segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Colonialismo

O resíduo tóxico do colonialismo
http://goo.gl/AnMYn

14/2/2011, Richard Falk, Al-Jazeera, Qatar
The toxic residue of colonialism
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu


De fato, referência aberta, declarada, até agora nada se ouviu nem de Washington nem de Telavive – os governos que mais têm a perder com os desdobramentos da revolução do Egito – sobre intervenção militar. Essa ‘contenção’ manifesta mais sanidade geopolítica do que moralidade pós-colonial, mas ainda assim torna possíveis algumas mudanças que desequilibram, pelo menos temporariamente, a ordem política fixada.

Mesmo assim, por meios visíveis e ocultados, atores externos, especialmente os EUA, com uma mistura caracteristicamente norte-americana de pressupostas prerrogativas imperiais e paternalistas, ainda buscam interferir para modelar os resultados desse extraordinário levante do povo egípcio, há tanto tempo amordaçado pela ditadura cruel e corrupta de Mubarak. O traço que mais claramente define essa diplomacia conduzida de fora pelos EUA é o direito pressuposto de gerenciar a situação, de modo a que o regime sobreviva e os manifestantes voltem ao que perversamente está sendo chamado de “normalidade”.

O que me parece mais inacreditavelmente surpreendente é o presidente Obama apresentar-se como autoridade para instruir o regime Mubarak sobre como deve responder ao levante revolucionário. Alguma tentativa não me surpreenderia, e surpreender-me-ia, sim, se não houvesse. Mas me surpreende muito o nada tímido exercício da autoridade imperial, a nenhuma contenção da arrogância imperial, numa ordem mundial que, supostamente, estaria sendo construída em torno da legitimidade da autodeterminação, da soberania das nações e da democracia.

Também surpreende muito Mubarak ter dito em público que essa interferência, mascarada de aconselhamento, é inaceitável – mesmo que, a portas fechadas, ouça tudo e obedeça. Essa encenação geopolítica da farsa do senhor e do servo sugere a persistência da mentalidade colonial dos dois lados, tanto do lado do colonizador quanto do lado dos colaboracionistas nacionais.

A única mensagem pós-colonial genuína seria a homenagem: “Saia da frente, fique ao lado e aplauda”. As grandes lutas de transformação do século passado envolveram vários desafios em todo o sul global, até dar-se fim aos impérios coloniais europeus. Mas a independência política não deu fim aos métodos indiretos, ainda insidiosos, de controle, inventados para proteger interesses econômicos e estratégicos. É uma dinâmica que significava confiar em líderes políticos que sacrificariam o bem-estar do próprio povo para servir aos desejos de mal agradecidos ex-senhores coloniais, ou de seu sucessor ocidental remanescente, os EUA – que há muito já substituíram a França e a Grã-Bretanha no Oriente Médio depois da crise de Suez de 1956.

Os servidores pós-coloniais do ocidente passaram a ser bem pagos autocratas, cobertos de direitos virtuais de propriedade em relação à riqueza indígena do próprio país, desde que não criassem obstáculos aos capitais estrangeiros. Desse ponto de vista, o regime de Mubarak é exemplo impressionante de duradouro sucesso pós-colonial.

Os olhos liberais ocidentais há muito se acostumaram a não perceber os padrões internos de abuso que sempre acompanham o sucesso dessa política externa – os quais, vez ou outra, anotados por algum intrépido jornalista, logo voltam a ser ignorados ou, se preciso, desacreditados por alguma sempre disponível acusação de “esquerdismo”. Se nem isso bastar, sempre haverá quem diga, com um sorriso condescendente, que a tortura está inscrita ‘no DNA’ cultural territorial dos árabes – ideia que estrangeiros espertos sempre adaptam para uso próprio, sem nem vestígio de pudor.

De fato, no caso do Egito, essas práticas foram de grande serventia. O Egito serviu como local de interrogatório-tortura, item indispensável da desgraçada prática da “extreme rendition” [1].

De fato, o Egito serviu como local excepcionalmente útil para os EUA, porque, pelos passos da extreme rendition, oferecia local de prisão e interrogatório, vale dizer, de tortura, com prédios e instrumentos especialmente criados para a finalidade, de “terroristas suspeitos” que a CIA prendia pelo mundo e não poderia manter presos nem torturar suficientemente em nenhum país civilizado, oficialmente. Esse o aliado que, dia desses, falava de “presidência que respeita os direitos humanos”? O enviado especial do presidente Obama ao Egito de Mubarak, no auge da crise, ninguém menos que Frank Wisner, homem de uma das mais conhecidas linhagens da CIA, com certeza riu da piada.

É indispensável que se entendam com clareza as relações que há entre esse tipo de Estados pós-coloniais, que servem aos interesses dos EUA – petróleo, Israel, deter o Islã, impedir que proliferem armas nucleares – em troca de poder, privilégios e riqueza sempre concentrados em minúsculas corruptas elites nacionais, que só têm, para entregar ao inimigo, e entregam, o bem-estar e a dignidade dos que nascem e vivem naqueles territórios.

Esse tipo de estrutura, na era pós-colonial, quando e onde ideias de soberania nacional e direitos humanos já circulam na consciência popular, só pode ser mantida se se constroem barreiras de medo, reforçadas por um Estado de terror, desenhado para intimidar as massas e impedir que lutem por seus valores e seus objetivos. Quando essas barreiras são vencidas, como aconteceu na Tunísia e no Egito, então a fraqueza do regime opressor aparece, brilhando nas trevas.

O ditador escafede-se pela porta mais próxima, como fez Zine El Abidine Ben Ali da Tunísia, ou é camuflado pela própria entrourage e amigos estrangeiros, de modo que o desafio revolucionário possa ser maquiado em qualquer tipo de acomodação prematura. Esse parece ser o caso das recentes manobras da elite palaciana no Cairo e seus apoiadores na Casa Branca. Só o tempo dirá se as fúrias da contrarrevolução ganharão o dia, possivelmente à bala ou a chicote, e possivelmente mediante reformas emolientes que se apresentam como promessas que, com o tempo, se tornam impagáveis; isso, se o velho regime não for totalmente reconstruído.

São promessas que ninguém cumprirá – e a reimposição da ditadura, a corrupção e as enormes desigualdades na distribuição da riqueza só farão aumentar a miséria dos mais pobres. E se não for ditadura e opressiva, não conseguirá conter a luta por direitos, por justiça econômica e social, nem a justa solidariedade à luta dos palestinos.

Aqui está o nó da ironia dita “ética”. Washington respeita a lógica da autodeterminação, desde que seja convergente com a grande estratégia dos EUA. E ignora completamente o desejo dos povos, em todos os casos em que a manifestação dos desejos dos outros seja vista como algum tipo de ameaça aos super lords neoliberais da economia do mundo globalizado, ou aos alinhamentos estratégicos tão caros aos planejadores do Departamento de Estado ou do Pentágono.

Resultado disso é um inevitável vai-não-vai, com os EUA tentando ao mesmo tempo festejar e lastimar, celebrar o advento da democracia no Egito e reclamar da violência e das torturas do regime podre – ao mesmo tempo em que, por fora, opera para impedir qualquer mudança genuína, e, mais ainda, qualquer transformação democrática radical no Estado egípcio. Ungir o principal contacto da CIA e fiel escudeiro de Mubarak, Omar Suleiman, para presidir o processo de transição, aparece como mal disfarçado plano de jogar Mubarak às piranhas, enquanto trata de estabilizar o regime que ele presidiu por mais de 30 anos.

Eu esperaria mais sutileza dos gerentes geopolíticos, mas é possível que a nenhuma sutileza seja, mais, sinal de miopia dos imperialistas – sintoma que sempre acompanha a decadência dos impérios.

Chama a atenção que praticamente todos os manifestantes no Egito, quando entrevistados sobre por que arriscavam a vida nas ruas do Cairo, respondem variações de “Queremos o que é nosso direito” ou “Lutamos por liberdade e dignidade”. Claro. Desemprego, miséria, fome – e fúria contra a corrupção e os abusos e as pretensões dinásticas do governo Mubarak – são alimento compreensível para a ira que, sem dúvida, também serve de combustível às chamas revolucionárias. Mas o que sobe à superfície dos discursos é “direitos” e “dignidade”, nessa consciência política despertada.

Essas ideias, em larga medida cozinhadas nos fornos da consciência ocidental e simploriamente exportadas como sinal de boa vontade – como o nacionalismo, há um século – podem ser sido cozinhadas apenas como bandeiras de Relações Públicas e propaganda. Mas, com o tempo, essas ideias deram forma aos sonhos dos pobres e oprimidos. Então, quando o inesperado momento histórico finalmente se apresentou, aquelas ideias acenderam o fogaréu. Lembro, há quase uma década, falando com radicais indonésios em Jakarta, que eles diziam sobre o quanto o envolvimento nas lutas anticoloniais fora estimulado pelo que haviam aprendido dos professores colonizadores holandeses, sobre o nascimento do nacionalismo como ideologia política, no ocidente.

Pode acontecer de algumas ideias serem difundidas com objetivos conservadores, mas adiante, quando tiverem alguma serventia imediata na luta dos pobres oprimidos, as mesmas ideias renascem – e dão fundamento a uma nova política emancipatória.

Nada ilustra melhor esse processo que o percurso hegeliano da ideia de “autodeterminação”, proclamada pela primeira vez por Woodrow Wilson depois da 1ª Guerra Mundial.

Wilson foi governante que procurou, mais que tudo, manter a ordem; que acreditava na importância de satisfazer os objetivos dos investidores e corporações estrangeiras; e que nada tinha a reclamar dos impérios europeus coloniais. Para ele, a autodeterminação nunca foi mais que instrumento útil para esquartejar o Império Otomano, estimulando a formação de uma série de Estados étnicos.

Wilson pouco se preocupou – apesar dos muitos avisos de seu secretário de Estado –, com a possibilidade de a autodeterminação ser usada no serviço de outros deuses, e tornar-se poderosa ferramenta de mobilização para derrubar a ordem colonial.

O conceito de direitos humanos, nos tempos que correm, seguiu trilha semelhante, muitas vezes usado como mero slogan de propaganda para assustar inimigos nos tempos da Guerra Fria, outras vezes como barreira contra alguma identidade imperial – e às vezes como fundamento do ímpeto revolucionário, como parece ser o caso agora, nas lutas ainda em curso por direitos e por dignidade que varrem o mundo árabe sob várias formas.

Não se pode adivinhar o futuro. Há muitas forças em jogo, em circunstâncias de incerteza radical. No Egito, por exemplo, crê-se que o exército ainda controle a maior parte das cartas em jogo e que o fator determinante de qualquer resultado será aquele no qual o Exército decidir apostar. Mas essa “lógica” convencional não será apenas mais um sinal de que o “realismo” do poder da brutalidade ainda domina nossa imaginação, e sempre seriam os generais e suas armas o fator decisivo, não o desejo do povo nas ruas?

Claro, todas as pressões se confundem e o exército pode estar, apenas, deixando andar o barco, mantendo-se de lado para depois, quando se conhecer o vencedor, afinal alinhar-se com ele. Que motivos haveria para alguém confiar na sabedoria, na prudência, na boa vontade de exércitos – não só no Egito, cujos comandantes militares devem suas posições a Mubarak – mas em qualquer ponto do mundo?

No Irã, o exército manteve-se à parte e um processo revolucionário popular pôs abaixo o castelo de poder do Xá, construído de corrupção e ataques brutais à oposição. O extraordinário movimento popular não violento prevaleceu durante algum tempo, até que um movimento contrarrevolucionário subsequente converteu a democracia em teocracia.

Há poucos casos de vitória revolucionária e, dentre esses poucos casos, mais raros ainda são os casos em que se cumpre sem ruptura o programa revolucionário. O desafio está em manter a revolução contra os quase inevitáveis projetos contrarrevolucionários, muitas vezes trazidos por pessoas que, no momento revolucionário, estavam unidas contra a velha ordem, mas que, depois, optam por seqüestrar a vitória para seus próprios objetivos. As complexidades de um momento revolucionário exigem máxima atenção dos que lutam por emancipação, justiça e democracia, porque haverá inimigos aos quais interessa tomar o poder a qualquer custo, mesmo ao custo de ceder os valores humanos da revolução.

Um dos traços mais impressionantes da Revolução Egípcia até agora é o extraordinário ethos de não-violência e solidariedade que se viu nas massas, mesmo ante as sangrentas repetidas provocações da baltagiyya dos mercenários do regime. Esse ethos resistiu às provocações e deve-se esperar que as provocações parem e que a maré contrarrevolucionária arrefeça, percebendo ou a inutilidade de andar contra a história ou por implosão, consumida pelos efeitos corrosivos da longa existência em condições de ilegitimidade.


