma delas dispara cerca de 60 mil fragmentos afiados de metal contra o que o fabricante das bombas descreve como “alvos moles”.

Funcionamento das Bombas de Fragmentação e suas "bomblets" (ing.)
Um raro repórter diligente, Paul Watson do Los Angeles Times noticiou, de Pristina, Yugoslavia:

Em cinco semanas de ataques aéreos, dizem testemunhas locais, os aviões da OTAN têm disparado bombas de fragmentação, que lançam bombas menores, de explosão retardada, sobre vastas áreas. No jargão militar, essa munição menor é chamada bomblets  [ap. “bombinhas”]. O Dr. Rade Grbic, cirurgião e diretor do principal hospital de Pristina, vê, diariamente, provas de que a expressão “bombinha” apenas mascara o trágico impacto desse tipo de munição. Grbic, que salvou a vida de dois meninos albaneses feridos quando outras crianças brincavam com uma bomba de fragmentação não detonada encontrada no sábado, disse que nunca, em toda a vida, fez tantas amputações.

A matéria do LA Times citava o Dr. Grbic:

Sou ortopedista há 15 anos, trabalhando em região de conflito onde sempre se veem ferimentos terríveis, mas nunca antes vimos, nem eu nem meus colegas, o que vimos depois que as bombas de fragmentação começaram a ser usadas. São ferimentos extensos e profundos. Os membros estão de tal modo destroçados, que a única via possível é a amputação. É terrível, terrível.

O relato prossegue:

Só o hospital de Pristina já recebeu entre 300 e 400 feridos por bombas de fragmentação desde que começou a guerra aérea da OTAN, dia 24 de março. Metade das vítimas são civis. Esse número não inclui os mortos pelas bombas de fragmentação, nem os feridos em outras regiões da Iugoslávia. O número total de vítimas é muito superior. A maioria das vítimas são atingidas pelas bombas menores, programadas para explodir algum tempo depois de lançadas, quase sempre já no solo.

Adiante, já durante a invasão e nos primeiros tempos da ocupação, militares dos EUA lançaram bombas de fragmentação no Afeganistão. E também usaram munição de fragmentação no Iraque.

Hoje, o Departamento de Estado ainda se opõe à proibição desse tipo de arma, como se lê na página oficial: 
As bombas de fragmentação são comprovadamente úteis do ponto de vista do interesse militar. A eliminação delas do arsenal dos EUA poria em risco a vida de nossos soldados e dos soldados de nossos parceiros de coalizão.

E o Departamento de Estado prossegue:

Além disso, as bombas de fragmentação frequentemente resultam em muito menos dano colateral que bombas unitárias, como o que seria causado por bombas maiores ou fogo mais amplo de artilharia, se usados para a mesma missão.

Vai-se ver... Os que encheram uma panela de pressão com pregos e pedaços pontiagudos de metal e a explodiram em Boston raciocinaram exatamente como, e tão pervertidamente quanto, o Departamento de Estado!

Mas que ninguém espere esse tipo de leitura dos jornais comerciais diários ou das redes comerciais de televisão – nem, sequer, de redes “públicas” do tipo da National Public Radio (NPR) em programas como “Morning Edition” e “All Things Considered”, ou do Public Broadcasting System (PBS) e seu “NewsHour”.

Quando o assunto é matança e mutilação de seres humanos, esses veículos imediatamente assumem o pressuposto “alto padrão moral” preventivo da Casa Branca.

Em seu romance 1984, Orwell escreveu sobre o reflexo condicionado de:

...paralisar, encurtar, como que por instinto, parar sempre um passo antes de qualquer pensamento ousado, considerado perigoso (...), para não ser perturbado, entediado ou repelido por qualquer ideia ou linha de pensamento que leve a alguma heresia.

Esse duplipensar e duplifalar – incansavelmente reforçado pelo jornalismo comercial de massa – preserva-se ainda dentro de uma zona proibida à crítica, na qual nenhuma ironia radical é admitida, e que admite, no máximo alguma autossátira, pressuposta menos danosa à coerência intelectual e moral.

Todo o noticiário distribuído por veículos das empresas de jornalismo comercial sobre as crianças mortas e feridas em Boston, cada relato da horrenda mutilação de braços e pernas, faz-me lembrar de Guljumma, uma menina que tinha sete anos quando a encontrei em um campo de refugiados afegãos, num dia do verão de 2009.

Guljumma
Naquela época, escrevi que: 
Guljumma contou o que aconteceu uma manhã, ano passado, quando ela dormia em casa, no vale Helmand, no sul do Afeganistão. As bombas explodiram às 5h da manhã. Morreram parentes seus. Ela perdeu um braço.

Os EUA não ofereciam qualquer tipo de ajuda humanitária às várias centenas de família que viviam, em condições miseráveis, no campo de refugiados nos arredores de Cabul. O único contato significativo que jamais houve entre Guljumma, o pai dela e o governo dos EUA foi quando a casa deles foi bombardeada.

A guerra favorece todo tipo de abstrações jornalísticas, mas Guljumma não é abstrata. É tão concreta quanto as crianças cujas vidas foram arruinadas para sempre, pelas bombas na Maratona de Boston.

Problema é que os mesmos veículos de jornalismo comercial que não se cansam de falar da preciosidade das crianças feridas em Boston mantêm-se absolutamente indiferentes às crianças como Guljumma.

11 crianças assassinadas pelo terrorismo dos EUA-OTAN no Afeganistão em 7/4/2013
Pensei também nela quando vi o noticiário e uma foto horrenda, dia 7/4/2013, de um dia em que 11 crianças, no leste do Afeganistão, tiveram ainda menos sorte que Guljumma. Aquelas crianças morreram num ataque aéreo da OTAN-EUA. 
Para os jornalistas empregados do jornalismo comercial norte-americano, ali nem havia notícia; para os militares norte-americanos, não foi grande coisa.

Os cachorrinhos de circo dançam quando o domador estala o chicote – escreveu Orwell – mas os cachorrinhos realmente bem treinados são os que dão seus saltinhos, quando nem se ouve o chicote.

(Redecastor)

Padre Renzo


Padre Renzo e suas 'memórias do cárcere'
Entre os anos de 1975 e 1980, padre Renzo visitou quatorze presídios prestando solidariedade aos detidos por razões políticas. Estas lembranças nos chegam agora, pois no último dia 28 de março ele faleceu, aos 87 anos. Sua presença, contudo, permanece na memória de seu típico sorriso e solidariedade tão amigáveis.

Edson Teles*

Enviar ! Imprimir !

Era um domingo de inverno paulistano, garoa fina, ossos congelados. Logo pela manhã, às 8 horas, o carro passa para levá-lo à sua primeira visita ao Presidio Político Romão Gomes. Padre Renzo começava a ficar conhecido junto aos presos políticos do Brasil. Entre os anos de 1975 e 1980, visitou quatorze presídios prestando solidariedade aos detidos por razões políticas. Estas lembranças nos chegam agora, pois no último dia 28 de março ele faleceu, aos 87 anos. Sua presença, contudo, permanece na memória de seu típico sorriso e solidariedade tão amigáveis.

