segunda-feira, 8 de abril de 2013

Chávez

Venezuela: um chavismo sem Chávez?

(o futuro do «socialismo bolivariano» para lá das eleições)

por Steve Ellner

Programas sociais que melhoram a vida dos mais pobres; um apoio popular intacto apesar de treze anos no poder; candidatos credíveis, no seu próprio campo, à sucessão… Hugo Chávez parece estar bem colocado para vencer as eleições de 7 de Outubro. Mas se ele desaparecer – tem um cancro –, poderá o processo político por ele criado ser suspenso?

«Um favor obtém-se sempre em troca de outro favor», admite Joanna Figueroa. Desde que o Estado lhe arranjou casa, no quadro da Missão Habitação, um ambicioso programa de alojamento social, esta moradora do Viñedo, bairro popular da cidade costeira de Barcelona, no Leste da Venezuela, prometeu lutar pela reeleição de Hugo Chávez. Ela própria construiu a sua casa, com uma equipa de trabalhadores que incluía um pedreiro, um canalizador e um electricista, contratados pelo conselho comunal. O trabalho de Joanna consistiu em preparar o cimento. «Amor com amor se paga», proclama ela, retomando a divisa em vigor entre os partidários de Chávez. O sucesso deste refrão, que se ouve um pouco por todo o lado no país, testemunha a ligação emocional que continua a haver entre um grande número de venezuelanos e o seu presidente.

O escrutínio do próximo 7 de Outubro cristaliza desafios consideráveis. Apesar de o candidato da oposição, Henrique Capriles Radonski, gostar de se apresentar como um renovador sem preconceitos ideológicos, a verdade é que ele faz parte do partido conservador Primero Justicia (PJ) que defende os interesses dos investidores privados e vê com desconfiança qualquer intervenção do Estado na economia. A oposição, no entanto, acalmou-se desde o seu falhado golpe de Estado de 2002 e da decisão, que então tomou por despeito, de boicotar as eleições nacionais. Agora, os seus dirigentes participam no processo eleitoral e dizem apoiar com fervor a Constituição de 1999, adoptada por esmagadora maioria mas que na altura haviam rejeitado. Conseguiram mesmo unir-se apresentando um candidato comum, investido em Fevereiro passado após as eleições primárias.

O balanço positivo da Missão Habitação, que obteve casa para milhares de famílias modestas levando-as a envolverem-se, nos bairros, na aplicação do programa, não é estranho, sem dúvida, à persistente popularidade de Hugo Chávez, que continua à frente nas sondagens. Apesar de a oposição anunciar com alarde que a vitória será sua, nota-se nas suas fileiras um certo desalento. O patrão de imprensa Rafael Poleo, figura influente da direita e encarniçado adversário de Chávez, desaprovou recentemente a candidatura de Capriles, tido como «incapaz de ir seja para onde for». Essa declaração seguiu-se à publicação em Maio de um estudo de opinião que dava 43,6% dos votos ao presidente cessante, contra apenas 27,7% ao seu adversário. O balanço de Chávez, por outro lado, obteve 62% de opiniões favoráveis. É algo difícil de engolir, tanto mais que o autor da sondagem, o Instituto Datanalisis, pertence a um fiel da oposição, Luis Vicente León.

A popularidade que Chávez parece ter não deixa de ser surpreendente, tendo em conta os seus treze anos de poder e o cansaço que uma tal longevidade instala necessariamente na opinião pública. A sua candidatura, além disso, poderá sofrer com as incertezas ligadas ao cancro de que padeceu, tornado público em 30 de Junho de 2011 (sem que tenham sido desvendadas a localização e a gravidade da doença). A oposição, de resto, não se tem poupado a denunciar a imprevidência do presidente, que se absteve de nomear um substituto susceptível de garantir a continuidade do poder no caso de vir a ocorrer uma repentina vagatura. Tanto no interior como no exterior do país, os media próximos do mundo dos negócios exploram facilmente os problemas de saúde do chefe do Estado venezuelano para reduzirem a possibilidade de ser reeleito. Como indica um estudo efectuado pelo jornalista Keane Bhatt, o duelo nos trópicos entre a «fragilidade de Chávez» e a «energia juvenil» de Capriles impôs-se como um clássico na produção da agência Reuters, da Associated Press (AP) ou do Miami Herald [1]. A irrupção da doença reaviva também a espinhosa questão da liderança do movimento de Chávez, que começa a reconhecer que a concentração do poder nas suas mãos não tem apenas vantagens; ao mesmo tempo que os seus ministros vão saindo e entrando, o presidente – cujo retrato ornamenta quase todos os cartazes bolivarianos – ocupa o lugar de honra como encarnação única de um processo político que parece já não depender dele.