Nota de tradução

[1] Em português alguma coisa, como “tutela extraordinária” ou “tutela extrema”, em tradução tentativa temerária. Consiste em enviar prisioneiros para serem mantidos presos em outros países que não são nem o país do prisioneiro, nem do crime, nem da vítima.
A prática tem uma alegada história “clássica”, de lei grega que autorizava país estrangeiro a seqüestrar prisioneiros de qualquer nacionalidade que interessasse aos gregos julgar e condenar.
Essa história clássica, sempre mal contada e várias vezes lembrada no caso de “tutela excepcional” dos tempos modernos, nada tem a ver com as práticas da CIA, a partir dos anos 1980s e cada vez mais, com o avanço da “guerra ao terror”, de ignorar todos os processos legais contemporâneos de extradição.
De um ponto em diante, a extreme rendition passou a consistir em os EUA obterem legalmente a guarda de algum prisioneiro, em qualquer ponto do mundo, o qual contudo jamais chega a território dos EUA e é entregue a policiais de terceiros países, muitas vezes sem pisar em solo americano, para ser mantido prisioneiro por tempo indeterminado, sem acusação formal e em local oficialmente ignorado (ou em Guantánamo, por exemplo).
Essas prisões são centros “internacionais” de tortura que, de fato, não estão submetidos a lei de país algum. Em 1995, Bill Clinton assinou lei que autoriza a CIA a servir-se da extreme rendition, regulamentando lei assinada por George H. W. Bush em janeiro de 1993 (mais sobre isso em Extraordinary rendition by the United States).
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(Carta Maior)

Esquerda

Operação esquerda lacaniana


Para o autor, “o proletariado não é a priori um sujeito revolucionário”: pode, sim, transformar-se em sujeito de um antagonismo emancipatório, mas isto “exige a presença da construção política”. A expressão “esquerda lacaniana” poderia fundamentar uma ação cuja ética incorpore as críticas ao marxismo procedentes da teoria de Lacan.
O artigo é de Jorge Alemán e publicado no jornal Página/12, 17-02-2011. O texto foi extraído de uma intervenção sua feita no Congresso “Inconsciente e Filosofia. Uma nova maneira de pensar o político”, Colégio da Espanha em Paris, maio de 2010. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
A perspectiva de uma esquerda lacaniana – desenvolvida no meu livro Para una izquierda lacaniana. Intervenciones y textos (Ed. Grama, 2009) – foi questionada de três maneiras, como se pode ler em blogs e sítios da internet. O primeiro questionamento veio dos próprios lacanianos, que me dizem: como vai haver esquerda lacaniana quando é evidente a vocação cética de Lacan em relação a todo tipo de projeto de emancipação política? Ao longo de seu ensino, Lacan formulou uma série de advertências: a revolução é o retorno do mesmo; a crítica à propriedade, à família e ao trabalho reforçam a propriedade, a família e o trabalho; não há nenhuma civilização que consiga se curar de uma pulsão de morte irredutível; aqueles que sonham com as manhãs que cantam estão preparando as condições para que venha o pior; etc., etc., etc. E a isto se pode acrescentar a vocação solitária do próprio Lacan, essa vocação de homem de exceção, seu desgosto pela multidão, pelo número, e sua distância irônica em relação às construções sociais da esquerda. Assim que estou metido numa confusão por ter realizado esta espécie de oximoro, esta espécie de piada que é a expressão “esquerda lacaniana”.
Mas também vi nos últimos anos que muito destes argumentos lacanianos, destas reticências de Lacan para com as construções da esquerda, se deslizavam ideologicamente para um novo tipo de argumentação do individualismo liberal: uma argumentação mais laica, mais sábia, mais cética, mais cínica. E me parece lamentável entregar o ensino de Lacan às coações do individualismo liberal. Nisto, evidentemente, teve muito peso a herança da que provenho: herança de esquerda à qual me considero fiel, o que não implica reproduzi-la, mas tratar de reinventá-la. Assim que minha primeira questão é fazer valer, para a esquerda, aquelas observações de Lacan, com o propósito de que estas pontuações possam gerar na esquerda uma disponibilidade diferente. Além disso, esclareci aos meus colegas lacanianos que em nenhum momento tratei de formar um grupo referido à esquerda lacaniana, nem escola alguma com esse nome, e que eu mesmo não pertenço à esquerda lacaniana. Tudo o que se move em relação à esquerda lacaniana não se abre a nenhum ponto de identificação. Se há algo que me apaixona na operação esquerda lacaniana é o fato de ser refratária a toda identificação.
O outro ataque que vi na internet vem do campo marxista, enquanto esta colocação objetaria a luta de classes, a função histórica do proletariado, sua constituição como sujeito histórico. Nisto, sim, convém tomar a sério muitas observações de Jacques Lacan. Efetivamente, Lacan tem leituras de Marx onde mostra que o único fato de que a força de trabalho seja comprada e vendida como mercadoria não produz no proletariado – nem de imediato nem de maneira imanente – um sujeito suscetível de se transformar em um protagonista de um processo emancipatório. Uma das leituras que Lacan faz da famosa dialética hegeliana mostra que o escravo também goza.
Mas o que é mais importante, para Lacan, é que não há um fundamento que sirva como base de determinação em uma última instância, não há fundamento saturado conceitualmente: sempre há uma brecha, e isto é muito importante para a esquerda lacaniana; sempre há uma brecha ontológica, uma falha ontológica insuperável, incurável, entre o real e a realidade. Já sabem que, no ensinamento de Lacan, o termo real e o termo realidade não se recobrem. A realidade é uma construção simbólico-imaginária que vela o real, e quando este emerge, o faz sempre como deslocamento, como ruptura, como pesadelo, como angústia, como o ameaçador. Portanto, para Lacan não há nunca uma estrutura que possa ser saturada e totalizada conceitualmente. Toda estrutura é socavada a partir de dentro, interceptada, poderíamos dizer, por um resto que lhe é heterogêneo: por isso Lacan nunca aceitou a ideia marxista de uma estrutura que pudesse determinar em última instância a economia política e, portanto, a realidade do capitalismo.
Então, um primeiro ponto que a esquerda lacaniana deveria ter em conta é essa brecha: não é possível conceber a realidade de uma maneira homogênea. Quando Lacan fala do pré-ontológico da psicanálise, não quer dizer que a psicanálise seja deficitária do ponto de visto ontológico, mas que não há fundamento último que garante a totalidade da realidade; que se trata de uma ontologia esburacada, riscada. Esta brecha entre o real e a realidade é absolutamente insuperável, inclusive para a economia política. Sempre há um resto heterogêneo que a totalidade não pode conceitualizar.
Alguns marxistas me acusaram de que meu projeto de esquerda lacaniana pretenderia cancelar a atividade política do proletariado como sujeito histórico: nos meus textos mostro que, precisamente por essa brecha entre o real e a realidade, o que pode surgir – e sempre de maneira contingente, nunca garantida a priori – é um antagonismo, que não é em absoluto equivalente à luta de classes. O deslocamento entre o real e a realidade pode dar lugar a um antagonismo, mas apenas se este se constrói, se se inventa; nunca vem de maneira imanente, garantido. Também não está garantido que esse antagonismo, no caso de que emirja, tenha per se uma orientação emancipatória. Tudo isso exige a presença do que chamamos do político, a presença da construção política.
No marxismo clássico, a luta de classes constituía um a priori objetivo do proletariado como sujeito revolucionário. É preciso dizer que as revoluções históricas nunca tiveram esse sujeito já constituído: sempre foi preciso inventá-lo, às vezes com resultados não muito desejáveis. Em todo o caso, na formulação que eu fiz sob a rubrica “esquerda lacaniana”, a resposta ao marxismo é afirmativa, que nos interessa o antagonismo. E, me parece, isso se desprende dos ensinamentos de Lacan, que a “diferença absoluta” da qual ele fala não pode nunca estar encoberta pelas diferenças introduzidas pelas hierarquias do mercado. Quero dizer: a exploração da força de trabalho é um insulto à diferença absoluta.
Na sociedade lacaniana pós-capitalista, se a houvesse, que não tem nome nem sequer poderia ser nomeada como socialismo, haveria sempre diferença absoluta e, portanto, haveria neuroses, psicoses, transtornos, doentes, angustiados, suicidas; mas essa diferença encontraria por fim um âmbito de desdobramento que não ficaria colonizado pelas diferenças hierárquicas da ordem burguesa de exploração capitalista. Marcar a distinção entre a diferença absoluta e a ordem hierárquica do sistema capitalista não é a mesma coisa que supor um proletariado que tivesse em si mesmo, como classe, a capacidade para desconectar a maquinaria capitalista.
Lei do coração
Nada havia em Lacan que favorecesse a ideia de uma esquerda. Foi assumindo um legado pessoal como tratei de forçar e violentar as coisas para reunir estes dois termos, “esquerda lacaniana...”, como pontos suspensivos que assinalam o caráter conjetural desta formulação. Lacan citou em diversas ocasiões Hegel sobre a lei do coração e do delírio de presunção. Por trás da referência ao homem do prazer, para quem a ausência de um conceito do universal arruína sua relação com os prazeres e os torna mortíferos – nisto Hegel parece um grande teórico da vida contemplativa –, vem a “lei do coração”, onde se coloca em jogo a dimensão do universal: o coração tira de si mesmo a lei, que sai de sua própria subjetividade para encarnar-se como universal. Poderia ser este o caso do homem de esquerda: alguém que já não aceita a teleologia marxista, que já não aceita as leis da história; alguém que tenha compreendido a fundamentação metafísica da base marxista e a tenha desconstruído e que, já como esquerdista desfundamentado, tenta, a partir de sua própria singularidade, transformar a história e com sua singularidade, com sua lei do coração, fazer a lei.
Tanto Hegel como Lacan explicam que, uma vez que a lei está fora de si mesmo, se torna estranha, hostil. A primeira coisa que essa lei faz é matar seus próprios fundadores, contra-atacar aqueles que a constituíram. Na minha própria análise desta esquerda lacaniana, não pude deixar de atravessar a interrogação sobre se eu mesmo não estava cativado por essa lei do coração; sim, enquanto já não aceito que haja leis objetivas como as que Marx postulava, minha esquerda lacaniana não é capturada pela lei do coração. E Lacan se referiu à lei do coração como “a fórmula geral da loucura”: a questão, então, é como fundar um ato político sem paranoia, como fundar uma relação com uma ordem que não seja paranoica, com uma lei que não esteja capturada pelo que Hegel chamou de delírio de presunção, pela qual, quando a lei que alguém mesmo fundou se torna hostil, é declarada inimiga. Ainda não tenho uma resposta para isto, salvo que para correr o risco da fórmula da loucura, da lei do coração, é preciso apostar em uma experiência política.
A emancipação já não pode vir acompanhada da ideia de que há um poder exterior que nos submete. A emancipação tem a ver sempre com o próprio sujeito e com sua própria relação com o super ego. Como explica muito bem Freud, é preciso buscar as razões pelas quais as civilizações absolutamente injustas perduram muitíssimos anos mais no fantasma “Pegam uma criança”, no fantasma masoquista, do que nos aparelhos ideológicos do Estado ou nos mecanismos das sociedades disciplinares ou de controle. É preciso investigá-lo naquelas que classicamente se chamaram servidões voluntárias, no papel que cumpre o gozo na fixação em determinadas estruturas. Por exemplo, o capitalismo é um movimento que muda o tempo todo, mas que está fixado libidinalmente no relançamento da falta e do excesso. Então não vejo possível não transitar pelo risco da lei do coração, e a única maneira que, penso, pode nos prevenir do contra-ataque inevitável da hostilidade da lei que nós mesmos fundamos é aceitar, assim como Lacan propôs em sua leitura de Antígona de Sófocles, que uma experiência ética sempre requer, pelo menos em sua matriz, responder a uma instância que nos demanda algo excessivo; algo que nos supera.
Miséria do excesso
Convém recordar uma tese de Lacan, em relação com o que ele denominou de discurso capitalista, que poderíamos resumir da seguinte maneira: a essência da economia não é econômica. Lacan estabelece uma homologia entre a mais-valia marxista e o que ele chama de mais-de-gozar. Há algo que poderia ilustrar esta homologia. Quando se vai hoje às favelas da Argentina, do Rio de Janeiro ou às cidades perdidas do México, se descobre que a pobreza já não é um menos, já não é uma carência: a pobreza está dominada pelo excesso. Na pobreza, ou melhor, na miséria, há drogas, armas, relógios falsos, objetos. Há todo um regime de circulação de objetos. Houve uma mutação e, da definição de pobreza como não satisfação das necessidades materiais, se passou a uma definição, se vocês me permitem, lacaniana da pobreza, que poderíamos formular nestes termos: a miséria é estar a sós com o mais-de-gozo sem nenhum recurso simbólico. A nova miséria é o consumo do objeto de gozo sem nenhum tipo de laço social que o enquadre.
Isto confirma a hipótese de Lacan sobre o discurso capitalista, que se caracteriza por efetuar um movimento circular onde não se pode estabelecer de entrada corte algum – por isso é um absurdo lógico falar de “luta anticapitalista” –, que se autopropulsa a partir de dentro, é ilimitado e funciona com uma vontade acéfala que não pode ser cortada em nenhum ponto. Guarda uma homologia estrutural com a pulsão, e não com o desejo (penso que Deleuze e Guattari, ao se aproximarem desta questão, não diferenciaram desejo de pulsão). O discurso capitalista assinala uma estrutura que se caracteriza pela impossibilidade de estabelecer em que lugar se pode efetuar o corte.
Por isso, é o discurso que mais convida – como costuma acontecer nas estratégias neoliberais – à sua naturalização, a perder de vista seu caráter histórico, a apagar seu caráter contingente. Pois bem, é preciso marcar uma diferença entre o mais-de-gozo e a mais-valia: pensava-se que a mais-valia, através do processo histórico, seria abolida com o advento de outro modo de produção e de uma nova relação com a propriedade dos meios de produção; o que Lacan ensina sobre o mais-de-gozo é que não há nenhuma realidade histórica que o abole. Caso se tenha que pensar em um projeto emancipatório, este terá que incluir uma permissão para o mais-de-gozar; terá de ser um processo emancipatório que não abole as condições do mais-de-gozar.
A política apagada
Na posição que trato de propor, a construção do antagonismo é inevitavelmente política e não há, a priori, uma recusa do Estado, nem da democracia nem das instituições. Outra coisa é advertir que a democracia liberal rechaçou o antagonismo: as sociedades do consenso forcluíram – para utilizar uma expressão forte de Lacan – o antagonismo, de tal modo que produziram, cada vez mais, o que Lacan chamava de “o ódio pelo gozo do Outro”. No seminário “De um discurso que não fosse semblante” (1971), antecipou que, ao contrário do nacional-socialismo que explicitou sua ideologia racista, iríamos ver, cada vez mais, um ódio racial desconhecido. Em 1969, prognosticou que nosso futuro de mercados comuns europeus nos faz conhecer níveis de racismo até então desconhecidos. A tese de Lacan é que, para ser racista, já não nos falta nenhum tipo de articulação ideológico-política, mas que o racismo se produz na própria constituição do sujeito. Um dos motivos pelos quais esse ódio está aumentando é que as sociedades marcadas pelo paradigma do consenso – onde se disputam interesses corporativos, interesses de grupo, interesses de consumidores, interesses de proprietários, interesses de vítimas, interesses de prejudicados, etc. – apagaram do campo da experiência a dimensão da política.
Se algo caracteriza o que poderíamos chamar genericamente de pós-democracia, é que a política deixou de ser uma experiência subjetiva, e o resultado desta forclusão da política é o aumento do ódio, o aumento do ódio racial que vai desde o “choque de civilizações” até a guerra contra o fundamentalismo, incluindo o ódio ao vizinho. Este ódio sem articulação política é um dos sintomas mais claros de que o antagonismo não opera politicamente. E, como disse antes, este antagonismo deve ser construído politicamente porque não surge imanentemente – nem como acreditava Marx nem como acreditaram depois Michael Hardt e Antonio Negri – das próprias estruturas. Exige a construção política.
Para ler mais:
• ''Psicanálise é a medicina da alma do nosso século''. Entrevista com Elisabeth Roudinesco
• O Outro, o ódio, a linguagem e a violência. Entrevista especial com Jean-Pierre Lebrun
• Melman discute ética. Como tratar o desejo em uma lição
• O direito ao gozo e a violência. Entrevista especial com Mario Fleig
• 'O homem contemporâneo não sabe o que é desejar, só sabe o que é consumir'. Entrevista especial com Jean-Pierre Lebrun
• A função do pai, hoje. Uma leitura de Lacan. Revista IHU On-Line n. 267