Naquele dia 17 de julho de 1976, Renzo registrou em seu diário, sob o título “Um dia no cárcere”, um dos momentos mais emocionantes de sua vida, segundo suas próprias palavras: “dias maravilhosos e emocionantes vivi muitos em minha vida, mas talvez nenhum deles o vivi tão intensamente como aquele sábado em que me encontrei com os presos políticos do Presídio Militar de São Paulo” (Nota 1). Entre os presos encontrava-se meu pai, César Teles, condenado a alguns anos de prisão por participar de organização clandestina de oposição ao regime (à época militava no Partido Comunista do Brasil) e por ajudar a produzir e divulgar jornal de denúncia e de ação política de protesto.

César havia sido preso no dia 28 de dezembro de 1972 e passou cerca de um mês no DOI-Codi de São Paulo, órgão ligado ao II Exército, nos quais sofreu torturas e ameaças de morte, juntamente com Amelinha, minha mãe, e Criméia, minha tia, grávida de oito meses. Eu, com quatro anos, e minha irmã Janaína, com cinco, testemunhamos os resultados da tentativa de destruição dos corpos de nossos familiares (Nota 2). Nos dias que se seguiram à prisão eles testemunharam o assassinato de Carlos Nicolau Danielli. Somente após este período de repressão e violências comandadas pelo então major Carlos Alberto Brilhante Ustra (Nota 3), César e família tiveram suas prisões oficializadas, o que gerou a abertura de processos criminais (exceto a prisão de minha tia Criméia, a qual permaneceu sem processo formal e foi encaminhada para uma dependência do Exército em Brasília, onde continuou a ser torturada e onde nasceu, sob péssimas condições, seu filho, Joca).

Na primeira audiência na Justiça Militar, no dia 11 de julho de 1973, três anos antes da visita do padre Renzo ao presídio e poucos meses após passar pelo Doi-Codi, César declarou, com coragem, os fatos por ele vividos: “sob protestos quanto à natureza daquele sequestro fomos levados para local que ignorávamos e que depois foi informado tratar-se da OBAN (Operação Bandeirantes, primeiro nome do Doi-Codi), órgão subordinado ao II Exército. Já ao entrar no pátio Carlos Danielli foi espancado a vista de várias pessoas que lá estavam. Quando eu também, no mesmo local, comecei a ser agredido, minha esposa protestou informando minha condição de diabético e tuberculoso, atitude que foi repelida com um soco em seu rosto por um senhor alto que mais tarde soube tratar-se do comandante da Oban (o hoje coronel Ustra)” (Nota 4). Esta foi sua entrada na ordem jurídico militar da ditadura, caminho que o levaria mais tarde ao Presídio Romão Gomes.

O acesso ao presídio era precedido de uma ampla via toda contornada por uma bela mata, com macacos e outros bichos. Eu me preparava todo para ir visitar meu pai, pois era um dia muito esperado durante a semana. Parte do ritual da visita era fantasiar que eu era uma espécie de agente secreto cuja missão seria passar pelo sistema repressivo e levar ou trazer mensagens dos presos. Para entrar no presídio, mesmo nós crianças passávamos por uma minuciosa revista. Ao perguntar para minha mãe a serventia daquilo recebi certa explicação sobre o medo dos militares de que entrássemos com coisas escondidas. Isto mexeu com minha imaginação e pedi para minha tia que fizesse uma pequena abertura no forro de minha jaqueta. Nele colocava algum pequeno objeto, com o qual deveria passar pela revista sem ser descoberto e, de dentro do presidio, também sairia com algo. Poderia ser uma moeda, uma pedrinha, qualquer coisa que me permitisse burlar a revista. Certa vez fui “pego”. Havia colocado um potinho de tinta guache e, devido ao volume, a policial que me revistou localizou minha “ação revolucionária”. Contudo, ela não conseguia retirar o objeto porque não tinha acesso à abertura falsa. Como eu simplesmente não respondia às suas perguntas ela teve, então, que pedir autorização a um oficial para liberar minha entrada. Realizei-me. Entrei com o “perigoso” potinho de guache.

Neste dia em que Renzo conheceu os presos do “Romão Gomes”, os procedimentos foram os mesmos: “o sargento pede-me somente a carteira de identidade e pergunta-me quem desejo visitar. Sou revistado. Fazem-me tirar os sapatos para averiguar se por acaso levo armas”. Tal como nós, sua santidade também era tida como motivo de desconfiança para os policiais. É emocionante conhecer quem foi padre Renzo por suas próprias palavras, sempre generosas: “a coisa que mais me impressionou neste contato com os presos políticos, também nos que foram mais horrivelmente torturados, é a falta absoluta de ódio, de ressentimento, de desespero, de derrota”.

Lembro-me de como os presos eram orgulhosos de suas ações, mesmo com toda a incerteza sobre suas consequências e a necessidade de agir politicamente, inclusive de dentro da cadeia. Nós, crianças, podíamos circular entre as varias rodas de discussões que se formavam, pois os adultos achavam que não entendíamos nada. E era verdade. Ouvíamos sobre as diferenças entre as organizações, as articulações para os contatos fora da prisão, notícias da nascente campanha pela anistia. Renzo ouvia a todos e, me parecia, exercia a função do contato com o mundo exterior. Sua presença mostrava o tamanho da sua abertura. Ele não estava ali para buscar pedidos de perdão, confissões, muito menos distribuir castigos. “Inicialmente estou um pouco embaraçado. Não sei como iniciar o diálogo, fazendo as perguntas sinto um certo pudor. Desejaria conhecer muitas coisas, conhecer a historia de cada um, até os mínimos particulares, mas tenho medo de abrir feridas cicatrizadas… São eles mesmos, no entanto, que com muita delicadeza e bondade vem ao encontro do meu embaraço. Posso agora fazer qualquer pergunta. Toda resposta é sempre serena, clara, corajosa”. Sua presença ampliava o mundo limitado pelos altos muros cinzentos que cercavam o pátio central.

Renzo era uma pessoa sorridente, emotiva e carinhosa, sendo atencioso com as crianças. Brincava de dar um tapinha em nosso rosto e sempre corríamos quando ele chegava, rindo e nos divertindo, como se fosse um jogo de pega pega. Justamente em sua primeira visita não pudemos acompanhá-lo; naquela semana havia sido registrado um caso de tuberculose entre os presos, inviabilizando a visita das crianças. No frio dia de julho de 1976, em meio às aconchegantes conversas com os presos e ainda impressionado, Renzo recebe um presente de César. “A esta altura César, com um gesto delicadíssimo que me fez chegar lágrimas nos olhos, me dá um presente oferecido quase com timidez, é o original da famosa poesia de sua filha poetisa: ‘dói gostar dos outros’. É verdadeiramente o original, escrito a lápis, com todos os erros de ortografia próprios de uma criança de oito anos. O pai renuncia àquela preciosidade inestimável para oferecê-la a mim, padre maluco, como sinal de amizade e gratidão. Este milagre de poesia foi um presente de Janaína ao pai no cárcere, e o pai oferece-a a mim. É o tesouro mais precioso que levei comigo dos cárceres”.