Durante uma visita ao Brasil, em Abril de 2010, quando uma jornalista lhe perguntou se encarava ceder um dia o seu lugar a outro dirigente, respondeu: «Não tenho nenhum sucessor em vista.» Continuará agora a ser assim? O ano passado, Chávez admitiu o seguinte a um dos seus antigos conselheiros, o universitário espanhol Juan Carlos Monedero, que o advertia dos perigos de uma «hiperliderança» na Venezuela: «Tenho que aprender a delegar melhor o poder». Durante os períodos em que os tratamentos médicos o afastaram do poder, vários responsáveis políticos colmataram o vazio e emergiram como possíveis sucessores. Nomeadamente o actual ministro dos Negócios Estrangeiros, Nicolás Maduro, antigo dirigente sindical que presidiu à comissão que esteve na origem da nova legislação do trabalho e que dispõe de sólidos apoios entre as organizações de trabalhadores. Ou o vice-presidente executivo, Elias Jaua, muito popular junto da base militante do movimento chavista. Sem esquecer o presidente da Assembleia Nacional, o pragmático Diosdado Cabello, antigo tenente que dispõe de poderosos apoios no exército. Privados da omnipresente tutela de Chávez, «alguns de nós pensámos que seria difícil continuar o processo», explicou o ex-conselheiro Monedero em Maio passado. «Mas agora já não temos esse receio, porque vejo dúzias de pessoas que poderão continuar o trabalho sem qualquer problema.»
Programas sociais e luta contra a insegurança

Na hipótese de um terceiro mandato, o futuro político de Chávez irá sem dúvida depender da aptidão do seu campo político para aprofundar as mudanças encetadas, para elaborar novos programas sociais susceptíveis de revigorar a base popular e para lutar contra a insegurança [2]. O caminho já percorrido não impede que se encare essa possibilidade. Eleito pela primeira vez em 1998, graças a um programa moderado concebido para apagar a imagem belicosa que se lhe colava à pele desde as suas tentativas de putsch de 1992, o antigo amotinador da Academia Militar de Caracas apressou-se a fazer votar uma nova Constituição, a lançar uma vasta reforma agrária e a proceder a uma grande renovação da legislação social e económica. Em 2005, proclamou a sua conversão ao socialismo e nacionalizou os sectores estratégicos da economia, tais como as telecomunicações, os bancos, a electricidade e o aço. A partir de 2009, a «revolução bolivariana» alargou o seu controlo a empresas mais pequenas mas cruciais para o dia-a-dia da população. Mas esta política de expropriações, acompanhada de uma escalada verbal contra a «burguesia», a «oligarquia» e o «imperialismo americano», tem um objectivo menos polémico: garantir a soberania alimentar do país.

Através de uma rede de empresas públicas, bens de primeira necessidade como o arroz, o café, o óleo ou o leite são agora produzidos localmente e estão disponíveis a preços acessíveis. Em Junho passado, a Venezuela até inaugurou a sua primeira linha de fabrico de maionese com base em óleo de girassol. A implantação de novos serviços públicos cujo bom desempenho é reconhecido – alimentação, bancos, telecomunicações – sugere que o Estado não é forçosamente incompetente a gerir empresas. A demonstração é menos probatória no caso das indústrias pesadas, tais como o aço, o alumínio ou o cimento, que se vêem constantemente perante conflitos sociais e falhas da rede comercial. O governo, assegurando ele próprio a venda dos materiais de construção aos bairros que deles precisam, sem passar por intermediários ciosos das suas margens de lucro, espera resolver pelo menos uma parte do problema.