(Inst, Humanitas Unisinos)

Pensamentando I

Você viveria sua vida de novo?
Ana Elisa Ribeiro




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Saramago afirma que sim, viveria, repetidamente, ponto a ponto, sua vida de novo, da forma exata como foi. Para ser mais precisa e como dizemos aqui: "sem tirar nem pôr" ou "cuspido e escarrado" (por ora, dispenso os ensinamentos sobre a origem da expressão). E como deve ser bom ouvir isso da boca de alguém. Querido, eu faria tudo de novo. Amor, eu me arriscaria pelas mesmas sendas. Não deve ser fácil ter toda essa disposição. E talvez elas não sejam cem por cento verdade. A vida, como ela é, não passa de ficção, uma narrativa que a gente se conta o tempo todo.

Quantas pessoas diriam "sim" à pergunta? Não sei entre meus parentes e amigos. Talvez meu filho ainda não possa responder. Eu mesma não juntei coragem. O que pensar? Acho que num ponto ou noutro eu remendaria uns espaços em branco. Umas tantas incompreensões ficariam destacadas e eu as reveria. Mania de revisor? O que anda errado aqui? Não sei. Não é que esteja errado. Foi desvio. Onde estava meu caminho que não tive tempo de vê-lo? Nem sempre é questão de enxergar apenas. Vá vivendo, numa levada Lobão: dez anos a mil. Mas ele mesmo já passou dos cinquenta.

Vida de editor. O que a memória faz é editar. O que foi mesmo, nem mesmo a mais fina percepção consegue capturar. Finjo que sei avaliar o que fui e o que sou. Finjo mais ainda saber o que serei. E não consigo responder se faria tudo outra vez. Esta cena antes daquela. O efeito sempre é outro. E se isto? E se deste jeito? "E se" dá sempre em algo irrespondível. Mas dá gosto pensar "e se" de vez em quando. É questão que só incomoda quem não tem certeza de nada. Todo mundo? Dá conforto pensar que se tem qualquer certeza. Por que um caminho está errado? Por que a gente não se sente feliz? Só pode ser. De outro lado, Paulo Leminski, aquele kamiquase curitibano, acertava meus ponteiros: "ninguém nunca chegou atrasado". A frase era algo que o valha, porque minha memória, avessa às decorebas, já editou o texto. Eu estava onde deveria estar, para o que o devir me desse. Assim fica mais fácil viver. Melhor do que pensar de outro jeito.

Não me arrisco a dizer um "sim" muito veemente. Nem sempre. Intermitências. Lembro daqui e dali de uns desassossegos. Uns episódios, esparsos, tudo bem, mas que, provavelmente, teriam mudado tudo, inclusive (e principalmente) o lugar do ápice, a epifania e, mais, a conclusão. The end não seria este. Seria um outro, e termino por julgar: melhor?

O fato é que é linear. Por mais que me deem aulas de física e me jurem que o tempo faz curvas, não enxergo com tanta nitidez o ciclo se fechar. Só depois. E aí, já era. Não adianta, adianta? Quantas vezes quis ver mais adiante para ver se valia a pena? Quantas vezes essa vontade (impossível) me doeu? Quantas vezes tive uma inveja doentia das simulações de computador? Diante de uma tela, posso ver se a disposição dos quartos ficará boa ou se caberão todos os meus móveis. Não, assim não dá. Melhor ficar como estava. Que imenso desejo de que existisse uma tecla "undo", o ctrl+z, desfazer. Se não colou, back.

Inveja do "delete", uma imensa mágoa porque ele não existe entre os escombros da minha memória. Eu apago, mas, em geral, o que minha mente faz é recontar tudo, reelaborar, de modo que nem eu posso mais confiar na narrativa dos "fatos" que penso ter vivido. Quem faria isso melhor do que um ser humano?

Assisto ao Efeito borboleta e quase surto. Mais e melhor do que ele, gasto uma tarde assistindo ao Irreversível e meus dias ficam contados. E agora? Não vou mais sair de casa, pensando na importância (e no impacto) de cada pequena escolha, mesmo quando ela é imperceptível para mim. Mas se eu não sair... também estarei escolhendo um caminho.

E aquela gana irrefreável que dá nas pessoas quando acontece uma tragédia? Logo que o avião cai, o rio transborda, o carro bate, a encosta cede, vêm todos lembrar das últimas palavras, que soam, então, como previsão, profecia e aviso. Bem que ele disse que queria se despedir das plantas. Ela abraçou o cachorro e disse à vizinha que não sabia se iria voltar. Minha mãe me beijou diferente hoje pela manhã. Ctrl+z.

Eu não sei se viveria tudo de novo, deste jeitinho. Provavelmente quereria fazer o caminho que aparecia logo ao lado, para ver onde iria dar. E se pudesse concluir algo, faria ao gênio da lâmpada aquele terceiro pedido.

Eu compraria aquela passagem? Naquele dia? Para aquele lugar? Eu diria aquele sim ou aceitaria aquele convite? Eu daria ou não daria as mãos? Recusaria aquele beijo? Leria aquele capítulo? Furaria o sinal? Beberia mais aquele gole? Deixaria de sair? Eu acho, no final, que não saberia mesmo me repetir.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 18/2/2011
(Digestivo Cultural)

Pensamentando

A história de Gerhard Shnobble: incidentais egípcios
Feb 20th, 2011
by cesarkiraly.

Não é preciso crer na revolução das essências para acreditar no revolucionário. Ainda me aproximo muito mais da revolução da imagem, do que das substâncias. Não me importo com o suposto organismo das sociedades, não me afeto pela descrição do reagente químico que faz das sociedades algo outro, melhor ou pior. Mas não é por hipocrisia. Mas por um sentido um pouco mais fino de ceticismo. Não preciso crer no invisível. Ou não preciso crer no que é menor do que um pigmento para ver a possibilidade de mudança. Afinal, não há razões para se tomar aquilo que não se vê como invisível, mas tão somente como aquilo que não se vê.
§
O velho Galileu nos ensinou a revolução, e antes mesmo das grandes distinções tolas entre ciências do homem e ciências da natureza, e antes da sucessiva colonização das ciências do homem pelas ciências da natureza, fenômeno esse que nos dá a expectativa de ver explosões de transformação nas sociedades, pela palavra quis dizer que podemos imaginar alguma coisa com movimento e ter movimento nessa imagem. O destino da imaginação de Galileu era bastante pretensioso, e ele sabia que ver não é apenas ver, mas que ver é uma expectativa de movimento; a imagem do sol imóvel contraposto a translação dos planetas, por ser uma boa imagem, por si move. A percepção de que uma imagem que se move é uma grande coisa, é efetivamente uma grande coisa, mas melhor ainda é chamá-la, enquanto fenômeno, de revolução.
§
Prever uma revolução é algo complicado, porque não existe uma constituição revolucionária. Os mesmos elementos de imagem, combinados, podem restar parados. E a mudança na relação entre eles, ou no sentido do tempo, para a combinação das imagens pode dar início ao processo revolucionário. Julgar que uma imagem terá movimento, não faz dela uma imagem com movimento. Por isso o espanto de Galileu, a boa surpresa. Pode-se dizer que a revolução é uma questão instituída, mas do instituído não se segue, necessariamente, o movimento. Dizer, depois do início de uma revolução, que seus elementos constitutivos explicam o movimento é apenas se referir a qualquer coisa. O artifício do historiador, aquele “veja, está tudo aí” não é de grande valia para se entender uma revolução, mas apenas para se entender o modo pelo qual se entende os elementos constituintes da mesma. Como também não serve o artifício do economista “veja, com esses números”. Uma revolução não pode ser compreendida por artifícios, mas apenas por uma filosofia dos artifícios. Uma filosofia do “veja, só agora podemos ver, porque agora a imagem se move”.
§
Ainda que possamos falar em uma dialética da imagem, a dialética, em sua tradição, sempre foi uma filosofia da distinção da imagem. Deixando a imagem de um lado e a essência do outro. Como todo pensamento da essência, a dialética buscou poder dizer os elementos constituintes de uma revolução, e foi uma frustração não poder dizer a revolução por elementos históricos e econômicos. Mas a frustração também foi sentida, em momentos distintos, pelos regularistas sociais. A superioridade intelectual da dialética frente ao regularismo a fez desenvolver alegorias para explicar a impossibilidade de predição do fenômeno revolucionário. A melhor delas foi aquela que assumiu a intempestividade do tempo revolucionário, a idéia de que de alguma forma a história humana está sempre fora dos seus eixos, e para isso a dialética se uniu ao trágico. A famosa quebradura do tempo no 18 Brumário de Marx não é trágica, pois nada naquilo se reconcilia com nada, a história não salta para o eixo, mesmo depois de dois ou três tapas, mas concerne ao trágico. A tragédia e a farsa, o cedo e o tarde demais, o banho de sangue e o paraíso dos carrascos etc. não predizem a revolução, mas alegorizam a impredizibilidade.
§
Will Eisner, por outro lado, entendeu melhor a natureza instituinte do tempo, bem como, a desnecessidade de alegorias. Em 1948, no dia 5 de Setembro, ele publicou A história de Gerhard Shnobble. Digamos que essa grafic novel traz uma bela e cética alternativa às finalidades alegoristas. Antes de qualquer coisa, Eisner faz uma advertência, diz-nos que não é uma história engraçada e nos pede para não rir.
§
Shnobble é um ser humano comum, filho de pais comuns e criado para ser comum. No seu oitavo aniversário de vida escorrega do telhado […] ao invés de se esborrachar no chão, ele flana lentamente até o chão. Seu pai, assustado com aquela demonstração incomum, tem uma reação comum, dá uma surra em Shnobble o advertindo para nunca mais voar. A surra e as advertências fazem Shnobble esquecer a coisa toda.
§
Já lá pelas tantas de sua maturidade, o jovem Shnobble é recompensado por sua obediência como bom empregado do banco, em que passou a trabalhar. Interessante é que os capitalistas estão sempre em quatro, e falam sempre todos juntos em uníssono. Nesse caso, eles falam que pela dedicação de 35 anos de trabalho, o nosso voador reprimido seria promovido a guarda noturno. Como era de se prever as coisas não ficam bem para o recém promovido vigia, o banco é assaltado e Shnobble leva um socão na cabeça, que o desacorda. É despertado dentro do cofre do banco, pelos quatro capitalistas uníssonos, sob protestos de explicações pelo acontecido. Não é preciso dizer que o nosso herói é demitido. E inconsolável passa a vagar pelas ruas da cidade.
§
Uma trama paralela é iniciada na grafic novel. O Espírito – que assim é chamado, porque representa o espírito da cidade, uma espécie de Burggeist – acompanha a perseguição policial de alguns bandidos que estão escondidos num prédio. O cerco policial, contudo, esquece da possibilidade de fuga por helicóptero. O Espírito, ciente do perigo, corre para o local para impedir a escapada. […] Ao mesmo tempo Shnobble vaga pela cidade, buscando por sentido, balbuciando que queria fazer alguma coisa grande, que queria ser importante, até que, como num esclarecimento freudiano, lembra-se, “eu posso voar!”. […] O espírito sobe o elevador ao mesmo tempo em que o nosso voador amnésico recém curado, pois ambos rumam para o telhado, O Espírito para impedir a fuga, e Shnobble atraído pela multidão, cujo motivo de aglomeração ignora, que seria a vislumbradora de seu primeiro vôo público. […] São dois bandidos, enquanto o herói da gravata vermelha dá uma surra num dos bandidos, o outro o espreita fazendo mira com o revolver […] Shnobble salta do prédio e lindamente flana, mas se dá conta de que ninguém o está percebendo, faz algumas piruetas e tenta se aproximar do público […] O bandido que faz mira n’O Espírito acerta Shnobble.
§
Como um novo filósofo da história, numa metade de página branca, com apenas o cadáver desastrado ao canto, Eisner termina assim a história: “Então, sem vida, Gerhard Shnobble flutuou até a terra. Mas não chore por Shnobble. Antes derrame uma lágrima pela humanidade. Porque ninguém na multidão viu, ou suspeitou, que naquele dia Shnobble tinha voado”.
§
Posto que a revolução é uma imagem que se move. Não uma constituição que ganha vida. Mas uma instituição que adquire sentido. Cabe apenas, no processo que se segue, ao vôo, zelar para que a morte do tirano – ou apagamento, é a mesma coisa – não seja apenas um modo de aprofundar a servidão. Afinal de contas, não devemos gastar as nossas lágrimas com a humanidade, que pouco merece, mas com Shnobble, que, sabendo voar, como Eisner, marcou com seu sangue e tinta um novo sentido pelo qual vale a pena viver. Cabe ir à praça e comemorar, mas com olhos bem atentos para não perder a liberdade-já-perdida, ao invés de instituir uma nova. Spinoza um dia pensou isso, e o descreveu em seu Tratado Político. Se for para ter uma alegoria, que seja aquelas dos homens dos saltos frustrados e não a das matilhas sedentas por sangue. Afinal, morte e liberdade nem sempre se confundem.
(Modos de Fazer o Mundo)