Dói gostar dos outros
Oi, vocês todos.
Boa tarde para todos.
E um viva para todos.
Uns versos vou escrever.
Vou começar... atenção.
Preste atenção.
Dói o peito chorar.
Dói os seus olhos chorarem.
Dói nós viver.
Dói ver os outros chorarem.
Dói a natureza chorar.
Dói gostar dos outros.
Dói cair uma pedra no seu pé.
Dói falar tchau, amigos. (Nota 5)_

Notas
1) Cf. Emiliano José. “As asas invisíveis do padre Renzo”. São Paulo: Casa Amarela, 2002.
2) Depoimento sobre esta história disponível em: http://www.ufrgs.br/ufrgs/noticias/ufrgs-lanca-livro-de-depoimentos-sobre-ditaduras-do-cone-sul, acessado em 15 de março de 2013.
3) Este evento gerou o processo da família Teles contra o coronel Ustra, ganho em sentença final datada de 2013. Leia mais em: http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=5732.
4) A ficha referente ao seu processo encontra-se disponivel em http://www.arquivoestado.sp.gov.br/memoriapolitica, acessado em 17 de abril de 2013.
5) Autoria de Janaína de Almeida Teles, em 1976, aos 8 anos de idade.

* Professor de filosofia política na Universidade Federal de Sao Paulo (Unifesp). Organizou, junto com Cecilia MacDowell e Janina Teles, o livro ‘Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil (Hucitec, 2009) e, com Vladimir Safatle, ‘O que resta da ditadura?’ (Boitempo, 2010).

(Carta Maior)

terça-feira, 23 de abril de 2013

Palestinos

Livros para a guerra e para a paz

por Pierre Klochendler, da IPS

Aos jovens palestinos da Cidade Velha de Jerusalém é ensinada uma versão dos fatos históricos diferente da ensinada aos israelenses. Foto: Pierre Klochendler/IPS

Jerusalém, Israel, 16/4/2013 – No Orfanato Islâmico Dar el-Eitam, uma escola secundária apoiada por um “waqf” (fundo religioso muçulmano) e localizado na amuralhada Cidade Velha de Jerusalém, estudantes palestinos do décimo-segundo grau preparam seu exame de história. Na parede há dois retratos de “mártires” mortos durante a Segunda Intifada (2000-2005).

Por outro lado, em Tel Aviv, alunos israelenses do sexto grau da aldeia comunitária de Eshkol, na fronteira com Gaza, percorrem o Hall da Independência, um santuário nacional onde, no dia 14 de maio de 1948, o primeiro-ministro David Ben-Gurión leu a declaração de nascimento do Estado de Israel.

“A Organização das Nações Unidas (ONU) votou o Plano de Divisão (da antiga Palestina), mas como os árabes não o aceitaram, não se concretizou e, no dia seguinte, estourou a Guerra da Independência”, diz a guia israelense Lili Ben-Yehuda às crianças.

Na escola islâmica de Jerusalém, o professor de história Iyad el-Malki relata aos estudantes: “Os judeus queriam dois Estados, o palestino e o israelense. por acaso não tomaram a Cisjordânia 20 anos depois, em 1967, e se assentaram em nossas terras?”, pergunta de maneira retórica.

No dia 29 de novembro de 1947, a Assembleia Geral da ONU votou a favor de acabar com o mandato britânico na Palestina, e pela divisão do território em dois Estados independentes: um judeu e outro árabe. Para os israelenses, a votação habilitou a criação de seu Estado, seis meses depois. Para os palestinos significou a “nakba”, ou “catástrofe”, porque passaram de ser maioria em seu território para uma minoria no que se converteria em Israel.

Observando como são dadas as duas aulas – uma para israelenses, outra para palestinos – em um momento elementar de sua história comum, demonstra-se que “os fatos históricos, embora não sejam falsos ou inventados, são apresentados seletivamente para reforçar a narrativa nacional de cada comunidade”, diz um estudo sobre os livros de texto dos dois povos.

Intitulada Vítimas de Nossas Próprias Narrativas? Retrato do “Outro” nos Livros Escolares Israelenses e Palestinos, a pesquisa conclui que “as duas partes estão fechadas em suas próprias narrativas nacionais herdadas do conflito”. E “cada parte classifica negativamente a outra”, disse à IPS Sami Adwan, professor-adjunto de educação na Universidade de Belém, e coautor do estudo. “E nenhuma das duas inclui informação sobre cultura, religião e vida cotidiana da outra”, acrescentou.

Nos acordos de Oslo (1993), as duas partes concordaram em “reconhecer seus direitos legítimos e políticos mútuos” e a negociar uma solução de dois Estados para seu conflito. Mas, quase 20 anos depois, o reconhecimento recíproco não está no mapa, literalmente, e muito menos uma solução de dois Estados. E continuará não constando do mapa enquanto os livros de texto, que “têm um papel crucial na educação das crianças e em forjar sua ideologia como adultos”, segundo Adwan, não reconhecerem a existência do “outro”.

Ao analisar mais de três mil textos de 94 livros palestinos e 74 israelenses, em um período de três anos (2009-2012), o estudo identificou mapas nos quais há claras evidências de tentativas de cada parte de apagar as fronteiras e, portanto, as reclamações históricas. “Nos dois lados, as crianças crescem com a representação de que a área que se estende entre o Rio Jordão e o Mar Mediterrâneo é realmente sua pátria”, disse à IPS Daniel Bar-Tal, professor de pesquisa em desenvolvimento infantil e educação na Universidade de Tel Aviv e coautor do informe.

E, enquanto os livros escolares “descrevem de modo consistente a outra comunidade como agindo para destruir ou dominar sua própria comunidade, mostram suas próprias ações como pacíficas e atuando em autodefesa”, afirma o estudo. Os sistemas educacionais dos dois lados são diferentes. O israelense, que existe desde 1948, é heterogêneo, e está integrado por escolas estatais seculares e religiosas, além de escolas ultraortodoxas independentes. Todas usam diferentes livros de texto.

Criado no começo da década de 2000, o sistema palestino é mais homogêneo, e todos seus estudantes usam os mesmo livros. Para Adwan, esses textos refletem a realidade que experimentam os dois povos. “Os israelenses veem os palestinos esperando a oportunidade para atacá-los. Ainda sob ocupação, os palestinos veem que estão tirando sua terra”, afirmou.

O estudo também comparou os ensinos referentes à glorificação do martírio e do autossacrifício. As crianças palestinas que cursam a sexta série podem ler em um livro de idioma: “Morte antes da submissão, avante!”, o que críticos israelenses consideram uma exaltação de passados atentados suicidas. Por outro lado, os israelenses do segundo grau aprendem a história de Joseph Trumpeldor, um pioneiro do sionismo cujas últimas palavras ao defender um assentamento judeu dos atacantes árabes foram: “É bom morrer pelo nosso país”.

Durante o processo que levou aos acordos de Oslo, no qual israelenses e palestinos foram se aproximando cautelosamente, Bar-Tal cuidou de preparar os livros de textos estatais para uma nova era de paz. Para ele, “o propósito das narrativas nacionais é, primeiro, mobilizar as pessoas, prepará-las para lutar pela causa. Mas também podem ser usadas para preparar as pessoas para a paz”.