Segundo a Comissão Económica para a América Latina e Caraíbas (CEPALC) da Organização das Nações Unidas (ONU), a taxa de pobreza diminuiu 21% entre 1999 e 2010. Mas este início de redistribuição a favor dos mais modestos não é do agrado das classes médias, que continuam a ser maioritariamente hostis ao presidente cessante. As sondagens dão-lhe um avanço de vinte pontos sobre o seu rival, mas essas proporções invertem-se nos bairros de gente abastada. Entre os mais ricos, o arauto do bolivarismo suscita com frequência uma hostilidade visceral, associada à obsessão – sabiamente alimentada pela oposição e pelos media patronais – de que o governo acabe um dia por proibir a propriedade privada. E a isso junta-se, em certos casos, um ressentimento contra os pobres, que parecem drenar a seu favor todas as larguezas do Estado. O governo, no entanto, não se poupou nos gestos a favor das classes médias e superiores, como quando instaurou uma taxa de câmbio preferencial para as viagens ao estrangeiro.

Ao mesmo tempo que Chávez parece querer demarcar-se de alguns excessos do passado, Capriles aposta decididamente na cartada do homem da renovação. Nunca perde a oportunidade de lembrar que tem apenas 40 anos e que não é, por isso, responsável pelas políticas calamitosas infligidas aos venezuelanos antes de 1998 – embora os partidos que governavam nesse tempo sejam agora seus apoiantes. Nos seus discursos, associa com frequência «a velha maneira de fazer política» aos episódios de intolerância e polarização que marcaram o país, antes e depois da chegada ao poder de Hugo Chávez. Apresentando-se como uma protecção contra o sectarismo, promete não suprimir os programas sociais do governo actual, mas, pelo contrário, melhorá-los. Propõe, por exemplo, aprovar uma nova lei, baptizada «Missões iguais para todos», que garanta aos cidadãos de todas as opiniões e de todas as orientações políticas as mesmas condições de acesso aos programas sociais. Em 1 de Fevereiro de 2011, inquirido por uma televisão privada, explicou: «O que é positivo no balanço de Chávez é ele ter posto na ordem do dia a questão da luta contra a pobreza. Mas agora é preciso irmos mais longe, ultrapassar os meros discursos para acabar com este flagelo».

Sem dúvida nenhuma – assim o sugerem os números da CEPALC –, a acção social do governo venezuelano não se limita a «meros discursos». Mas as declarações de Capriles (corroborando as de Teodoro Petkoff, antigo guerrilheiro que se tornou porta-voz do establishment local) representam uma forma de vitória ideológica para Chávez. Revelam, além disso, que para o candidato da oposição o antigo tenente-coronel não é talvez o ditador louco que os media privados denunciam desde há anos.
Expropriações, economia mista e interesse geral

Mas se a oposição já não contesta a eficácia da política social bolivariana, em contrapartida Chávez e Capriles têm posições diametralmente opostas em matéria de política económica. É sobre a questão das expropriações que os dois campos esgrimam com maior virulência. Para os partidários de Chávez, as expropriações constituem uma ferramenta para edificar uma economia mista destinada ao interesse geral, designadamente nos sectores da construção, da banca e da alimentação; combatendo nestes sectores vitais os monopólios privados, o Estado acabou com as carências artificiais a que outrora os consumidores se viam sujeitos. «Como se explica que desta vez não haja nenhuma das carências que atingiram o país em todos os períodos eleitorais anteriores?», perguntava recentemente o deputado Iran Aguilera, próximo de Chávez. «Porque as empresas do Estado colmatam as faltas criadas com fins políticos pelo sector privado.»