O. Médio

A primavera árabe se espalha
De onde o continente africano encontra o oceano Atlântico, no Marrocos, cruzando a extensão dos mares Mediterrâneo e Vermelho, englobando a península arábica para atravessar o golfo Pérsico até os limites da Ásia, no Irã, mais de 300 milhões de pessoas vivem em uma região sob ameaça de convulsão social decorrente de eventos que podem representar a maior redistribuição de forças no tabuleiro geopolítico global desde o fim do comunismo no Leste Europeu. A expressão barril de pólvora nunca fez tanto sentido. O artigo é de Wilson Sobrinho.
Wilson Sobrinho (*)
A Primavera Árabe, como parte da imprensa tem se referido aos acontecimentos iniciados em dezembro na Tunísia e que na metade de fevereiro derrubaram o governo do Egito, transformou-se em uma rebelião tão grande que agora já transborda os limites daquele que é um dos verdadeiros parâmetros de grandeza do planeta Terra, o deserto do Saara.

De onde o continente africano encontra o oceano Atlântico, no Marrocos, cruzando a extensão dos mares Mediterrâneo e Vermelho, englobando a península arábica para atravessar o golfo Pérsico até os limites da Ásia, no Irã, mais de 300 milhões de pessoas vivem em uma região sob ameaça de convulsão social decorrente de eventos que podem representar a maior redistribuição de forças no tabuleiro geopolítico global desde o fim do comunismo no Leste Europeu. A expressão barril de pólvora nunca fez tanto sentido.

Argélia – Os argelinos primeiro foram as ruas para protestar contra a alta no preço dos alimentos em janeiro último. Os confrontos deixaram um saldo de 5 mortos e 800 feridos. No sábado (12/02) depois da queda do governo egípcio, mais protestos foram convocados pela oposição. Duas mil pessoas compareceram às ruas da capital Argel. 30 mil soldados os esperavam. Relatos dão conta de que 350 pessoas foram presas na ocasião. Mais protestos estão programados para este final de semana, apesar do estado de emergência, em vigor desde 1992, que proíbe manifestações públicas no país. Na segunda cidade da Argélia, Orã, por exemplo, as autoridades deram permissão para manifestações, contanto que aconteçam em locais fechado.

A dissolução da lei de emergência e a saída do presidente Abdelaziz Bouteflika são algumas das bandeiras dos manifestantes. Bouteflika, que está no poder desde 1999 e recentemente alterou a regra que limitava o número de vezes que pode concorrer à reeleição, anunciou que deverá revogar a lei de emergência em semanas. Nos anos 1990, uma guerra civil ceifou entre 150 e 200 mil vidas no país.

Arábia Saudita – Parcos foram os eventos até agora no país que guarda em seu subsolo um quinto das reservas de petróleo do mundo e que é o alicerce maior dos EUA no Oriente Médio. E poucos acreditam que o pavio saudita possa ser acesso, mas diante de tanta instabilidade ninguém ficará surpreso caso isso aconteça.

Neste sábado (19/02), membros da minoria xiitas do país teriam organizado uma manifestação pacífica e silenciosa em apoio aos seus pares de Bahrein, relata a agência Reuters.

Bahrein – As manifestações começaram no dia 14 de fevereiro, três dias depois da queda de Cairo. Quatro pessoas morreram quando as forças do governo tentavam retirar manifestantes da praça Pérola, na quinta-feira (17/02), em Manama, a capital dessa ilha do golfo Pérsico que abriga a Quinta Frota da marinha dos EUA. No enterro dos mortos, mais violência resultou em pelo menos 50 feridos. O governo, que primeiro pediu que os manifestantes abandonassem as ruas, passou chamar o diálogo, rejeitado pelas forças de oposição sob o argumento de que não há conversa possível com o exército nas ruas.

Com 1,2 milhões de habitantes apenas, essa ilha do golfo Pérsico espremida entre o Catar e a Arábia Saudita está longe de ser a mais desimportante das repúblicas em convulsão. Analistas alertam que Bahrein pode representar a porta de entrada da Arábia Saudita na crise. Já que as demandas da maioria xiita do país são semelhantes a dos xiitas árabes, minoria concentrada na região leste do país.

Egito – Uma semana depois da queda de Hosni Mubarak – o mais espetacular dos eventos alcançados pelos manifestantes nessa onda de revolta árabe até o momento – milhares de pessoas voltaram à praça Tahrir para celebrar o feito. Mas a manifestação pode ser compreendida também como um sinal de alerta às forças armadas que tomaram o poder depois da saída de Mubarak. Depois de derrubar um regime de 30 anos, em 18 dias de protestos, os egípcios sabem que sua revolução ainda não terminou até que o poder provisório dê lugar a um com regras bem claras e estabelecidas.

Iêmen – no sul da península arábica, esse país tem, segundo a revista britânica The Economist, o maior potencial para ruptura social entre todos os envolvidos na revolta até agora. Há 32 anos no poder, Ali Abdullah Saleh anunciou em início de fevereiro que não irá buscar um novo mandato em 2013, nem irá apontar seu filho como herdeiro político. O comprometimento veio depois de uma manifestação que levou 16 mil pessoas às ruas da capital, Sana, pedindo a queda do governo.

No dia seguinte ao anúncio, 20 mil pessoas voltaram às ruas da capital e de outras cidades para reforçar o pedido de fim do regime. Depois da queda de Mubarak, no Egito, manifestações diárias vem acontecendo no Iêmen. A maior delas, na sexta-feira, 18, quando milhares de manifestantes antigoverno foram às ruas da capital. Reprimidos pelo exército e por ativistas pró-governo, que chegaram a atirar uma granada em um grupo de pessoas, a contagem de mortos entre os manifestantes já chega a 12.

Irã – Embora aplauda o levante popular em outras partes do mundo islâmico, Teerã – que divide com a Líbia o posto de maior inimigo dos EUA na região – não quer que o mesmo aconteça em seu território. Por outro lado, a oposição pretende aproveitar a onda de rebeldia para recobrar forças e voltar a desafiar o governo de Mahmoud Ahmadinejad.

Dois manifestantes foram mortos na segunda-feira, dia 14, na capital, em confrontos envolvendo grupos de oposição e forças do governo. Como resposta, a oposição está chamando para domingo, dia 20, uma manifestação contra o governo, que por sua vez colocou os líderes oposicionistas em prisão domiciliar.

Jordânia – Outro país onde as manifestações começaram em janeiro, fomentadas por altas nos preços de comida e energia. Em 28 de janeiro, 3,5 mil ativistas tomaram as ruas da capital, Amã, exigindo a saída do primeiro-ministro e uma ação mais forte do governo em relação ao desemprego e a alta do custo de vida. O rei Abdullah II foi rápido ao intervir e a dissolução do governo foi anunciada em começo de fevereiro. As manifestações seguiram, agora com a oposição pedindo reformas políticas e democracia.

O único confronto registrado até agora na Jordânia aconteceu na sexta-feira, 18 de fevereiro, quando um grupo de manifestantes favoráveis ao governo atacou os oposicionistas com paus e pedras, até a polícia intervir.

Líbia – Excluindo-se o rei da Tailândia e a rainha da Inglaterra, ninguém está no poder há tanto tempo quanto Muammar al-Gaddafi. O homem que comanda a Líbia desde o fim dos anos 1960 viu a revolta oposicionista ser incensada pelos eventos do Egito e da Tunísia. Desde o dia 15 de fevereiro, terça-feira, as manifestações contra Gaddafi são diárias no país principalmente na cidade de Bengasi, a segunda maior do país. Segundo agências internacionais, mas de 80 pessoas já teriam morrido em confrontos entre manifestantes e forças do governo.

Em Trípoli, porém, não há relatos de grandes protestos até o momento e e o único evento relacionado à crise foi uma resposta de seguidores do governo ao protestos convocados pela oposição. Há relatos de que o governo teria bloqueado o acesso à internet no país, ou pelo menos a sites como Facebook e Twitter, armas reconhecidas dos oposicionistas em outros países.

Marrocos – Os protestos em massa no país ainda não ganharam as ruas, mas estão prestes a fazê-lo. A oposição está convocando uma manifestação neste domingo (20/02). Organizados via Internet os manifestantes afirmam não ser um movimento antimonarquia e que apenas querem “um governo que represente as pessoas e não a elite”, como descreveu para a Associated Press nessa semana um dos membros do grupo chamado 20 de Fevereiro.

Tunísia – Quando Mohamed Bouazizi colocou fogo em si mesmo, no dia 17 de dezembro de 2010, como um ato de desespero depois de ter suas mercadorias confiscadas pelas autoridades policiais da Tunísia, ele não teria como imaginar o que se seguiria. O ato do jovem vendedor de rua serviu de gatilho para a Primavera Árabe. Menos de um mês depois, o presidente de mais de 24 anos no comando do país africano havia sido colocado para correr e os portões do inferno haviam sido abertos para todos os déspotas da região.

Mais de 200 pessoas morreram no processo, que ainda não acabou. Apesar da mudança de governo, os manifestantes tunisianos seguem mobilizados para garantir que antigos membros do governo não voltem à cena e que a transição para a democracia ocorra de fato.

(*) Correspondente da Carta Maior em Londres.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

O Blogue da Bellzinha...

É o meu amorzinho!