Na década de 1990, Israel começou a aceitar o assunto dos refugiados palestinos. Pela primeira vez, os livros escolares reconheceram que os palestinos não haviam escolhido fugir durante a Guerra da Independência, mas que, em muitos casos, foram obrigados a fazer isso.

Em 2007, Yuli Tamir, uma liberal ministra da Educação, introduziu o termo “nakba”, que se refere ao êxodo forçado dos palestinos, nos livros de texto israelenses em idioma árabe, destinados aos alunos israelenses de origem palestina. Dois anos depois, essa palavra foi eliminada. O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu justificou a decisão dizendo que o termo era “propaganda contra Israel”.

Neste contexto, o ensino parece ter profundas implicações para a construção da paz. Ao que parece, os livros de texto criados por adultos ainda não estão comprometidos com a tarefa de preparar as crianças para uma ética de amizade. Envolverde/IPS
(IPS)

Poemas II

" Sou o poeta dos torturados,
Dos desaparecidos,
Dos atirados ao mar
[ Dos " suicidados"]
Sou os olhos atentos
Sobre o crime.
Companheira, virão perguntar por mim. Recorda o primeiro poema
Que lhe deixei entre os dedos
E dizes a eles
Como quem acende fogueiras
Num país ainda em sombras:
MEU OFÍCIO SOBRE A TERRA
É RESSUCITAR OS MORTOS
E APONTAR A CARA DOS ASSASSINOS.
Porque a noite não anoitece sozinha.
Sobreviveremos. "
( Pedro Tierra)
('Chupado' de 'juntossomosfortes')

Neutralidade

Nenhuma neutralidade será perdoada

Por Ana Helena Tavares, editora do Quem tem medo da democracia?

Toda escolha tem seu preço.
Todo preço tem que ser pago.
A moeda é só o começo.
O suor é que faz estrago.

De que adianta ter o metal?
Aquele mais vil da Terra?
Se não há no peito um ideal?
Se nenhum grito em ti berra?

Nada de esquerdas nem direitas?
Nem oposição nem situação?
Tu te olhas no espelho e te aceitas?
Ou não te aguentas na solidão?

Nos muros não há plateia.
Elas só se posicionam nos lados.
Não há povos, nem na Galiléia.
Que gostem de ser enganados.

Só há saída na ousadia
A maior ousadia é escolher
Seu pedaço, sua fatia
Ou queres tudo comer?

Colocas muitos peixes numa rede?
Sem por cores e sabores optar?
Vais boiar a deriva e com sede
De algo que possa amar.

Insustentáveis são suas hastes.
Falas, falas e a poucos atrais.
Aqueles com quem lutastes
São os mesmos que agora trais.

Ah, não queres ousar ser quem és?
Vais ser mais um na multidão.
Se não escolheres dedos ou anéis
A história não perdoará sua indecisão.
(QTMD0

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Mulher

 Me agrada ser mujer
Tatiana Lobo (Colaboración para ARGENPRESS CULTUAL)

Me agrada que me digan que soy histérica porque entonces puedo
Lanzar los platos a la cabeza de quien intenta hacerme daño.
Me gusta que me llamen bruja porque puedo quemar el lecho
Donde me abusan.
Me gusta que me llamen puta,
Porque entonces puedo hacer el amor con quien me dé la gana.
Me gusta que me digan débil,
Porque me recuerdan que la unión hace la fuerza.
Me gusta que me digan chismosa,
Porque nada de lo humano me será ajeno.
Pero lo que más agradezco, lo que más me agrada, lo que más
Me gusta y lo que me hace más feliz es que me digan loca,
Porque entonces ninguna libertad me será negada.
Me agrada saber que mi cerebro es más pequeño que el cerebro del hombre,
Porque entonces mi cerebro cabe en todas partes.
Me agrada que me digan que carezco de lógica,
Porque entonces puedo crear una lógica menos fría y más vital.
Me agrada que me digan que soy vanidosa, porque puedo mirarme al espejo
Sin sentirme culpable.
Me agrada que me digan que soy emocional
Porque puedo llorar y reír a gusto.
Una y mil veces me quemó la Inquisición
Y aprendí a nacer de las cenizas.
Me encerraron en un harén
Y encerrada no dejé de reír.
Me pusieron un cinturón de castidad
Y adquirí las artes de un cerrajero.
Cargué fardos de leña
Y me hice fuerte.
Me pusieron velos en la cara
Y aprendí a mirar sin ser vista.
Me despertaron los niños a medianoche
Y aprendí a mantenerme en vigilia.
No me enviaron a la Universidad
Y aprendí a pensar por mi cuenta.
Transporté cántaros de agua
Y supe mantener el equilibrio.
Me extirparon el clítoris
Y aprendí a gozar con todo el cuerpo.
Pasé días bordando y tejiendo
Y mis manos aprendieron a ser más exactas que las de un cirujano.
Segué trigo y coseché maíz, pero me quitaron la comida
Y con hambre aprendí a vivir.
Me sacrificaron a los dioses y a los hombres
Y volví a vivir.
Me golpearon y perdí los dientes
Y volví a vivir.
Me asesinaron y me ultrajaron
Y volví a vivir.
Me quitaron a mis hijos y en el llanto
Volví a la vida.
Agradezco ser un animal porque los hombres han puesto en peligro
La supervivencia del planeta.
Agradezco ser hembra, porque el hombre no es el centro del universo,
Sino apenas un eslabón más en la cadena de la vida.
Agradezco que me digan que soy irracional, porque la razón
Ha conducido a los peores actos de barbarie.
Agradezco no haber inventado la tecnología,
Porque la tecnología ha envenenado el agua y el ozono.
Agradezco que me hayan colocado más cerca de la naturaleza,
Porque nunca estaré sola.
Agradezco que me hayan confinado al hogar y a la familia,
Porque puedo hacer de toda la tierra, mi hogar y mi familia.
Estoy feliz de que me llamen ama de casa
Porque puedo apoderarme de la mía.
Estoy feliz de no ser competitiva,
Porque entonces seré solidaria.
Estoy feliz de ser el reposo del guerrero,
Porque puedo cortarle el pelo mientras duerme.
Estoy feliz de que me hayan excluido del campo de batalla,
Porque la muerte no me es indiferente.
Estoy feliz de haber sido excluida de este poder patriarcal,
Porque lejos de éste, me alejo de la ambición y la codicia.
Estoy feliz de que me hayan excluido del arte y la ciencia,
Porque los puedo inventar de nuevo.
Con tantas fortalezas acumuladas, con tantas habilidades y destrezas aprendidas,
Mujer, si lo intentas, puedes volver el mundo al revés.




Haga click aquí para recibir gratis Argenpress en su correo electrónico.
Share on facebook Share on yahoomail Share on orkut Share on twitter More Sharing Services 15

Menoridade

 Criança é tão criminosa quanto um adulto?