A oposição, por seu lado, pretende restabelecer prontamente o sector privado nos seus direitos inalienáveis. «A este respeito, não tenciono entrar em querelas com os homens de negócios, nem seja com quem for», admite Capriles com franqueza. O favorito dos empresários argumenta que nas empresas controladas pelo Estado a produção caiu, sem no entanto apresentar estatísticas que apoiem essa tese. Prefere sublinhar o regresso em fanfarra dos investidores estrangeiros, esperando que a cornucópia deles lhe permita manter a sua promessa cardinal: a criação de três milhões de empregos em seis anos. A ortodoxia liberal que impregna o seu programa não poupa a segurança social, cujo controlo o Estado deixaria de ter, a favor de um sistema misto em que seria privilegiada a «poupança individual voluntária». A Mesa de Unidade Democrática (MUD), coligação heteróclita formada pelos partidos que apoiam Capriles, reclama, quanto a ela, uma «flexibilização» da lei que rege o controlo do Estado sobre a indústria petrolífera, «para promover a competitividade e a participação do sector privado» [3].

Com grande vontade de congregar sem critério o maior número de votantes, o candidato anti-Chávez nem por isso está certo de poder seduzir para além das classes médias que compõem a base do seu próprio partido, o PJ. Antes de mais, porque provém duma família de empresários que fizeram fortuna nos mais variados sectores, do imobiliário à indústria, passando pelos media, perfil pouco comum entre a classe política venezuelana. Depois, porque Capriles é o antigo autarca de Baruta, município abastado da aglomeração urbana de Caracas. Não é seguro que a imagem modesta e juvenil que procura transmitir baste para contrabalançar semelhante currículo junto dos eleitores menos favorecidos, mesmo cansados de Chávez.

De resto, o dirigente da oposição nem sempre é ajudado pelos seus próprios seguidores. Recentemente, o MUD atacou a Missão Habitação chamando «fraude» e «falhanço» à expropriação dos terrenos destinados à construção de alojamentos sociais. Foi uma ofensiva arriscada, visto tratar-se do programa governamental mais popular dos anos Chávez. Segundo o ministro da Comunicação e Informação, Andrés Izarra, os primeiros objectivos já foram alcançados, com a construção de duzentos mil alojamentos, desde que o plano foi lançado, em 2011. Chávez, que nunca esquece o seu passado de militar, apresentou-o como uma guerra que deve mobilizar todo o governo e todo o movimento bolivariano. Em alguns bairros, estudantes recebem bolsas para formar «brigadas» encarregadas de construir as casas. Mas o papel principal incumbe aos cerca de trinta mil conselhos comunais criados desde 2006.

São eles que recrutam os trabalhadores, qualificados ou não, e que seleccionam os beneficiários do programa. O contrato de «substituição dos casebres por uma habitação condigna» indica onde e segundo que normas a nova casa deve ser construída. Cada trabalhador recebe o seu salário no fim das obras, na forma de um cheque emitido por um banco nacionalizado, porque no passado os pagamentos em dinheiro líquido levaram a desvios. Por outro lado, são tomadas medidas para evitar a revenda especulativa destas casas. «Estamos num processo de aprendizagem, em que os erros previamente cometidos por falta de controlo se vão corrigindo aos poucos», explica-nos Leandro Rodríguez, do Comité de Participação Cidadã do Congresso Nacional.

Chávez escolheu oportunamente a data do 1.º de Maio, a meio da campanha eleitoral, para promulgar o novo Código do Trabalho, última grande iniciativa do seu mandato. Os progressos que este traz nada têm de cosmético: redução do tempo de trabalho para 40 horas semanais (contra 44 anteriormente), proibição das subempreitadas a favor de empregos estáveis, extensão da licença de maternidade para 26 semanas (contra 18 antes). O texto restabelece também o antigo sistema de indemnizações por despedimento, suprimido em 1997 pelo governo liberal de então. Doravante, o trabalhador despedido receberá um prémio correspondente ao montante do seu salário mensal multiplicado pelo número de anos de trabalho na empresa – uma velha reivindicação dos sindicatos venezuelanos. Capriles insurgiu-se contra esta nova legislação, argumentando que não resolve o problema do desemprego nem a situação dos trabalhadores clandestinos, privados de protecção social. Mas a seguir revelou qual era a natureza da sua censura: «Chávez tirou esta lei do chapéu para o ajudar a ganhar em 7 de Outubro».