Minist. da Cultura

Revés no Ministério da Cultura
• Cultura
Gestão da ministra Ana de Hollanda sinaliza para postura conservadora
17/02/2011

Leandro Uchoas
do Rio de Janeiro (RJ)

Durante a campanha da presidente Dilma Rousseff (PT) à Presidência da República, em 2010, um dos setores sociais que mais se mobilizaram por sua candidatura foi aquele ligado à produção cultural. A política implementada pelos ministros da Cultura durante o mandato do ex-presidente Lula, Juca Ferreira e Gilberto Gil, era vista como um dos braços mais progressistas do governo. Considerando o forte enraizamento social dos produtores de cultura que apoiavam o governo, sua organização, nas ruas, em apoio a Dilma, e o significativo acesso dos militantes da Cultura Digital às mais variadas formas de comunicação, não há como negar o papel imprescindível desse setor na eleição da candidata do PT. Quando a campanha de José Serra (PSDB) adotou uma tática difamatória pela internet, por exemplo, foram essas pessoas que, por militância, saíram em defesa da petista.
Eleita, Dilma demorou a escolher o responsável por assumir o MinC. Mais de 20 nomes foram cogitados, e o movimento cultural pressionava pela manutenção de Juca, ou de outro nome próximo à mesma política. A presidente surpreendeu quando anunciou a escolha de Ana Buarque de Hollanda para a pasta. Com experiência administrativa de pouca expressão, teria sido escolhida pela proximidade com o grupo político que orbita em torno do ator petista Antônio Grassi, além de ser mulher e carioca – até então, o Ministério tinha pouca presença do Rio de Janeiro. Grassi foi nomeado por Ana presidente da Fundação Nacional das Artes (Funarte), onde já havia atuado na gestão anterior, e de onde foi demitido por Gilberto Gil, em 2007. Movimentos como os de Software Livre, Cultura Digital e Pontos de Cultura estranharam a escolha de Ana, mas mantiveram o apoio tácito ao governo. Desde que assumiu, entretanto, a nova ministra tem sinalizado em direções que têm sido consideradas, por parte do movimento, mais conservadoras.
Primeiro, ela deu declarações de que a Reforma na Lei dos Direitos Autorais “foi discutida com a sociedade, mas não se chegou a consensos. Precisa ser novamente colocada em discussão”. O processo de discussão da reforma tomou, pelo menos, seis anos. Diversos seminários e congressos foram realizados com a participação de uma ampla gama de setores sociais. Juca deixou um projeto pronto ao novo governo. Ana de Hollanda já dera pistas de ter um posicionamento menos ousado no texto que, em 2008, ela escreveu no blog de Grassi. “Com o surgimento da internet, celulares, com seus provedores, softwares, empresas de telefonias e grandes grupos que englobam tudo acima, a criação é o elo mais fraco e fácil de se neutralizar com o irônico discurso de ‘democratização do acesso’”, postou.
Uma segunda sinalização considerada negativa pelo movimento de Cultura Digital foi a declaração de que o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) não precisa de supervisão estatal. O Ecad é uma instituição privada criada por lei federal (5.988/73), o que para muitos significa uma aberração jurídica. Detém o monopólio da arrecadação e da distribuição dos direitos autorais. Pratica a cobrança rigorosa do dinheiro – inclusive em eventos como festas juninas ou infantis – e é pouco transparente na utilização desses recursos. Há setores que defendem sua extinção ou substituição. Os mais moderados apoiam apenas o óbvio, a supervisão estatal, que a ministra agora diz ser desnecessária.
No início deste mês, a ministra se reuniu com o advogado Hildebrando Pontes, vinculado ao Ecad. O encontro foi visto com muita preocupação pelos setores mais progressistas da discussão do direito autoral, ainda não recebidos pela ministra. De posições muito conservadoras, Hildebrando é cogitado para chefiar a secretaria de direito autoral. “Seria como nomear o Ronaldo Caiado [deputado federal da bancada ruralista] para o Ministério da Agricultura”, compara Pablo Ortellado, coordenador do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação da Universidade de São Paulo (GPOPAI/USP). Hildebrando já declarou que, para ele, não deveria existir o domínio público – o direito autoral deveria durar para sempre. Ele fez a defesa do Ecad em centenas de processos em distintos tribunais, entre os quais o Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Foi, entretanto, uma outra medida de Ana de Hollanda a que mais polêmica gerou entre os setores culturais. O MinC substituiu, repentinamente, a mensagem de rodapé em seu site. O Ministério retirou a referência ao Creative Commons, modelo de licenciamento alternativo escolhido na gestão Gil, substituindo-a pelo texto: “O conteúdo deste site, produzido pelo Ministério da Cultura, pode ser reproduzido, desde que citada a fonte”. Sem grandes consequências práticas, a medida tem valor simbólico, com implicações políticas e eventualmente jurídicas. “Essa frase causa diversos problemas. A nossa lei de direitos autorais é uma das mais restritivas do mundo e diferencia a ‘reprodução’ da ‘publicação’. A frase trata apenas do direito de reprodução de modo que alguém que republique os conteúdos do site do MinC no seu próprio site não está coberto por ela e viola direitos autorais”, explica Ronaldo Lemos, diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV e do Creative Commons Brasil.
Importante considerar que o Ministério de Gil e Juca era famoso, na esplanada, pelos gastos além do orçamento. O programa de maior projeção social e política do período, o Cultura Viva, por exemplo, frequentemente gastava além do planejado. Em 2010, em parte devido à campanha eleitoral, que inviabiliza certos gastos, vários pontos de cultura (unidades de produção cultural vinculadas ao programa) ficaram sem pagamento. Ana visa corrigir essas distorções, profissionalizando a pasta. E o governo Dilma deu sinalizações aos ministérios de que em seu primeiro ano pretende conter gastos.
Ortellado considera que, nesse enfrentamento, uma das ameaças mais graves seria um possível revés na política externa brasileira. “O Brasil era, de longe, o mais progressista no que diz respeito a Direito Autoral. Passou a pautar mundialmente, através do Itamaraty, a discussão do Direito Autoral vinculada ao direito de acesso, e não ao direito do autor. Até a Secretaria de Estado dos EUA chegou a criar um seminário para discutir as questões colocadas pelo Brasil”, lamenta. Os militantes já criaram um “blog protesto” na internet e buscam se mobilizar, articulando-se inclusive com os Pontos de Cultura.

(Brasil de Fato)

Cinema

Bandidos do Bem Mocinhos do Mal




Arte e Cultura

Halley Margon
Ter, 15 de Fevereiro de 2011 10:05
"Antes havia um leitor. Hoje há um consumidor que se recusa a fazer esforço [de compreensão]. É como se a ignorância fosse uma virtude."
Inácio Araujo, crítico de cinema
Se pudéssemos enxergar o bem e o mal como categorias sem impurezas talvez devêssemos reposicioná-las no quadro exposto em nossa bem fornida sala de estar. Porque quase nunca estão onde deveriam estar.
Há filmes que por meio da ironia revelam o quanto na cidade moderna (e pós-moderna) as instituições que deveriam defender o bem se comportam como representantes do mal e, contrariamente, como figuras tidas como expressão do mal agem de acordo com as mais basais noções do bem. Alguns faroestes procedem dessa maneira e há uma boa safra de filmes mais ou menos recentes, de variados gêneros, fazendo o mesmo.
Em "Poder Absoluto" de Clint Eastwood, 1997, um sofisticado ladrão de jóias (o próprio Eastwood) testemunha por acaso o assassinato meio que acidental da jovem esposa de um milionário pelos seguranças do presidente dos Estados Unidos (Gene Hackman). A partir de um tão inusitado duplo acidente de trabalho o thriller delineia um nítido posicionamento moral. Reduzida à condição de conto moral a trama poderia estar contida na seguinte frase: o bandido age como mocinho e o mocinho como um chefe de quadrilha. Ou, de outra forma: os representantes do poder, da lei e da ordem rotineiramente são os verdadeiros crápulas. Condensado a um tal ponto o filme certamente perderia eficácia e interesse. Mas se observado para além de seus atributos de mero entretenimento é esta a idéia que conduz a narrativa.
Pelo menos desde "No Tempo das Diligências" de John Ford, 1939, mas certamente desde muito antes, o cinema, como toda arte, investe boa parte de suas energias na construção de tramas com o mesmo sentido. Para o crítico André Bazin, por exemplo, o gênio formal de Orson Welles não escamoteia a "mensagem intelectual e moral" de seus filmes, muito pelo contrário. Mas, alerta, se "fossem apenas a expressão desse ponto de vista (moral), não passariam de filmes de tese ou melodramas" (em "Orson Welles", Jorge Zahar Editor, 2006).
Num outro livro Bazin diz que o filme de Ford "nos mostra que uma prostituta pode ser mais respeitável do que os beatos que a expulsaram da cidade..., que um jogador debochado pode saber morrer com a dignidade de um aristocrata, ... (que) um fora-da-lei perseguido... (pode) dar provas de lealdade, de generosidade, de coragem e de delicadeza, enquanto um banqueiro... foge com o cofre" ("O Cinema – Ensaios" – Editora Brasiliense, 1991).
Noutro dos filmes de Eastwood, o faroeste "Os Imperdoáveis", de 1992, pelo qual Bazin certamente teria se encantado (Bazin – que morreu precocemente, em 1958, aos 40 anos de idade – escreveu pelo menos três extraordinários artigos nos quais caracterizava o faroeste como "o cinema americano por excelência" – estes três pequenos ensaios estão no livro citado acima), o mesmo esquema está presente. Desta vez com força dramática muito mais poderosa e um resultado estético simplesmente espetacular. Não há quem não tenha se deliciado com a saga do velho pistoleiro (assassino de aluguel) aposentado William Munny (Eastwood), contratado pelas prostitutas da sombria e fria Big Whiskey para vingar um delas, contra o xerife da cidade (o mesmo Hackman de "Poder Absoluto").
Gângsteres
Michael Mann é outro dos atuais diretores que escolhem tratar dessa inversão escondida sob a superfície brilhosa da cidade. É o caso de "Inimigos Públicos" (com Johnny Depp), de 2009, na qual acompanha a trajetória do famoso gângster John Dillinger.
Abro um parêntesis apenas para lembrar que Mann é o diretor de "O Último dos Moicanos", de 1992, no qual se pode assistir a uma das sequências cuja montagem e harmonia com a trilha sonora certamente poderia figurar entre as mais bem sucedidas e geniais da história do cinema. Falo daquela que se inicia no exato momento em que Daniel Day Lewis dispara contra o oficial britânico que está sendo queimado na fogueira e se encerra, quase na última cena, com a morte de Magua, o guerreiro yuron, por Chingachgook, justamente o último dos moicanos ("the last of moycan people"). O filme, na realidade, parece querer fincar seus procedimentos exatamente neste que é um dos elementos essenciais do bom cinema: a montagem. Sobre o qual, respondendo a Bazin, Orson Welles dizia ser "o único momento em que (o diretor) controla completamente a forma do filme". E completava: "Para o meu estilo, para minha visão do cinema, a montagem não é um aspecto, é o aspecto". A montagem era quase que a essência do filme também para outro dos seus gênios, o russo Sergei Eisenstein.
Mann é também o diretor de "O Informante" (com Russel Crowe e Al Pacino), sobre a guerra da indústria tabagista contra um de seus ex-executivos que decide botar a boca no trombone e denunciar seus procedimentos criminosos contra a saúde pública em geral e os viciados em nicotina em particular. Procedimentos em tudo semelhantes aos adotados pelos grandes cartéis das drogas ilícitas – algumas das quais são infinitamente menos maléficas que o famigerado cigarro.
E Nós, os Inocentes Espectadores de Cinema?
Mas, nós, os espectadores como representação do grande público (ou do "espectador médio", nas palavras de Bazin) que vai ao cinema, será que nos damos conta do que está sendo dito e destacado na tessitura dos filmes? E destaco o cinema dos outros meios porque de todas as formas de expressão artística o cinema é provavelmente aquela que mais incorpora ao desenrolar dramático o entorno, a ambientação, os elementos que, afinal, se servem para nos seduzir e convencer servem também para desviar o foco do olhar e desorientar a percepção quanto aquilo que está sendo dito (o quê da coisa). (Talvez tenha sido este o princípio utilizado por Lars von Trier ao abolir todos os elementos cenográficos em "Dogville" – como sabemos, a cidadezinha do filme é representada apenas por linhas brancas pintadas no chão.)
O que, por exemplo, se pode enxergar para além do espetacular aparato de imagens e sons que envolve e praticamente acoberta a trama de um filme como "A Origem"?
Noutras palavras, qual o significado do drama (seja o mostrado no cinema, seja na literatura ou qualquer outro meio) para a formação da consciência média contemporânea?
Incorporamos o alerta e tiramos dele as devidas lições?
Na realidade, tenho tremenda dificuldade de acreditar que exista de fato outro significado que não o de produto de consumo rápido e imediato. Puro entretenimento, mero passatempo. Por mais que se construam como obra de arte e mesmo quando tragam quase que explicitado um posicionamento moral.
Evidentemente não se pode responsabilizar o filme de qualidade pela qualidade do espectador que o assiste. É claro que um filme como "Cidadão Kane" está "decididamente acima da idade mental do espectador americano", como diz Bazin. Na realidade, considerada a idade mental dos prósperos cidadãos do mundo pós-moderno, não será preciso ser um Orson Welles para realizar filmes definitivamente inatingíveis e inócuos. Bastará que se faça um thriller com algum conteúdo.
Nós, os famigerados espectadores, temos às vezes uma infinita capacidade de ignorar aquilo que nos incomoda e de deglutir somente o que não nos exige esforço.
Iñarritu e o Espectador
Toda vez que vejo declarações como a do excelente cineasta mexicano Alejandro González Iñarritu de que "é preciso entreter, contar histórias que mantenham o espectador atento" fico pensando se o espectador não é visto como um autômato sem vontade própria, cuja atenção é mantida pela hábil manipulação da história por parte do autor e não por resultado do seu próprio desejo. Pergunto-me simultaneamente qual terá sido o esforço de James Joyce para capturar a atenção do leitor de "Ulisses" que não o de simplesmente instigar-lhe a própria curiosidade e respeitar sua inteligência.
(Fund. Lauro de Campos)