    

    Recife (PE) - Chega a ser irônico. Neste 18 de abril, temos o Dia Nacional do Livro Infantil, uma homenagem ao dia de nascimento de Monteiro Lobato. Mas ontem veio a público uma pesquisa do Datafolha sobre a redução da maioridade penal. Por que fenômenos tão diferentes se avizinham? Um calendário não se explica, pois na véspera do Dia do Livro Infantil soubemos que 93% dos moradores da cidade de São Paulo querem a prisão para  menores a partir de 16 anos. Noventa e três por cento são quase uma unanimidade.

    O que é isso? Por experiência, acredito que a pesquisa espelha um dado real. Em um programa de direitos humanos no rádio, o Violência Zero, travamos com travo esse conhecimento. No estúdio da Rádio Tamandaré, no fim dos anos 80, sentíamos a disputa de ideias na sociedade do Recife entre punir sem medida e o direito à justiça. Mas não com esses números. Ainda que sem método científico, pelos telefonemas dos ouvintes, notávamos que a divisão entre os mais bárbaros e civilizados era quase meio a meio. O que houve agora para esse assalto de vingança? Segundo o Datafolha, foi a maior aprovação à proposta de redução penal. Em 2003 e 2006, o apoio foi de 83% a 88%.

    É claro que a última pesquisa espelha um instante de abalo emocional  na população.  Ela veio depois do assassinato do universitário Victor Hugo Deppman. O suspeito pelo crime é um jovem que estava a três dias de fazer 18 anos. Isso foi repetido à náusea.   Naquele tempo do Violência Zero no rádio, não sofríamos o massacre de imagens repetidas na televisão. Melhor dizendo, sofríamos, mas a doutrinação não atingia os noticiários mais “educados”, como o Jornal Nacional, Jornal da Band e outros. Antes, as insinuações do “só vai matando” ficavam restritas aos guetos dos programas policiais. No entanto, consideremos.   

    Ainda que sinta a batalha perdida diante do clamor, é um dever de consciência não seguir a onda do momento. Está certo, é justo, criminosos têm que ser punidos. Se possível, com algo exemplar, que iniba e reprima o crime. Mas para a maioridade penal que deveria cair, levanto algumas perguntas: 

    Qual seria o limite da redução? 12 anos, 11 anos, 10,9, 8, 7 anos? Bebês? Qual o limite? Sintam que a cada redução devem ocorrer novos crimes que estarão no limite da punibilidade. Mais: com o necessário aumento da população carcerária, que já é um inferno e um fracasso do sistema, não estaríamos dando ótimas escolas do crime aos meninos?

    Já imagino que os reformadores do Código Penal podem argumentar que teríamos alas de criminosos de 16, outra de 15, mais outra de 14, até atingir um berçário... mas tudo dentro das mais perfeitas condições de higiene e cura da perversão. Diante do crime que ameaça e atinge a própria casa, já existe quem declare pérolas do gênero “sou de opinião que não deveria haver nenhuma idade mínima na lei”. Salve, daí partiremos fácil fácil para a pena de morte aplicada aos diabinhos mais precoces.

    Enquanto isso, não vemos, ou fingimos não ver a exclusão social e humana que cobre as cidades. Comemos, bebemos, vestimos, vamos aos shoppings  sem olhar para os lados. E depois nos surpreendemos o quanto o mundo pode ser cruel quando atinge a estabilidade – porque nos julgamos estáveis em chão sólido -, ou a estabilidade  sagrada – por tudo quanto mais é santo e elevado acima da animalidade dos outros, que não somos nós mesmos -  a estabilidade sagrada dos nossos lares – pois somos aqueles que temos casa, enquanto os outros, ah, eles dormem na rua, que casa podem ter?  Seria até uma questão de justiça, nós os humanos temos que destruir e tirar dos olhos a mancha da escória.

    Lembro que uma vez perguntei a idade a um menino que cheirava cola nas ruas do Recife. “Onze anos”, ele me respondeu. E eu, com minhas exatidões burras de classe média: “Vai fazer, ou já fez?”. Silêncio. Eu insisti, crente de que não havia sido entendido. “Você faz anos em que mês?”. Então ele me ensinou, antes de correr até a esquina:

    - Tio, eu não tenho aniversário.

    Todos não notamos que vem dessa exclusão o alimento e sangue para o horror. Enquanto fazemos de conta que nada temos a ver com isso, crescem os comentários com que termino a coluna, no Dia do Livro Infantil:  se os Direitos Humanos criarem caso, prendam ou os arranquem para fora do Brasil ! Temos que punir duramente quem mata, sequestra, seja quem for. Com a idade de treze anos sabem muito bem o que estão fazendo. Se não melhorarem com novas leis, pena de morte
Urariano mota
(Direto da Redação)

Pensamentando

Pepe Escobar: : “David-Bowiemania para enterrar o thatcherismo”

Pepe Escobar, Asia Times Online – The Roving eye
“How Bowiemania buries Thatcherism”
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Ela virá, ela partirá
Ela meterá crenças na tua cabeça
Mas ela não apostará em ti a vida dela
A vida jamais será o ponto de vista dela
David Bowie, Lady Grinning Soul [1]

Quando muda o tom da música
As paredes da cidade tremem
Platão, A República

Serviço religioso no funeral de Margaret Thatcher
LONDRES – “Há uma dança nova em folha, mas não sei o nome / que o pessoal das casas ruins dança e dança sem parar / É grande e cheia de tensão e medo / Eles lá dançam e dançam sem parar / Mas a gente aqui, não dança aquilo”. [2] Tensão e medo. Ah, sim, é a caaaaaaaaara da Europa 2013. E não há dúvidas de que o pessoal das casas ruins repete e repete aquela dança. Não há dúvidas. Ziggy [3] toca o passo Maggie [Margaret Tatcher].

Pepe Escobar
Esse “Olhar Errante” [4] aterrisou em Londres há alguns dias, a cidade mergulhada na histeria do thatcherismo. A rua Fleet Digital [5] está excitadíssima: o funeral da baronesa Thatcher será “transmitido para milhões”. A BBC – colhida em mais um escândalo, dessa vez por causa de visita “clandestina” de seus jornalistas à Coreia do Norte, acompanhando um grupo de alunos da London School of Economics, cuja segurança a emissora pôs em risco [6] – é a única que transmite o ‘evento’ sem comerciais e dá cobertura ininterrupta por televisão, essa relíquia do passado, televisão com câmeras em tripés. Não é páreo para os helicópteros de Rupert Murdoch, o grande arapongador de telefonemas. Nem para a cripto-glamurosa estenógrafa do Pentágono-Departamento de Estado, Christiane Amanpour, que transmite o ‘evento’ pela CNN, de New York.