O desenlace do escrutínio terá um grande impacto em todo o continente sul-americano. Capriles já prometeu restabelecer relações amigáveis com os Estados Unidos, ao mesmo tempo que outros membros da oposição anunciaram uma completa revisão dos programas de ajuda e cooperação estabelecidos pela Venezuela com alguns dos países vizinhos. Um acordo deste género está também previsto com a China, que forneceria créditos baratos em troca de petróleo. Por último, durante a visita a Caracas do presidente iraniano Mahmud Ahmadinejad, em Junho passado, Capriles denunciou a aliança insólita com Teerão, exigindo que o governo «se ocupe de preferência dos problemas da Venezuela, criando empregos para os venezuelanos».

A crença pan-americana de Chávez concretizou-se na criação de vários organismos supranacionais: União das Nações Sul-Americanas (UNASUL) – presidida pelo seu confidente, Alí Rodríguez Araque –, Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), fundada em Caracas em Dezembro passado, e a Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América – Tratado de Comércio dos Povos (ALBA-TCP), que congrega, entre outros países, a Venezuela, Cuba, Bolívia, Equador e Nicarágua [4]. Em Junho passado, por instigação de Chávez, o bloco latino-americano condenou vigorosamente a destituição ilegal do presidente paraguaio – de esquerda –, Fernando Lugo, denunciando a inércia de Washington e do organismo que controla, a Organização dos Estados Americanos (OAS). A resposta imediata do presidente venezuelano (chamando o seu embaixador no Paraguai, suspendendo fornecimentos de petróleo) valeu-lhe, também neste caso, as admoestações de Capriles.

Perante a perspectiva de uma alternância em Caracas, apoderou-se de Washington uma impaciência febril. Para a Casa Branca, e para a classe política norte-americana na sua imensa maioria, Chávez continua a ser nesta parte do globo o inimigo público número um. Três semanas antes de sair da presidência do Banco Mundial, em Junho passado, Robert Zoellick resumiu a esperança geral: «Os dias de Chávez estão contados». Predizendo com deleite que, privados da ajuda venezuelana, países como Cuba e a Nicarágua irão em breve passar por «tempos difíceis». Neste cenário de sonho, acrescentou Zoellick, haverá «a oportunidade de transformar o hemisfério ocidental no primeiro hemisfério democrático», ao invés do «santuário dos golpes de Estado, dos caudilhos e da cocaína» que a seu ver o pesadelo bolivariano encarna. No início de 2012, o ensaísta Michael Penfold advertiu na revista Foreign Affairs: «Se Chávez ganhar em Outubro, uma grande parte da oposição venezuelana será destruída. Em muitos aspectos, isso será um recomeço do zero» [5].

Mesmo entre os especialistas da América Latina, as comparações do presidente venezuelano com os seus homólogos de sensibilidade semelhante raramente lhe são favoráveis. Num livro sobre o actual impulso dos movimentos de esquerda sul-americanos, os investigadores Maxwell Cameron e Kenneth Sharpe apresentam Chávez como um déspota, obstinado em «desmantelar as instituições políticas do Estado » e em «criar um partido oficial a seu mando», ao passo que o presidente boliviano Evo Morales simbolizaria um «movimento político em que a função do dirigente não consiste em monopolizar o poder» [6].

Só alguns intelectuais consideram que Chávez fez melhor do que os seus homólogos da Bolívia, do Equador ou de outros países. Jeffery Webber, universitário empenhado, coautor de uma outra obra sobre as esquerdas sul-americanas, qualifica Evo Morales como «neoliberal reconstituído», mas aplaude Chávez por ter «revivificado a crítica do neoliberalismo e voltado a pôr na ordem do dia o debate sobre o socialismo» [7]. É com razão que os políticos e observadores, de todas as opiniões, tendem a reservar um tratamento particular ao regime venezuelano. Expropriações de grande amplitude, reformas para inverter a ordem liberal das coisas, redistribuição dos rendimentos petrolíferos, programas de cooperação a favor de países vizinhos mais pobres: poucos governos se podem gabar de ter impulsionado reformas tão audaciosas – ou tão espoliadoras, segundo o ponto de vista.
«Corrente de esquerda» no continente