Betando

JOGO DECISIVO
Pisei com firmeza o gramado do Engenhão, no Rio de Janeiro. Vestia a camisa 101 do Flamengo. A torcida rubro-negra veio ao delírio. E gritava:”101!101!” Preferia que gritassem o meu nome e não o da minha idade,porque me lembrava que foram 101 os mortos pela tropa de choque da PM paulista no ex-Carandiru.Notei o olhar arregalado de Ronaldinho Gaúcho, a máscara de choro do Ronaldo Angelim (Flamengo) e Everton(Botafogo). O uruguaio Loco Abreu veio me suplicar no seu espanhol enrolado. Se ajoelhou : “não jogue,o senhor é muito idoso,não vai agüentar”. Mas eu queria corresponder à confiança do técnico Vanderlei Luxemburgo, que ao me entregar a camisa 101 avisou para o time todo : o primeiro passe vai ser pra ele. Pode sair o gol mais rápido da Taça Guanabara”. Os jogadores,constrangidos, limitaram-se a murmurar:”sim,professor”.Bola rolando no Engenhão. Ronaldinho Gaúcho passa a bola em profundidade pra mim. Saio correndo, mas as pernas começam a não querer obediência.A bola,eu preciso alcançar a bola. Não chego nem perto. Caio no gramado, de braços apertos e barriga pra cima.Dor forte no peito.Vejo de baixo pra cima os jogadores dos dois times olhando pra mim, alguns chorando, outros à beira do desespero.Foi então que ela apareceu.O corpo se movia no vestido branco como Chico Buarque descreve o movimento das mulheres nos livros dele. Quem era ela ? Não tinha mulher bandeirinha nesse jogo. Seria médica ? ou uma repórter de rádio ou TV?A dor no peito cresceu. A imagem dela cresceu pra cima de mim. Seus longos cabelos envolveram o meu corpo e sua boca me presenteou com o mais gostoso beijo de língua de toda a minha existência. Foi aí que tive pela primeira e única vez na vida a grande revelação :a morte é linda.
RobertoMenezes

Pensamentando

OS ÚLTIMOS DIAS

Que a terra há de comer,
Mas não coma já.
Ainda se mova,
para o ofício e a posse.
E veja alguns sítios
antigos, outros inéditos.
Sinta frio, calor, cansaço:
pare um momento; continue.
Descubra em seu movimento
forças não sabidas, contatos.
O prazer de estender-se; o de
enrolar-se, ficar inerte.
Prazer de balanço, prazer de vôo.
Prazer de ouvir música;
sobre o papel deixar que a mão deslize.
Irredutível prazer dos olhos;
certas cores: como se desfazem, como aderem;
certos objetos, diferentes a uma luz nova.
Que ainda sinta cheiro de fruta,
de terra na chuva, que pegue,
que imagine e grave, que lembre.
O tempo de conhecer mais algumas pessoas,
de aprender como vivem, de ajudá-las.
De ver passar este conto: o vento
balançando a folha; a sombra
da árvore, parada um instante
alongando-se com o sol, e desfazendo-se
numa sombra maior, de estrada sem trânsito.
E de olhar esta folha, se cai.
Na queda retê-la. Tão seca, tão morna.
Tem na certa um cheiro, particular entre mil.
Um desenho, que se produzirá ao infinito,
e cada folha é uma diferente.
E cada instante é diferente, e cada
homem é diferente, e somos todos iguais.
No mesmo ventre o escuro inicial, na mesma terra
o silêncio global, mas não seja logo.
Antes dele outros silêncios penetrem,
outras solidões derrubem ou acalentem
meu peito; ficar parado em frente desta estátua: é um
torso de mil anos, recebe minha visita, prolonga
para trás meu sopro, igual a mim
na calma, não importa o mármore, completa-me.
O tempo de saber que alguns erros caíram, e a raiz
da vida ficou mais forte, e os naufrágios
não cortaram essa ligação subterrânea entre homens e coisas;
que os objetos continuam, e a trepidação incessante
não desfigurou o rosto dos homens;
que somos todos irmãos, insisto.
Em minha falta de recursos para dominar o fim,
entretanto me sinta grande, tamanho de criança, tamanho de torre,
tamanho da hora, que se vai acumulando século após século e causa vertigem,
tamanho de qualquer João, pois somos todos irmãos.
E a tristeza de deixar os irmãos me faça desejar
partida menos imediata. Ah, podeis rir também,
não da dissolução, mas do fato de alguém resistir-lhe,
de outros virem depois, de todos sermos irmãos,
no ódio, no amor, na incompreensão e no sublime
cotidiano, tudo, mas tudo é nosso irmão.
O tempo de despedir-me e contar
que não espero outra luz além da que nos envolveu
dia após dia, noite em seguida a noite, fraco pavio,
pequena ampola fulgurante, facho, lanterna, faísca,
estrelas reunidas, fogo na mata, sol no mar,
mas que essa luz basta, a vida é bastante, que o tempo
é boa medida, irmãos, vivamos o tempo.
A doença não me intimide, que ela não possa
chegar até aquele ponto do homem onde tudo se explica.
Uma parte de mim sofre, outra pede amor,
outra viaja, outra discute, uma última trabalha,
sou todas as comunicações, como posso ser triste?
A tristeza não me liquide, mas venha também
na noite de chuva, na estrada lamacenta, no bar fechando-se,
que lute lealmente com sua presa,
e reconheça o dia entrando em explosões de confiança, esquecimento, amor,
ao fim da batalha perdida.
Este tempo, e não outro, sature a sala, banhe os livros,
nos bolsos, nos pratos se insinue: com sórdido ou potente clarão.
E todo o mel dos domingos se tire;
o diamante dos sábados, a rosa
de terça, a luz de quinta, a mágica
de horas matinais, que nós mesmos elegemos
para nossa pessoal despesa, essa parte secreta
de cada um de nós, no tempo.
E que a hora esperada não seja vil, manchada de medo,
submissão ou cálculo. Bem sei, um elemento de dor
rói sua base. Será rígida, sinistra, deserta,
mas não a quero negando as outras horas nem as palavras
ditas antes com voz firme, os pensamentos
maduramente pensados, os atos
que atrás de si deixaram situações.
Que o riso sem boca não a aterrorize
e a sombra da cama calcária não a encha de súplicas,
dedos torcidos, lívido
suor de remorso.
E a matéria se veja acabar: adeus composição
que um dia se chamou Carlos Drummond de Andrade.
Adeus, minha presença, meu olhar e minhas veias grossas,
meus sulcos no travesseiro, minha sombra no muro,
sinal meu no rosto, olhos míopes, objetos de uso pessoal, idéia de justiça, revolta e sono, adeus,
adeus, vida aos outros legada.

(Carlos Drummond de Andrade, em Nova Reunião – 23 Livros de Poesia, Edições BestBolso.)
(Blog do C. Cardoso)
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Ditaduras

Sacrificar ditadores para salvar o Estado
Ainda que a maioria dos analistas e jornalistas derramem toneladas de tinta sobre os “dilemas” do poder dos Estados Unidos, sobre a novidade dos acontecimentos do Egito e dos pronunciamentos políticos diários de Washington, existem demasiados precedentes históricos que são essenciais para entender a direção estratégica da política de Obama.
Por James Petras
[10 de fevereiro de 2011 - 13h16]
Para entender a política do regime de Obama com o Egito, com a ditadura de Mubarak e com o levante popular, é essencial situá-lo em um contexto histórico. O ponto essencial é que Washington, depois de várias décadas estando profundamente arraigado nas estruturas estatais das ditaduras árabes, desde a Tunísia ao Marrocos, Egito, Iêmen, Líbano, Arábia Saudita e a Autoridade Palestina, está tratando de reorientar sua política para incorporar e/ou inserir políticos liberais eleitos nas configurações de poder existentes.

Ainda que a maioria dos analistas e jornalistas derramem toneladas de tinta sobre os “dilemas” do poder dos Estados Unidos, sobre a novidade dos acontecimentos do Egito e dos pronunciamentos políticos diários de Washington, existem demasiados precedentes históricos que são essenciais para entender a direção estratégica da política de Obama.

Antecedentes históricos

A política exterior dos Estados Unidos conta com um extenso histórico de instalar, financiar, armar e apoiar regimes ditatoriais que respaldam suas políticas e interesses imperiais, sempre mantendo controle sobre seus povos.

No passado, presidentes republicanos e democratas trabalharam estreitamente durante mais de 30 anos com a ditadura de Trujillo na República Dominicana; instalaram o regime autocrático de Diem no Vietnã pré-revolucionário na década de 1950; colaboraram com duas gerações dos regimes de terror da família Somoza na Nicarágua; financiaram e promoveram o golpe de Estado militar em Cuba em 1952, no Brasil em 1964, no Chile em 1973 e na Argentina em 1976, assim como seus posteriores regimes repressivos. Quando os levantes populares desafiaram estas ditaduras respaldadas pelos Estados Unidos e parecia provável que triunfasse uma revolução social e política, Washington respondeu com uma política de três vias: criticar publicamente as violações dos direitos humanos e defender reformas democráticas; indicar de maneira privada a manutenção do apoio ao governante; e em terceiro lugar, buscar uma elite alternativa que pudesse substituir quem estivesse no cargo, conservando o aparato do Estado, o sistema econômico e o apoio aos interesses estratégicos imperiais estadunidenses.

Para os Estados Unidos não há relações estratégicas, somente interesses imperiais permanentes: preservar o Estado cliente. As ditaduras presumem que suas relações com Washington são estratégicas, daí sua surpresa e seu desalento quando se sacrificam para salvar o aparato do Estado. Diante do temor da revolução, Washington teve, diante de clientes déspotas relutantes em sair, que assassiná-los (Trujillo e Diem). A alguns, Washington proporciona refúgios no estrangeiro (Somoza, Batista), outros são pressionados para que partilhem o poder (Pinochet) ou então lhes nomeia professores convidados em Harvard, Georgetown ou em algum outro posto acadêmico “de prestígio”.

O cálculo de Washington sobre quando remodelar o regime se baseia em uma estimativa da capacidade do ditador para enfrentar a rebelião política, da força e da lealdade das forças armadas e da existência de um substituto maleável. O risco de esperar tempo demais, de permanecer com o ditador, é que os levantes de radicalizem: o caminho subseqüente barre tanto o regime como o aparato estatal, convertendo uma revolta política em uma revolução social. Justamente um “erro de cálculo” deste tipo se produziu em 1959 no prévio que antecedeu a revolução cubana, quando Washington se manteve ao lado de Batista e não foi capaz de apresentar uma coalizão alternativa pró-estadunidense viável e vinculada ao velho aparato estatal. Um erro de cálculo similar ocorreu na Nicarágua quando o presidente Carter, enquanto criticava Somoza, resistiu e se manteve passivo enquanto se derrubava o regime e as forças revolucionárias destruíam o exército, a polícia secreta e o aparato de inteligência, treinados por Estados Unidos e Israel, e passou a nacionalizar as propriedades estadunidenses e a desenvolver uma política exterior independente.

Washington se movimentou com maior iniciativa na América Latina na década de 1980. Promoveu transições eleitorais negociadas que substituíram os ditadores por manejáveis políticos neoliberais eleitos, os quais se comprometeram a preservar o aparato estatal existente, a defender as elites estrangeiras e locais e a respaldar a política regional e internacional dos Estados Unidos.

As eleições do passado e a política atual

Obama tem sido extremamente relutante em derrubar Mubarak por várias razões, mesmo quando o movimento cresce em número e se aprofunda o sentimento anti-Washington. A Casa Branca tem muitos clientes em todo o mundo – entre eles Honduras, México, Indonésia, Jordânia e Argélia – que crêem ter uma relação estratégica com Washington e que perderiam confiança em seus futuros se Mubarak fosse abandonado.

Em segundo lugar, as influentes organizações pró-Israel dos Estados Unidos (AIPAC, os presidentes das principais organizações judias estadunidenses) e seu exército de escribas mobilizaram os líderes do Congresso para que pressionem a Casa Branca no sentido de seguir apostando em Mubarak já que é Israel o principal beneficiário de um ditador sufocado para os egípcios (e palestinos) porém que está aos pés do Estado Judaico.
Como resultado, o regime de Obama tem se movido lentamente; com medo e sob a pressão do crescente movimento popular egípcio, busca uma fórmula política alternativa que elimine Mubarak, mantenha e fortaleça o poder político do aparato estatal e incorpore uma alternativa eleitoral civil como meio de desmobilizar e desradicalizar o vasto movimento popular.

O principal obstáculo para derrubar Mubarak é que um setor importante do aparato do Estado, especialmente os 32500 membros das Forças de Segurança Central e os 60.000 da Guarda Nacional, se encontram diretamente sob o mando do Ministério do Interior e de Mubarak. Em segundo lugar, os generais do Exército (468.500 membros) reforçaram Mubarak durante 30 anos e se enriqueceram graças a seu controle sobre as muito lucrativas empresas de uma ampla gama de setores. Não apoiarão nenhuma “coalizão” civil que ponha em questão seus privilégios econômicos e seu poder para estabelecer os parâmetros políticos de qualquer sistema eleitoral. O comandante supremo das forças armadas do Egito é cliente dos Estados Unidos desde muito tempo, e também é um útil colaborador de Israel.

