terça-feira, 30 de abril de 2013

Pensamentando

Os suspeitos (Os culpados)

David Remnick, New Yorker, ed. 29/4/2013
“The Culprits”
Traduzido (só o que interessa) e comentado pelo pessoal da Vila Vudu

David Remnick
Entreouvido na Vila Vudu: Esse artigo não é nenhuma maravilha. Longe disso. Começamos por ter de corrigir o título. E decidimos excluir as manifestações nada jornalísticas de simpatia “por Boston”, que não interessam e distorcem todas as avaliações, a começar pelo que diz o presidente Obama; não interessam a ninguém, como informação – que não são: são puro opinionismo falso-jornalístico – e ajudam a criar o clima ideológico necessário para justificar todas as práticas policiais, por mais violentas e menos democráticas que sejam.

Além disso, o artigo é carregado de “interpretações” gratuitas, sem qualquer fundamento – como a “conclusão” de que, “porque” alguém assiste a determinados vídeos ou escreve coisas pelo Twitter, estaria “provada” alguma culpa.

Mas, dado que até quando é tão ruim e manipulatório quanto qualquer jornalismo (The New Yorker é uma espécie de revista (não)Veja, mas dirigida a público menos analfabeto); o jornalismo norte-americano ainda assim é melhor que o jornalismo brasileiro – que é o pior do mundo –, decidimos traduzir.

Aproveitam-se daí, pelo menos, algumas linhas objetivas sobre os dois acusados.

Evidentemente não são, ainda, culpados de coisa alguma. E até que sejam julgados e condenados, são, evidentemente, inocentes – embora um já tenha sido morto e o outro, no hospital, só tenha, de futuro, a tortura, como todos já sabem, mas o “jornalismo” de The New Yorker não informa.

Tamerlan e Dzhokar Tsarnaev
Durante a 2ª Guerra Mundial, Joseph Stálin declarou que o povo da Chechênia  seria desleal à URSS e expulsou os chechenos de sua terra original, no norte do Cáucaso, para a Ásia Central e o fundo da Sibéria. Dezenas de milhares de chechenos, com membros de outros grupos étnicos menores do Cáucaso e da Península da Criméia, morreram durante a operação de deportação em massa ou logo depois – muitos de frio, muitos de fome.

A família Tsarnaev acabou por se instalar numa cidade chamada Tokmok, no Quirguistão, não distante da capital Bishkek. Muitos dos que sobreviveram aos 13 anos seguintes de exílio foram afinal autorizados a voltar para casa, no final dos anos 1950s, no governo de Nikita Khrushchev, e reconstituíram um senso de pertencimento e de identidade. Alguns continuaram expatriados. Os chechenos falam russo com sotaque típico; e praticamente todos mantém o próprio idioma, noxchiin mott. A região do Cáucaso é extremamente multicultural, mas a religião predominante no norte é o Islã. O espírito nacional checheno aparece sempre, invariavelmente definido como “furiosamente independente”.

Localização da Chechênia
No colapso da União Soviética em 1991, rebeldes nacionalistas lutaram duas guerras terríveis contra o Exército Russo pela independência da Chechênia. No fim, os grupos rebeldes foram ou dizimados ou passaram para o lado dos russos. Mas a rebelião persiste, na Chechênia e em regiões vizinhas – Daguestão e Inguchétia – e agora já tem caráter fundamentalista. A palavra-de-ordem é “jihad global”. As táticas são sequestros, assassinatos, bombas.

Anzor Tsarnaev, checheno por etnia, que viveu grande parte da vida no Quirguistão, emigrou há uma década para a área de Boston com a esposa, duas filhas e dois filhos. Apesar da artrite nos dedos, ganhou a vida como mecânico de automóveis. Membros da família assistiam aos serviços religiosos, apenas ocasionalmente, numa mesquita da rua Prospect em Cambridge, mas nada jamais houve de fundamentalista no modo de viver ou conviver da família.