A vitória de Chávez em Outubro poderá acelerar a dinâmica de transformação social em curso na Venezuela. O seu programa, intitulado «Para uma administração bolivariana e socialista 2013-2019», preconiza uma maior intervenção do Estado nos sectores do comércio e dos transportes, através de «centros de distribuição local para venda directa de produtos» que eliminariam os intermediários e tornariam caduco o modelo da grande distribuição que domina por toda a parte. Um outro objectivo é a extensão dos poderes democráticos exercidos pelos conselhos comunais. Centenas de «comunas em construção» em todo o país, agrupando cada uma delas uma dúzia ou mais de conselhos municipais, assegurariam entre si os serviços de utilidade pública, tais como a distribuição de gás ou de água. No total, as novas comunas representariam 68% da população. Teriam as mesmas prerrogativas que o Estado e as autarquias, nomeadamente na elaboração de orçamentos, na planificação e na cobrança de impostos.

A uma escala mais ampla, a reeleição de Chávez consolidaria a «corrente de esquerda» que está a atravessar a América Latina e restringiria, do mesmo passo, a influência dos Estados Unidos. A ascensão das esquerdas sul-americanas nos últimos anos favoreceu os processos de união no continente. Embora em 2009 a direita tenha ganho as eleições no Chile, a popularidade do presidente Sebastián Piñera em breve se desmoronou. O novo presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, eleito em 2010, aderiu rapidamente ao objectivo de união latino-americana assumido pela esquerda para se poupar a um desaire semelhante, dando-se até ao luxo de erguer o tom contra Washington a respeito de vários questões-chave [8]. Só o Paraguai, desde o derrube do presidente Lugo, marcha actualmente contra a corrente dos seus vizinhos.

Mas é ainda na Venezuela que o escrutínio de Outubro tem o seu significado mais decisivo. A derrota de Chávez teria como consequência – diga o que disser o seu rival – voltar a pôr o país na situação em que se encontrava antes de 1999. Um novo mandato daria à governação de Chávez dezoito anos; é muito, talvez seja demais. Mas a transformação social deste país durante um período tão longo, sob a condução de um chefe de Estado democraticamente eleito, representaria uma experiência sem equivalentes na história contemporânea.

STEVE ELLNER *

* Professor de História na Universidade de Oriente (Venezuela), autor de Rethinking Venezuelan Politics. Class, Conflict, and the Chávez Phenomenon, Lynne Rienner Publishers, Boulder (Colorado), 2008.

quinta-feira 7 de Março de 2013
Notas

[1] Keane Bhatt, «Our Man in Caracas: The US Media and Henrique Capriles», North American Congress on Latin America, 18 de Junho de 2012, www.nacla.org.

[2] Ler Maurice Lemoine, «Caracas já está a arder?», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Agosto de 2010.

[3] VenEconomía, vol. 29, n.º 6, Caracas, Março de 2012.

[4] Cf. «Latin American Unity Takes Center Stage as US Influence Declines», Julho de 2012, www. venezuelanalysis.com.

[5] Michael Penfold, «Capriles Radonski and the New Venezuelan Opposition», Foreign Affairs, Tampa (Florida), 26 de Janeiro de 2012.

[6] Maxwell Cameron e Kenneth Sharpe, «Andean Left Turns. Constituent Power and Constitution Making», em Maxwell Cameron e Eric Hershberg (dir.), Latin America’s Left Turns. Politics, Policies and Trajectories of Change, Lynne Rienner Publishers, Boulder (Colorado), 2010.

[7] Jeffery Webber, «Venezuela Under Chávez. The Prospects and Limitations of Twenty-First Century Socialism, 1999-2009», Socialist Studies - Études socialistes, Victoria (Canada), 2010; «From Leftindigenous Insurrection to Reconstituted Neoliberalism in Bolivia», em Barry Carr e Jeffery Webber (dir.), The New Latin American Left. Cracks in the Empire, Rowman and Littlefield, Lanham (Maryland), 2012.

[8] Ler Manière de voir, n.º 124, «Histoire des gauches au pouvoir», Agosto-Setembro de 2012.
(Le Monde)

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