Obama está decididamente a favor de colaborar com e garantir a preservação destas instâncias coercitivas. Porém, necessita assim mesmo convencer-lhes da substituição de Mubarak e de que permita um novo regime que poda desativar o movimento de massas cada vez mais oposto à hegemonia estadunidense e à submissão a Israel. Obama fará tudo o que for necessário para manter a coesão do Estado e evitar divisões que possam conduzir a um movimento de massas – a aliança dos soldados poderia converter a revolta em uma revolução.
Washington abriu conversas com os setores liberais e islamistas mais conservadores do movimento anti-Mubarak. A principio tratou de convencê-los a negociarem com Mubarak – um beco sem saída que foi rechaçado por todos o setores da oposição de cima a baixo. Depois, Obama tratou de vender uma falsa “promessa” de Mubarak: que não participaria nas eleições dentro de nove meses.

O movimento e seus dirigentes rechaçaram essa proposta também. Assim que Obama lançou a retórica de “mudanças imediatas” mas sem nenhuma medida de fundo que as respaldasse. Para convencer Obama de que seu poder se mantinha entre as bases, Mubarak enviou o lumpesinato vândalo de sua polícia secreta para que se apoderasse violentamente das ruas do movimento. Uma prova de força: o Exército não fez nada; o ataque fez subir a aposta numa guerra civil de conseqüências radicais. Washington e a União Européia pressionaram o regime de Mubarak para que desse um passo atrás – por ora. Mas, a imagem de um exército favorável à democracia se viu manchada pelos mortos e por milhares de feridos.

Na medida em que a pressão do movimento se intensifica, Obama está pressionado pelo lobby israelense favorável a Mubarak e sua comitiva do Congresso por um lado, e por outro, por assessores com conhecimentos que lhe pedem que siga as práticas do passado e avance de forma decidida sacrificando o regime para salvar o Estado agora que a opção eleitoral de liberais-islamistas segue colocada ainda sobre a mesa.

Mas Obama duvida, e como um precavido crustáceo, se move para os dois lados e para trás, acreditando que sua própria retórica grandiloqüente é um substituto para a ação...com a esperança de que cedo ou tarde, o levanta acabará em mubarakismo sem Mubarak: um regime capaz de desmobilizar os movimentos populares e disposto a promover eleições que deem lugar a representantes eleitos que sigam a linha geral de seus predecessores.

No entanto, há muitas incertezas em uma remodelação política: uma cidadania democrática, os 83% desfavoráveis a Washington, terá experiência da luta e da liberdade para exigir um reajuste político, especialmente, deixar de ser a polícia que faz cumprir o bloqueio israelense sobre Gaza e deixar de prestar apoio à marionetes dos Estados Unidos no Norte da África, no Líbano, no Iêmen, Jordânia e Arábia Saudita. Em segundo lugar, as eleições livres abrirão o debate e aumentarão a pressão para um maior gasto social, para a expropriação do império de setenta bilhões de dólares do clã Mubarak e de seus companheiros capitalistas que saqueiam a economia. As massas exigirão a redistribuição dos gastos públicos com o exagerado aparato repressivo ao emprego produtivo e gere postos de trabalho. Uma abertura política limitada pode conduzir a um segundo ataque no qual novos conflitos sociais e políticos dividam as forças anti-Mubarak, um conflito entre os defensores da democracia social e os partidários do eleitoreirismo elitista neoliberal. O momento da luta contra a ditadura é somente a primeira fase de uma luta prolongada para a emancipação definitiva não somente no Egito, mas em todo o mundo árabe. O resulta depende do grau em que as massas desenvolvam sua própria organização independente e seus líderes

Publicado por Rebelión. Foto por Kevin S. O`Brien, Marinha dos EUA.

Baudelaire

Baudelaire, um pária genial (parte II)
Jardel Dias Cavalcanti




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(Começa aqui...)

Decidido a ser poeta, Baudelaire sente que tem dentro da cultura francesa uma missão: herdeiro direto da tradição romântica, deve buscar agora uma nova via artística, anunciando de forma radical quais seriam os signos da modernidade na arte. Em breve escreverá "A perda da auréola", um poema em prosa que será não só o diagnóstico da situação da arte e do artista no mundo moderno, como, mais adiante, será o alicerce para o entendimento da modernidade por um de seus mais importantes críticos: Walter Benjamim.

Mas ao mesmo tempo em que nasce o poeta, com ele nasce o homem adulto, que descobriria nos braços de sua "musa venal", Jeanne Duval, uma atriz mulata de 30 anos, os prazeres e a dores da licenciosidade desenfreada. E é no círculo do fotógrafo Nadar que esse encontro vai se dar, lugar onde o poeta encontrou nesse agrupamento de artistas boêmios a melhor companhia que poderia esperar: Champfleury (tem em comum com ele a paixão por Daumier), Pierre Dupont, Fauchery, Émile Deroy (cujo atelier visita frequentemente), Théodore de Banville, dentre outros. E é nos cafés, verdadeiro gabinete de trabalho para eles, que as reuniões se davam, começando às nove da manhã e terminando perto da meia-noite.

Nesse círculo, Baudelaire é atraído imediatamente por Jeanne Duval, que, segundo ele, tem uma "beleza lânguida, com seus olhos lascivos, os seios pequenos, as ancas largas, a pele morena e lisa e, principalmente, seu porte felino, seu andar elástico de serpente que dança". Vários de seus poemas incluídos em As flores do mal serão inspirados pela atriz mulata.

Morando em um apartamento no Hotel Pimodan, frente à rive droit do Sena, decorado pelo poeta com elegância e voluptuosidade, com quadros de mestres (Tintoretto, Coreggio, Poussin ― todos falsificados), objetos comprados em antiquários e móveis preciosos, como também com as litografias da série Hamlet de Delacroix e livros em edições antigas de clássicos franceses e latinos, com encadernações luxuosamente cobertas por ouro e executadas por grandes artistas, Baudelaire se sente pronto para começar a compor sua obra, que será a tradução de sensações e experiências reais, e não apenas brilhantes exercícios de estilo.

E "a serpente que dança" será sua primeira inspiração sensorial. Com Jeanne o poeta descobre os prazeres carnais que jamais experimentara. Segundo Banville, serão prazeres mais agudos "que os do gelo e do ferro", pois a criatura demoníaca que possuiu Baudelaire tem uma "beleza infeliz", com um olhar armado de "intensa luz e graça", com cabelos perfumados, mas com pupilas que lhe parecem de um frio infernal.

Baudelaire, excitado e inflamado pela mulata, a considera diferente de todas as outras mulheres que conheceu antes: pobres prostitutas colhidas nas ruas ao acaso, profissionais das casas de tolerância ou parceiras ocasionais, dóceis e gentis, que passaram por ele. Jeanne é diferente de todas: é uma perfeita depravada e sua única diversão de verdade. Misto de atriz e prostituta, Jeanne é mantida por Baudelaire em outro apartamento alugado, perto do seu. O poeta não consegue conceber a possibilidade de renunciar jamais às suas ambições literárias e não imagina uma mulher ao seu lado vinte e quatro horas por dia, entre seus papéis e seus livros. "A ideia de casamento lhe arranca um riso de desprezo".

Manter essa vida de artista lhe custa caro, e a Sra. Aupick faz nascer um processo de investigação dos gastos do filho que fez evaporar em dezoito meses metade de sua fortuna. Baudelaire agora viverá sob a tutela de um curador.

Humilhado pela decisão familiar, o poeta encontra no seu "leito infernal" com Jeanne o remédio para a ferida. Sua "bizarra divindade", sua "feiticeira sombria", seu "demônio impiedoso", sua "megera sensual" fornecerá para ele a luxúria e as fontes de uma poesia sensual, marcada pela vertigem do amor e seu desgosto, pelo poder e pela fraqueza de pertencer a um vampiro, a uma puta de "grandes olhos negros", que, inclusive, mesmo estando com Baudelaire, continua vendendo seu corpo a outros ou entregando-se a qualquer um na sua ausência. Mas inspirado nesse amor-dor é que fará nascer os seus grandes poemas, como podemos ver nos trechos seguintes de "O Vampiro":

"Tu que, com uma punhalada,
Em meu coração penetraste,
Tu que, qual furiosa manada
De demônios, ardente ousaste
De meu espírito humilhado
Fazer teu leito e possessão
― Infame à qual estou atado
Como o galé ao seu grilhão,
Como ao baralho o jogador,
Como à carniça o parasita,
Como à garrafa o bebedor
― Maldita sejas tu, maldita!"

Suas experiências sensoriais não param por aí, pois o Hotel Pimodan acomoda um grupo de boêmios e artistas interessados em experiências que vão além da criação artística: o uso de haxixe. Um dos moradores, Boissard, é o anfitrião que, além de receber Delacroix, Daumier, Meissonier, Chevanard, Nerval, Gautier e Baudelaire para discussões, oferece a cada um sua dose de haxixe. "O suficiente para ficar, depois de um momento de alegria enlanguescedora, com a cabeça cheia de turbilhões... para descobrir as metamorfoses e os equívocos mais singulares e constatar que os sons têm uma cor e que as cores têm uma música".

Mais importante para Baudelaire que o haxixe é encontrar ali o escritor Théophile Gautier, que o poeta admira mais que a Victor Hugo. Admira principalmente sua obra Mademoiselle de Maupin, espécie de manifesto expondo em alto e bom tom que arte e moral, literatura e virtude não têm nada em comum, anunciando o que seria o prefácio de O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde.

Baudelaire torna-se, se assim se pode dizer, um dândi, uma espécie de aristocrata do espírito que exibe na sua performance de excêntrico os sinais de sua diferença em relação aos mortais comuns. Para isso procura os melhores alfaiates de Paris, apesar de sua renda controlada. "Seu traje preferido é a veste negra com rabo de peixe, o paletó reto de lã, a camisa de tecido fino com o colarinho bastante caído, a gravata vermelha, vermelho-sangue, o chapéu alto, as luvas de seda rosa, a bengala com punho e marfim. Seja percorrendo os bairros chiques, seja perdendo-se por ruas repugnantes e de má fama ele será sempre o mesmo: sempre bem vestido, sempre elegante, sempre cínico".

Comprador de pinturas, não quer apenas ser admirador. Quer entender as razões que o levam a admirar tal ou qual pintor. Nasce daí um dos mais importantes comentadores da arte do século XIX. Aprecia Bassano, Velásquez e El Greco, mas cerca-se principalmente de seu contemporâneo Eugène Delacroix, que Baudelaire considera "decididamente como o pintor mais original dos tempos antigos e dos tempos modernos". Ao culto dos grandes gênios da literatura, Balzac, Hugo, Saint-Beuve, Gautier, junta-se Delacroix, aquele que "levou a pintura antiga a uma última e magnífica incandescência".

Baudelaire torna-se crítico de arte, chegando a publicar centenas de artigos sobre os Salões de Arte de Paris, analisando artistas como Vernet, Meissonier, Flandrin, Rousseau, Dupont, Corot, Chassériau, Daumier, dentre outros. Suas análises dos salões de 1845 e 1846 levam Henri Murger a dizer que Baudelaire deve ser colocado ao lado de Diderot, Hoffmann, Stendhal e Heine.

Nas críticas de arte o poeta desenvolve suas ideias sobre o heroísmo da vida moderna, o chique, a moda, a paisagem, desqualifica a escultura e a fotografia. Desenvolve seu conceito moderno de beleza: "O elemento particular de cada beleza vem das paixões e, como temos nossas paixões particulares, temos nossa beleza particular".

Endividado e sofrendo terríveis cobranças volta a morar com a família, mas logo se dá conta da impossibilidade, o que o faz viver de hotel em hotel, sempre com dívidas impagáveis. Chegou uma vez a se esfaquear no peito, deixando uma carta de suicida, onde deixa tudo o que tem para Jeanne, "única pessoa com quem encontrou descanso". Pura farsa de suicídio, pois o ferimento é inofensivo.

Baudelaire se cura sempre entre as pernas dos amores que "pertencem ao anonimato da amargura". "E ele, tão requintado, tão distinto, tão apaixonado por perfumes e lindos tecidos, não se ofende nem com roupas íntimas suspeitas, nem com meias rasgadas, nem com peles mal lavadas, nem com a fetidez de hotéis suspeitos, nem com a sujeira dos cabarés sórdidos". Sua vida de boêmio é regada a vinho e drogas fortes, entre noitadas frívolas e escandalosas. Com Champfleury, Banville e Nadar, todos mulherengos, corre atrás das atrizes do teatro da Port-Saint-Martin, lugar privilegiado para encontrar feias ou belas amantes.