A família real não está gostando nada, nada, nada desse negócio todo. Tudo, aí, é excessivo, exagerado, sem noção. O Big Ben e o Grande Sino de Westminster não tocarão. A última vez que aconteceu foi durante o funeral de Winston Churchill, em 1965. O funeral de hoje, ao contrário de boatos que circularam, será pago com dinheiro público, nada de privatização. E o primeiro-ministro David “das Arábias” Cameron não está arrancando do cadáver o que esperava arrancar: só 16% dos britânicos creem que ele seja herdeiro de Thatcher. Até Tony Blair, inventador da Guerra no Iraque, ganha de Cameron: teve reles 17% de preferências. Não há “Homem das Estrelas” à nossa espera no céu. Não quer saber de vir nos encontrar. Nem, que fosse, para abrir a cabeça da gente. [7]

“Todo o povo gordo-magro, e todo o povo baixo-alto, e todo o povo nin-guém, e todo o povo-al-guém”, [8] todos ansiando por se apertarem dentro da Catedral St. Paul. Só 50 lugares para repórteres, esse “Olhar Errante” decidiu assistir à coisa cá da zona vermelha, também conhecida como ruas-de-Londres-saturadas-de-policiais-e-de-televisões, as quais, depois de Boston, estão sob nuvem ainda mais densa de paranoia.

Por toda a cidade, “sob a lua, a séria luz da lua”, [9] paira uma rede orwelliana de censura, círculos concêntricos de silêncio na imprensa-empresa: propaganda trovejante. O antídoto, em preparação para o funeral: funeral-pantomima – e o que mais poderia ser?

“Mais um fim-de-semana/de luzes e caras noturnas/fast food, nostalgia que anda”. [10] Na Trafalgar Square, noite de sábado miserável. Mais de 3.000 pessoas de todos os cantos do Reino Unido. Ding Dong, A bruxa morreu – cantavam e celebravam. Como fizeram com dedicação os torcedores de futebol em Liverpool. [11]

Policiais aos milhares. A imprensa-empresa, em virtual blecaute. Georgie Sutcliffe, atriz e séria candidata a Rainha do Soho, bate à porta de um satélite e pergunta “Com quem você está?” Alguém gagueja “Sky”, como um Murdoch apanhado em ato de sabotagem. Afinal, a classe governante britânica tem de ser protegida, custe o que custar.

“Atenção, aí, roqueiros/logo-logo vocês ficam mais velhos”.  [12] E o que há por aí para um roqueiro mais velho fazer? Esse Olho Errante, ex-morador de Londres, ex-compositor, dá de cara com seu filho errante – nascido nos primeiros anos do Thatcherismo – e o destino tinha mesmo de ser o venerável [museu] Victoria and Albert, um dos mais espetaculares museus do mundo. Exposição sobre David Bowie. [13] Cuidado. Agora, é Ziggy contra Maggie. “Somos os transviados [14] e estamos chegando à cidade. Bip-bip”. [15]

“Seus circuitos caíram, há algum defeito” [16]

Margaret Thatcher permaneceu no poder de 4/5/1979 a 28/11/1990. A memória dos pubs londrinos conta que, depois de sair do Somerville College em Oxford, lá ia ela, meio perdidona, tipo T.S. Eliot-tédio (“medi a minha vida em colherinhas de café”) [17], com um super-gasto, lido e relido livro de Ayn Rand debaixo do braço... quando foi descoberta por um superstar de Chicago caçador de talentos, que atendia pelo nome de Milton Friedman. Ele apaixonou-se pelos tornozelos dela – e o resto é história (neoliberal), com uma nota de rodapé crucialmente importante: a estrada dela até o n. 10 de Downing Street foi pavimentada por milhões de libras, cortesia do empresário-maridão Denis (Tatcher).

Ela talvez não seja a senhorinha-de-bolsa-dos-seus-sonhos da mitologia britânica de rua. Ela levava impressa na carne toda a cosmologia profundo-essencial de atendente de lojinha – cortesia da lojinha de doces do Papai, em Grantham, Lincolnshire, praticamente ausente do mapa. Mas, acima de tudo, foi a dona-de-casa frugal, responsável por criar uma nação inteira de donas-de-casa. Ok. Pelo menos, criou algumas: eram 13,4 milhões ao final da década, contra os 10,2 milhões do início da década.

Se você tivesse cargo em algum conselho distrital você conseguia – pela primeira vez em todos os tempos – comprar casa própria com desconto imenso; e, no mesmo dia, você já era capturado e entrava diretamente no inferno da hipoteca. Foi esse boom imobiliário –boom de endividamento, na verdade – que, com a liberalização financeira, super turbinou o boom de consumo do início dos anos 2000s. E, então, tudo voou pelos ares. Os Sex Pistols, apenas quatro anos depois de Ziggy played guitar [18] já haviam profetizado, em 1976, o que viria: “Anarquia no Reino Unido”: “seu sonho de futuro é um plano de compras. Achei que era o Reino Unido/ou outra prefeitura qualquer de fim de linha”. [19]

E até antes disso, em 1974, os “Diamond Dogs” de Bowie reconvertidos de Spiders from Mars já haviam visto tudo: “No ano do abutre, estação da cadela/ gingando pela calçada, escapar para a trincheira/só mais uma canção futura, coisinha brega solitária (E virá sofrimento), tente e acorde amanhã” [20]. Conversa de pré-jogo de colapso social inevitável.

Durante os anos 1980s de Thatcher (estação da cadela da Rainha?), a renda média por domicílio aumentou 26%. Mas para os 10% mais pobres, só aumentou 4,6%. Os 10% mais ricos saíram-se muito melhor. A pobreza infantil quase duplicou – alcançou 3,3 milhões. Thatcher privatizou até o leite para as escolas infantis. O número de aposentados pobres explodiu para 4,1 milhões. O gasto público correspondia a 44,6% do PIB em 1979. Em 1990, já caíra para 39,1%. Hoje voltou a subir: está em 46,2%. “Oh, não se apóie em mim, cara,/porque você não tem dinheiro para comprar o ingresso”. [21]

O principal legado disso tudo é desindustrialização; incluindo as manufaturas, a indústria na Grã-Bretanha correspondia a 40% do PIB nacional em 1979; caiu para 34% em 1990. Agora está abaixo de minguados 22%. E pensar que esses tonéis e tonéis de neoliberalismo e conservadorismo social extremista, mais umas doses da vodka extra de “tradicionais valores morais”, terminaram por gerar massas de desempregados. Oh, coisinhas mais lindinhas/Não sabem que estão enlouquecendo seus papais&mamães?”  [22].

O major Maggie: controle em campo

David Bowie é byroniano, baudelairiano, oscar-wildeano, homem de teatro, amante de máscaras, mestre do artifício, supremo dandy. É tudo que possa ser entalhado – não cabe em palavras comuns ou programação comum – como se vê na exposição do museu V&A. Comparado a Thatcher, ele é, mesmo, uma Aranha Marciana. [23]

O corte – rápido, assimétrico, corte-salto na trama do tempo – é a essência da criatividade de Bowie, seu legado eterno. Como experimento pós-Dada, que William Burroughs resume brilhantemente, como “uma nova dimensão para dentro da escritura, que permite que o escrito converta imagens em variações cinemáticas”, [*] técnicas de corte perfeitamente adequadas, como o próprio Bowie admitiu, à sua consciência fragmentada (como milhões de consciências em todo o mundo).

Assim, lá estava eu no museu, a procura de alguma coisa em que Ziggy realmente tivesse passado a perna em Maggie. Lá está.