O filho mais velho de Anzor, Tamerlan, jamais deu a impressão de ter-se conectado plenamente com a vida nos EUA. “Não tenho nenhum amigo norte-americano”, contou a um fotógrafo, Johannes Hirn, que fotografava Tamerlan num treino de boxe. “Não compreendo os norte-americanos”. Frequentou aulas no Bunker Hill Community College, na turma preparatória para Engenharia. Descreveu-se como “muito religioso”; não bebia nem fumava. 26 anos e 90 quilos, boxeava regularmente no centro Wai Kru de artes marciais. Adorou “Borat” (apesar de algumas piadas, que são “um pouco demais”). Teve uma filha, mas nenhuma família estável. Foi preso, há três anos, por agressão doméstica. (“Nos EUA, não se pode nem encostar numa mulher” – Tamerlan disse ao Times).

David Bernstein, matemático aposentado, natural de Moscou, que emigrou há 33 anos, disse que conhecia a família, porque costumava levar o carro regularmente à oficina de Anzor. Observou que Tamerlan trabalhava às vezes na oficina, mas que não parecia satisfeito. “Conversei conversas à toa com Tamerlan” – Bernstein recordou:

Perguntei-lhe se sabia o significado de seu nome, “o grande guerreiro”. Ele falava às vezes de política e religião. Disse-lhe que, em certo sentido, todo mundo é religioso; ele me disse que eu deveria me converter à religião muçulmana. Respondi que “cada um inventa a própria religião” e encerrei a discussão.

Quando Bernstein soube que seu conhecido estava sendo considerado acusado por um ato de terrorismo na linha de chegada da Maratona de Boston, ficou zonzo. “Senti-me como um Forrest Gump”, disse ele. “De repente, ele fica famoso por causa desse ato, e eu, lá, tantas vezes conversando com ele. Mas quem poderá dizer que realmente o conhecia?”.

Dzhokhar, 19 anos, concluiu o ginásio na Cambridge Rindge and Latin School, onde era localmente famoso como lutador de luta livre, descrito como ágil, rápido e um pouco tímido. Ganhou uma bolsa de estudos da cidade de Cambridge. Trabalhou durante alguns anos como salva-vidas numa das piscinas do campus, em Harvard. Outro salva-vidas, seu colega, lembra dele como rapaz “agradável”, com “bom senso de humor”. Colegas de ginásio também recordam Dzhokhar com prazer. “Era bom sujeito” – disse Ashraful Rahman. “Nunca senti nele qualquer vibração ruim. Não era estudante-gênio, mas era esperto. Nos encontramos algumas vezes na mesquita em Cambridge. Dzhokhar ia mais à mesquita que eu, mas não era devoto absoluto. Penso no que aconteceu e me pergunto se teria sido obrigado a fazer o que fez. Terá sofrido lavagem cerebral? Nada, aí, parece ter a ver com ele. Mas não se pode esquecer que “estava na erva”. Fumava muito. Marijuana. E esse pessoal é calmo, mesmo, sempre devagar”.

Essah Chisholm, colega de luta livre, disse também que “ele era bom sujeito”. Mas quando Chisholm e alguns amigos viram fotos dos irmãos Tsarnaev pela televisão, na 5ª-feira à noite, ligaram para o número criado pelo FBI para receber informações. Na mesma noite, mais tarde, começou o confronto armado – tiroteiro, caçada furiosa, bombas. “Não dá p’ra entender” – disse Chisholm na 6ª-feira à tarde. “Cada vez que vejo o nome dele na televisão, é sempre inacreditável. Ler o nome de Dzhokhar, ver fotografias. Acho que tem a ver com o irmão mais velho. A menos que ele fosse alguma espécie de agente à espera. Acho que o irmão teve forte influência. Tamerlan talvez se sentisse excluído, diferente, e pode ter feito lavagem cerebral em Dzhokhar, para convencê-lo de ideias radicais, que distorcem o que diz o Corão.” (...)

Feiz Muhammad
Mas a impressão de alheamento – “Parecia bom sujeito” – começa a desaparecer, à medida que nos aproximamos dos irmãos Tsarnaev. O canal Youtube de Tamerlan exibe vários vídeos de apoio ao fundamentalismo e à jihad violenta, dentre os quais uma fala de Feiz Muhammad, clérigo australiano e ex-boxeador que vive na Malásia; num dos vídeos, o clérigo critica o “paganismo” pervertido dos filmes de Harry Potter. Noutro, vê-se uma dramatização da profecia do Armageddon dos Bandeiras Negras de Khurasan, poderosíssima força militar islamista que se levantará na Ásia Central para derrotar os infiéis; é uma das principais profecias marciais-religiosas de que se alimenta a Al-Qaeda.