Tinha de ser o vídeo de “Boys Keep Swinging”, [24] gravado em Lodger (1979), o último álbum da Trilogia de Berlim, de Bowie e Eno, que foi lançada exatamente quando Maggie chegava ao poder. Aqui Bowie é Valquíria gelada, Lauren Bacall, Bette Davis, Katharine Hepburn, Marlene Dietrich e, afinal, A Rainha das Drags, a Cadela Rainha. Como a inimitável Camille Paglia escreveu no ensaio que se lê no catálogo da exposição, é Bowie penetrando “a alma masculina sem calor e a monstruosa gana de poder das grandes stars mulheres”. Ziggy encarnou Maggie – e ela nem sabe!

Há também Bowie como Pierrot – personagem da commedia dell’arte do século 17 – no sempre hipnótico vídeo de “Do pó ao pó” (dos funerais anglicanos clássicos). [25]

E lá está a “Lady Grinning Soul”: mistura de Circe, Calypso, Carmen, Judith (versão Klimt) e Lulu. Maggie pode não ter sido femme fatale. Mas, atracada com a sociedade, “ela fará de você um morto-vivo”. [26]

Não é para Jovens Americanos (consegui um quarto e acabei com você) [27] – nem para americanos mais velhos. Vastas porções dos EUA – onde a Dama de Ferro é cultuada como uma espécie de Estátua da Liberdade britânica, farol de “liberdade e democracia” – já foram, agora, tomadas por filhos de Thatcher que cruelmente aplicam a velha luta de classes contra o Estado, até o setor privado, as famílias.

O afável Barry, presidente dos EUA, também conhecido como O-O-bama com licença-lista para matar, cantou odes à Dama de Ferro, como se falasse de Dame Judi Dench ou de alguma franqueada de James Bond. O resto do mundo, como sempre, sabe mais e melhor que ele. Foi apoiadora entusiasmada do apartheid; chamou Nelson Mandela de “terrorista”; odiava “culturas estranhas”; [28] apoiou o Khmer Rouge no Camboja; e era amiga tão íntima do assassino serial chileno Augusto Pinochet, que o hospedava sempre que ele viajava arrastando com ele toda aquela mala pesadíssima. Por toda a América Latina, sua “Fama, qual seu nome?” [29] pode ser apenas estimada. [30] E a cereja do bolo azedo foi o filho, maluco por golpes militares em terras longínquas. [31]

Um mapa do caminho do thatcherismo (e seus efeitos colaterais) tem de incluir “Minha Adorável Lavanderia” (orig. My Beautiful Launderette), de Stephen Frears (1985), Riff-Raff, de Ken Loach (1991), e as infinitas reprises do super turbinado à cocaína The Tube, pelo Channel 4. Na pop music, se as Spice Girls adiante se converteram em imagem escarrada e cuspida do thatcherismo, a aversão vai mais bem manifesta por Elvis Costello em “Armadilha no fundão sujo”. [32] The Cure tocou em Buenos Aires, 6ª-feira passada. Robert Smith colou um adesivo na guitarra: “Ding-dong a bruxa morreu”. [33] A aversão é perene. E empacotando todo esse espírito do tempo, em narrativa, nada bate Dinheiro, de Martin Amis (1985). [34]

“Mas o filme é tédio triste/porque escrevi dez vezes ou mais/e estou escrevendo mais uma vez./E peço que vocês se concentrem” [35] nessa coluna de Will Hutton, ex-editor do Observer. [36] O pós-thatcherismo está ali, inteiro: as sementes do desespero corrente – provocado por uma monstruosa bolha 3D de crédito, banking e propriedade – foram plantadas em 1979. Ganância financeira subiu; investimento/inovação despencaram.

O que resta de “flexibilização do mercado de trabalho”, desigualdade – exacerbada pelo Big Bang de 1986, que consolidou a City de Londres como o centro de um boom financeiro global – chama-se hoje Tristeza e Melancolia.[37] Pior, realmente, que em 1990. “Talvez você esteja sorrindo, dentro dessa escuridão toda/Mas eu só tenho culpa, a dar, por sonhar”. [38]

Raiva? Ira? Não. De fato, não. “Espero há tanto tempo, tanto tempo, esperando assim/Olhar para trás em fúria/movido pela noite”. [39] Não havia praticamente ira alguma, por exemplo, em 1997: todos olhavam para trás na esperança de ver reeditado o charme da Swingin’ London, por um Tony Blair eleito por uma avalanche de votos; mas ele também perdeu logo o rumo, e depois se afundaria no mesmo legado triste, enganador, de mais um belicista doido. “Pensei que você morreu sozinho, há muito tempoI Oh não, eu não, nunca perdi o controle.Você está cara a cara /Com o homem que vendeu o mundo. [40]

É hora de deixar a cápsula se tiver coragem [41]

Europa 2013, só tensão e medo. Todos os jovens/trazem as notícias. [42] Os direitos civis derretem, derretem. A luta de classes, marca registrada do thatcherismo – Dividir para Governar as tribos desunidas – acabou por fragmentar o tecido social britânico além do ponto onde ainda haveria remendo possível. Quem sabe? Pode ser um irmão esquisito, “de volta para casa com seus Beatles e seusStones/nunca entendemos aquele negócio de revolução/que saco, tantas pontas. Mas do outro lado da cerca, o cara ainda encontra aquelas crianças nas quais se cospe/e elas tentando mudar o mundo delas/elas sabem muito bem que estão atravessando. [43]

Em fabuloso golpe de Relações Públicas – um single lançado sem mais nem menos, em janeiro passado, quando completou 66 anos, depois de 10 anos de silêncio – Bowie tentou responder à pergunta “Onde estamos agora?” [44] Olha para trás, para os seus dias de Berlim nos anos 1970s – que geraram a fabulosa trilogia de Low, Heroes e Lodger. Só ela, no que tenha a ver com modelar a visão do tempo do Ocidente, essa trilogia foi tão influente quanto a derrubada do Muro de Berlim. “Às vezes você fica tão só/às vezes você não chega a lugar algum/Vivi pelo mundo todo/Vivi em todos os lugares”. [45]

Muito estranhamente, cada dia mais estranhamente, Bowie permaneceu em silêncio durante todos os anos da Guerra Global ao Terror. Mas “os rapazes continuam agitando, os caras sempre dão um jeito” [46] – ainda que o terror, incluindo guerras clandestinas e de drones, já sejam a nova normalidade.