A conta de Dzhokhar na (empresa) Twitter (@J_tsar) é estranha combinação de banalidade e desesperança. (Ele parece ter continuado a tuitar mesmo depois das explosões da 2ª-feira passada). Se se lê o que escrevia, descobre-se um pouco do que pensa: suas piadas, seus ressentimentos, seus preconceitos, sua fé, os desejos.

14/3/2012: “uma década já nos EUA, quero cair fora”

16/8/2012: “A vida humana não vale nada hoje em dia É #tragic”

22/8/2012: “Sou o melhor jogador de beer pong em Cambridge. Eu sou #verdade”. Vídeo a seguir:

1/9/2012: “não sei por que tão difícil para tantos de vocês aceitar que 11/9 foi serviço interno. Quero dizer, fodam-se os fatos, vcs são mesmo #patriots #gethip [abram o olho]”

24/12/2012: “Irmãos na mesquita pensam que sou convertido, ou da Argélia ou Síria Outro dia me perguntaram como cheguei ao Islã”

15/1/2013: “Não discuto com idiotas q dizem que Islã é terrorismo e não vale nada. Idiotas, continuem idiotas”

13/3/2013: “Não tente espetar o garfo num minitomate, se estiver de camisa branca: ele explodirá”.

10/4/2013: “Ganhe conhecimento, ganhe mulheres, arranje dinheiro #livestrong”

15/4/2013: “Não há amor no coração da cidade Se cuidem, pessoal”.

15/4/2013: “Tem gente que sabe a verdade mas cala & tem gente que diz a verdade mas ninguém ouve porque são a minoria”.

16/4/2013: “Sou do tipo que não estressa”.


Gregory Shvedov
Gregory Shvedov, editor de uma página Web com base em Moscou, “Caucasian Knot” [Nó caucasiano], visita regularmente o Cáucaso e estuda o movimento jihadista, o governo russo e sua ação militar na região. Não manifestou qualquer surpresa ante a notícia de que dois chechenos étnicos, criados há longo tempo nos EUA, mas ainda profundamente ligados ao país de origem, possam ter praticado um ato “tipo bomba soft”, como o da Maratona. “Hoje há redes sociais, e as pessoas as usam para tomar decisões” – disse ele, de Moscou. “Não me surpreenderia que tivessem outra vida, nas mídias sociais. Que vídeos veem? O que leem e o que veem por YouTubes, sobre jihad?”.

Mas se Tamerlan fez o que é suspeito de ter feito, pode não ter sido educado, ou instruído, exclusivamente por meios digitais. Dia 12/2/2012, viajou de New York para Moscou, alvo regular da ira dos chechenos. Só retornou sete meses depois. (...)

Já no final do dia de ontem, era impossível não sentir alguma simpatia também pelos pais dos acusados, nenhum dos quais aceita sequer a possibilidade de que seus filhos sejam culpados. Entrevistados no apartamento onde vivem em Makhachkala, capital do Daguestão, falaram de “armação” urdida pelo FBI. A mãe, Zubeidat Tsarnaeva, disse à rede de televisão Russia Today: -“Meu filho me telefonava todos os dias e perguntava “Como está, mamãe?” Os dois telefonavam. “Mamãe, amo você”. Meu filho não tinha segredos”. O pai falou de Dzhokhar como “um anjo”.

No final da 6ª-feira, já manhã de sábado no Daguestão, o destino dos dois filhos do casal mudara completamente: um estava morto; o outro, ferido, hospitalizado e preso.

A família Tsarnaev já sofreu o peso da história antes – a fúria do império, a dor do deslocamento, por exílio e emigração. O asilo numa nova terra promissora pouco ajudou. Quando o pai, Anzor, sentiu-se doente, há alguns anos, decidiu retornar ao Cáucaso: era impensável, para ele, morrer nos EUA. Atravessara meio mundo, para bem longe da terra dos antepassados, mas algo o arrastou de volta ao Cáucaso. O sonho americano não é igual para todos. Mas nunca poderia prever o destino terrível que teriam seus dois filhos, destruídos pelo terror. A era digital não garante asilo a nenhum extremismo, muito menos à combinação tóxica de fanatismo religioso e doloridas decepções de homens fortes e jovens. Uma década já nos EUA, quero cair fora.
(Redecastor)

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