Como encontrar a saída? Seja como for, nesse vale de lágrimas desiguais, “Oh, não, amor!/você não está só/não importa o quê ou quem você tenha sido/não importa quando ou onde tenha sido visto/Todas as facas parecem lacerar seu cérebro/Conheço isso, vou ajudá-lo a suportar a dor/você não está só”. [47]

Facas laceram agora gerações de cérebros Facebook/Google – de órfãos da verdadeira “primavera árabe” a legiões de europeus
condenados ao subemprego perpétuo. Não há, nem de longe, qualquer sinal de que “podemos ganhar deles/outra vez, outra vez, para sempre”. Afinal de contas “Somos nada e nada nos ajudará.” Mas a velha ordem não se dará por satisfeita. “Porque podemos ser heróis/por um dia”. [48]
(Redecastor)

domingo, 21 de abril de 2013

Jack Kerouac

Rimbaud - Jack Kerouac
em literatura por Guilherme Ziggy em 12 de mar de 2013 às 18:45 | 2 comentários

Se Jack Kerouac não tivesse literalmente "se matado de beber" em 1969, hoje ele completaria 91 anos. O líder da Beat Generation viveu os excessos e escreveu sobre eles como ninguém mais conseguiu desde então. Para celebrar sua memória, nada melhor que um de seus poemas mais célebres e profundos. "Rimbaud" de 1960.



Arthur!
On t’appela pas Jean!
Nascido em 1854 praguejando em Charle-
ville abrindo portanto caminho para
o abominável assassinato
de Ardennes –
Não se admira que seu pai tenha partido!
Então aos 8 anos você entrou pra escola
– Pequeno Grande Latinista, quem diria!
Em outubro de 1869
Rimbaud está escrevendo poesia
em greco-francês –
Sem passagem

foge de trem pra Paris,
o miraculoso guarda-freios mexicano
o joga pra fora do trem
veloz, pro Céu, onde
ele não mais viaja porque o
Céu está em todo lugar –
Apesar de tudo as bichas velhas
intervêm –
Rimbaud sem mais Rimbaud
treina na verdejante Guarda
Nacional, orgulhoso, marchando
na poeira com seus heróis –
desejando ardentemente ser violentado,
sonhando com a Garota definitiva.
– Cidades são bombardeadas enquanto
ele olha & olha & chupa
seu lábio degenerado & olha
com olhos cinzentos para a
França Sitiada –

André Gill foi o precursor
de André Gide –
Longas caminhadas lendo poemas
entre os Montes de Feno de Genet –
O Voyant nasceu,
o vidente enlouquecido faz seu
primeiro Manifesto
dá cores às vogais
& às consoantes curiosos cuidados,
fica sujeito à influência
de velhas Bichas Francesas
que o acusam de constipação
do cérebro e diarreia
da boca –
Verlaine o convoca pra Paris
com menos aprumo do que quando
expulsou garotas pra
Abissínia –
“Merde!”, grita Rimbaud
nos salões de Verlaine –
Fofocam em Paris – a mulher de Verlaine
está com ciúmes de um garoto
que não sossega o rabo em canto algum
– Amor manda dinheiro de Bruxelas
– Mamãe Rimbaud odeia
a impertinência de Madame
Verlaine – Por essa época já se suspeita que o
Degenerado Arthur seja
um poeta –
Uivando no porão
Rimbaud escreve Uma estação no inferno,
Sua mãe estremece –
Verlaine manda dinheiro & tiros
Pra Rimbaud –
Rimbaud vai à polícia
& apresenta sua inocência
como a inocência pálida
de seu divino e feminino Jesus
– Pobre Verlaine, 2 anos
no xadrez, mas poderia
ter levado uma faca no coração

– Iluminatións! Stuttgart!
Estudo de línguas!
A pé Rimbaud viaja
& olha através dos passos
alpinos para a Itália, procurando
trevos da sorte, coelhos
Reinos Encantados & a sua
frente nada menos que o velho
Canalleto e a morte do sol
sobre velhos casarões venezianos
– Rimbaud estuda línguas
– ouve a respeito dos Alleghanes,
do Brooklyn, das últimas
Pragas Americanas –
A irmã que mais amava morre –
Viena! Ele olha pras confeitarias
& acaricia velhos cachorros! Assim espero!
Esse gato muito louco se alista
no Exército Holandês
& viaja pra Java de navio
comandando moscas
à meia-noite
na proa, sozinho,
ninguém ouve seu Comando
a não ser o brilho dos peixes
no mar – Agosto não é
época de se ficar em Java –
Visando o Egito, ele é mais uma vez
preso na Itália por isso volta
pra casa pra poltrona profunda
mas em seguida vai
de novo pra Chipre pra
dirigir um bando de tra-
balhadores numa pedreira –
com o que se parece esse Último
Rimbaud? – Poeira de pedras
& costas negras & picaretas &
gente tossindo, o sonho surge
na mente africana do francês, –
Inválidos dos Trópicos são sempre
amados – O Mar Vermelho
em junho, os tremores na costa
da Arábia – Harar,
Harar, o mágico entreposto
de comércio – Aden, Aden,
Sul de Bedouin –
Ogaden, Ogaden, jamais
conhecido – (Nesse tempo
Verlaine está sentado em frente a cognacs
em Paris imaginando
com o que o Arthur se parece agora &
como estão desoladas suas sobrancelhas
porque eles acreditavam
na beleza juvenil das sobrancelhas –
Quem se interessa? Que espécie de
Franceses são esses? Rimbaud, bata em
minha cabeça com aquela pedra!
Um Rimbaud sério compõe
artigos elegantes & eruditos
para Sociedades Geográficas
Nacionais & depois das guerras
comanda Harari a Garota
(Ha Ha!) de volta
a Abissínia, & ela
era jovem, tinha olhos
negros, lábios grossos, cabelo
encaracolado, & seios de
um marrom polido com
bicos de bronze & pequenas
pulseiras em seus braços &
juntava suas mãos sobre o ventre &
tinha os ombros tão largos quanto
os de Arthur & orelhas pequenas
– Uma garota de alguma
casta, em Bronzeville –

Rimbaud também conheceu
Polinésias esguias
com longos cabelos revolvidos
& seios pequenos & pés grandes

Finalmente ele começa
a contrabandear armas
em Tajoura
viajando em caravanas, louco,
com um cinturão de ouro
amarrado na cintura –
Ludibriado pelo Rei Menelik!
O Xá de Shoa!
Os ruídos desses nomes
na mente ruidosa
de um francês!

Cairo para o verão,
vento amargo de limão
& beijos no parque empoeirado
onde garotas sentam de
pernas cruzadas
– ao entardecer pensando
em nada –

Harar! Harar!
Levado de maca para Zeyla
lamentando o dia
em que nasceu – o barco
retorna ao castelo de giz
Marseille mais triste que
o tempo, que o sonho,
mais triste que a água
– Carcinoma, Rimbaud
é devorado pela doença
de viver demais – Amputaram
sua linda perna –
Ele morre nos braços
de Isabelle
sua irmã
& antes de subir ao Céu
manda seus francos
para Djami, Djami
o garoto Harari
seu servo fiel
8 anos no Inferno
Africano do Francês
& tudo resulta
em nada, como

Dostoiévski, Beethoven
ou Da Vinci –
Portanto, poetas, descansem um pouco
& calem-se:
Nada jamais surgiu
do nada.

1960
Jack Kerouac

guilhermeziggy
Artigo da autoria de Guilherme Ziggy.
Guilherme, 19. Ariano, poeta, roteirista, beberrão, mal-humorado, intelectual de botequim & solteirão solitário. Faço dos males a diversão e do sofrimento a desculpa pra poder escrever poesia. .
Saiba como fazer parte da obvious.