Continua ganhando o pouco do dinheiro que tem com artigos sobre arte e literatura, ajudado por Champfleury que além de indicar suas publicações o apresenta ao pintor Gustave Courbet, que lhe faz um retrato. "Ele fica feliz de pintá-lo, cabelos curtos bem negros, o rosto trocista e malicioso, fumando seu cachimbo, com a gravata desatada sobre o peito, sentado numa mesa com livros, uma pasta de desenhos, um tinteiro e uma pena de ganso, a mão esquerda apoiada sobre um divã, absorto na leitura de um espesso volume."

Influenciados pelas ideias de Fourier, Swedenborg, Pierre Leroux (criador da palavra socialismo), os artistas e intelectuais franceses aderem à Revolução de 1848, que se ergue contra o regime em vigor, clamando por justiça social e contra a "mediocridade burguesa" que condena o pobre trabalhador a viver num regime sem recursos mínimos e proteção. No meio da multidão que se une para invadir a Place de La Concorde está Baudelaire, para espanto de Courbet e outros presentes, que sabem da aversão do poeta por política e pelos ideais republicanos. Atrás das barricadas, armado de um fuzil de caça roubado numa loja de armas, Baudelaire grita: "É preciso fuzilar o general Aupick!". Está explicada a sua presença no acontecimento.

Com a democratização da França após a instalação da Segunda República é estabelecido o sufrágio universal, suprimida a escravidão nas colônias, e instituída a liberdade de imprensa. Baudelaire e Champfleury criam o Salut Public, jornal que o poeta vende pessoalmente nas ruas, mas no terceiro número o jornal fracassa por falta de recursos. Outros jornais o acolhem, mas a atividade jornalística o desgasta em vários sentidos. Como um vira casacas, colabora em jornais diversos e de tendências políticas diversas: republicanos e ultra-conservadores. Dois escândalos o afastam definitivamente dos jornais. Primeiro, aparece nas reuniões ao lado de uma atriz bastante vulgar que declara ser sua esposa; depois, irrita a todos com o seguinte texto: "Quando Marat, este homem doce, e Robespierre, este homem correto, pediam, aquele trezentas mil cabeças, este a permanência da guilhotina, eles obedeciam à inelutável lógica de seu sistema".

Tal como Delacroix, Baudelaire desconfia da democracia. As seguintes palavras do pintor poderiam ter saído da boca do poeta: "Por mais que eu procure a verdade nas massas, eu só a encontro nos indivíduos". Filosoficamente seu gosto está mais para a ideia de destruição, embora o contato com Proudhon, Raspail e Dupond em algum momento o tenha levado a acreditar romanticamente ou literariamente na política. Fora disso, só o interessava os "homens desclassificados", e, dentre eles, os poetas são os eleitos.

Decidido a manter-se longe da agitação pública e da multidão que ele despreza com todas as suas forças, redige as seguintes ideias:

"Poder-se-á imaginar um Dândi falando ao povo a não ser para o espezinhar?
A aristocracia é o único tipo de governo seguro e de acordo com a razão.
Só existem três tipos respeitáveis: o padre, o guerreiro e o poeta: saber, matar e criar.
Todos os outros homens não passam de indivíduos moldáveis e serviçais, bons para estribarias (isto é, próprios para exercer o que chama profissões)."

Depois de meses difíceis, decide reunir os poemas que já escreveu e publicá-los num livro que se chamaria As Lésbicas (anteriormente denominado Os Limbos e publicado posteriormente como As Flores do Mal). Busca o recolhimento, lê bastante, principalmente Allan Poe, que não para de traduzir, corrige seus poemas, desenha, faz projetos de romances para ganhar dinheiro.

Prepara-se para dar continuidade à sua batalha literária. Entra em contato com Joseph de Maistre, cuja obra o prepara literariamente para o rigor extremo e espiritualmente para suportar "o enorme peso do nada".

Baudelaire agora é um homem de 30 anos e quer tornar público o resultado de suas experiências naquele que será, como foi Madame Bovary, um livro destinado à condenação, à danação: As Flores do Mal.

Nota do Editor
Leia também "O comerciante abissínio" e "O comerciante abissínio II".

Jardel Dias Cavalcanti
Londrina, 1/2/2011
(Digest. Cultural)

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Deus é o dono da bola!

Pois é, o blogue é meu, aqui quem manda sou eu!
Aceito críticas, claro, afinal nem todos são perfeitos...Nem Eu!
Mas ultimando, esse blogue é dedicado a Mabelle M. Arruda, minha eterna musa....
Mabelle é minha Bellzinha!

Meu DDD - Diário de um Deus em prefunda Depressão

“‘Ela’ reapareceu. Misteriosa e enigmática como sempre. A ‘Greta Garbo divina’ como é chamada. Pediu-me um cigarro e um pouco de atenção. Lembrou-me o nosso passado, nosso ‘caso’, como ela diz. Dei-lhe uma rosa vermelha (ela não merece mais) com apenas 2 pequenos espinhos. Piqueniques, jardim zoológico, aventuras fugidias...Passeios e namoros noturnos...aquela noitada em que cantarolamos juntos (tinha uma bela voz). Mas a vida passou, envelhecemos, o mundo envelheceu, tudo e todos envelheceram. O infinito já passou dos 70, a eternidade apoia-se num cajado para caminhar...”

“Convidou-me para o cinema. Depois para o teatro. Depois iríamos para a sua casa. Depois...Recusei, estou muito cansado, a onipotência exaure as forças, perco o entusiasmo da juventude. É, estou velho.”

“Alguém aí da platéia pode dizer o meu nome e o que faço aqui?”

“Cansei! Ofereço tudo, o infinito e mais alguma coisa por um pouco de paz e sossego.”

“Não ensinaram-me a ser Deus, ninguém disse como devo agir, como pensar, quais as minhas regras e normas de comportamento (não existem escolas de Deus, mestres de Deus): o fato é que tornei-me Deus (sou Deus desde pequininho e nunca saberia ser outra coisa senão Deus). Estabeleci meus próprios ditames para uma escala de valores também criada por mim (eu criei a escola e criei também os professores e criei também os alunos), enfim, sou um Deus autodidata. Mas, acreditem, não haverá sucessores (como jamais houve antecessores), minha dinastia iniciou comigo e findará comigo, meu legado sou eu mesmo. Eu não pedi para ser Deus, custa-me muito ser Deus, eu sofro em ser Deus. No entanto, já que sou Deus, decido: pretendo morrer Deus.”

“Eu gostaria tanto de receber estímulos, aspirações, receber desafios e provocações. Instigar-me! Eu não quero ser eternamente onipotente! E minha onipotência não é pleonasmo!”

“Triste, muito triste hoje. Inseguro, infeliz, não tenho amarras, apoios, um ponto ou alguém que me ampare, me dê um pouco de alegria, fugaz e ilusória que seja (vivo em eterna expectativa, antecipando sempre algo – em geral negativo – que ainda irá ocorrer. E se realmente, indago, eu me adiantar e precipitar-me a algum futuro que jamais ocorrerá?).”

“...e o chato é que precisamente este filme eu já assisti várias vezes antes e sei muito bem que eu (infelizmente) não morro no final. Sobrevivo (pois eu queria sobreviver: eu mesmo escrevi o roteiro e dirigi-me) e vejo-me forçado - por quem? - a assistir a nova versão atualizada e aperfeiçoada de mim mesmo. Como em música: variações diversas e ligeiras em torno de um só tema. Mas se o tema e o cineasta sou eu mesmo! E as variações nada mais são que eu mesmo em ângulos variados!”

“Fiz o mundo, fiz o universo, o Todo (fiz-me!) e agora aqui estou: solitário e pensativo, tudo às escuras (a lâmpada queimou há pouco), sem uma aragem, uma ventilação (pois o meu quarto, o quarto de um ‘morto’, um ‘sobrevivente’, não possui janelas ou aberturas - nem uma porta ou clarabóia. É um imenso e ao mesmo tempo grandioso ‘labirinto’ que desemboca noutro labirinto também imenso e majestoso e assim por diante) e tudo encontra-se morto e frio e fétido e eu, depois de tudo, depois da criação, apenas olho-me, vejo-me (sinto-me). Afinal, é o suficiente. Para quê mais?”

“ ‘Ela’ voltou. Sorriu para mim, graciosa. Chamou-me pelo apelido, alegre; lembrou-me de antigos e fiéis amigos, camaradas...é, o meu passado retorna...um passado triste...uma vontade de chorar...MAS EU SOU DEUS!!!”

“A existência também tem seus limites, suas porteiras, eu sei. Existimos e vivemos tranqüilamente cada um de nossos períodos mas, em um certo momento sentimos que tocamos, que roçamos em um ‘ponto’, um ponto limítrofe, um marco qualquer em um lugar qualquer, que nos diz, ameaçador, que até ali tudo bem, depois...Daí urge optar entre parar obediente, obedecendo as ‘ordens’, determinações do Todo ou, ousadamente, atravessar a fronteira da Imensidão, ‘aquele’ limiar e, de um só pulo, desafiar o Nada.
...desse ponto de vista eu poderia muito bem estar próximo do meu ápice: uma simples gota a mais sobre o copo e eu entraria em definitivo em outro ciclo, outra dimensão, outro mundo. Deixaria, portanto, de ser Deus desse universo para ser, talvez, alguma coisa indefinida noutro universo (um outro Deus?). A questão seria: eu desejo de fato atingir essa culminância, desejo realmente transcender-me, soltando-me, deixando-me de lado, jogando-me no lixo para então ressuscitar-me, qual ônix?”

“Existo por instantes, pequeninas e fugazes etapas de tempo. Períodos de tempo circunscritos e comprimidos dentro dele mesmo. Um tempo egoísta e avaro, um tempo exíguo e limitado, é verdade. Um tempo finito e cor de rosa desbotado e com seus limites delineados e delimitados previamente (as regras do jogo já foram devidamente acertadas e combinadas; impossível fugir ao regulamento). É, eu vivo num tempo impotente e débil (mas eu sou o tempo!). Às vezes concedo-me uma trégua, ‘apago-me’, ‘desapareço-me’. Corrijo: às vezes surpreendo-me numa repentina e desconhecida lacuna (pois ignoro quem ou o quê a determinou, a prescreveu, qual, enfim, a sua finalidade. Tudo a minha revelia, claro: ordeno e disciplino a tudo, menos a mim mesmo. Seria talvez alguma instância superior? Algo acima e à parte de mim? Externo e alheio a mim? Afinal, quem ou o quê dá as cartas - marcadas! - para o meu jogo?).
Não indaguem - suplico - o que resta, o que sobra neste vácuo, nesta minha ausência. Quiçá a própria ausência, ela, por si mesma, permita-me descansar em paz. Portanto, presumo, quando gozo de férias de mim mesmo, o nada surge para ocupar o meu lugar. O nada, apenas o nada, um nada íntegro, digno, crível e absoluto (Acaso a imensidão seria eficaz, tecnicamente perfeita e eficiente? Uma razoável gestora? Não sei, realmente não sei: quando em férias desligo-me totalmente do mundo, da vida, de tudo. Escondo-me! Desapareço-me!).”

“Deus suicida-se? Não sei. O fato é que a onipotência, a onisciência, tem suas singularidades, tem suas imperfeições e pequenos senões. No entanto, pergunto: a onipotência pode (ou deve) consertar-se, aperfeiçoar-se, morrendo, talvez, em seguida? (ou o próprio findar, expirar já não seria em si a solução?) Viver já não seria, insisto, sofrimento demasiado para um Deus? Reconheçamos: a morte é estéril e infértil, a morte não pode reproduzir-se, não perpetua-se. Pois a morte inicia-se e termina nela mesma, um ciclo eterno e infindável e no entanto castrado, cujo fim é antevisto desde os primórdios: algo como uma morte anunciada e preparada.
(E nunca houve um caso de um Deus suicida, eu sei muito bem. Nós, Deuses, estamos terminantemente proibidos de tentar a morte. Fomos condenados duramente a viver. E viver para sempre, eternamente. Soluço)”

“...em pequeno, lembro, a escuridão, as trevas atraiam-me, assediavam-me sedutoramente. Criança, quando fazia as minhas ‘artes’, colocavam-me ‘de castigo’ num local bem claro, alegre, festivo; ali eu chorava, ressentido (e temporariamente) arrependido...”


“’Ela’ telefonou-me. Marcamos encontro (nem sei se compareço). Convidou-me a biblioteca. Descobrira autores ‘novos’, ‘novidades’. Sempre rindo, a traquina (ela é feliz, creio). Aliás, estou relendo Sartre. Lembrei o I. L. Seu jeito emburrado, não digo, não digo, não digo, de ver o mundo, as coisas...As coisas. Sua poesia era irracional, ele percebia (sentia), não sei, ele simplesmente percebia. Notava. Olhava o mundo com o canto dos olhos, de castigo na parede, fumando na privada...dizendo palavrão bem alto...Pra ele nada valia a pena. Talvez até achasse, que, por isso mesmo, tudo vale a pena. Falar no passado...O passado. Repetir, sempre repetir...A gente sempre é um I. L., chegando atrasado ao próprio funeral...Cemitério vazio. Solidão...enfim...creio que ela me quer...e eu...eu não sei...(eu sou Deus)”

“...enfim, como bem lembrava um amigo, viver consiste apenas em levantar, escovar os dentes e se olhar no espelho. Afinal existe o vômito, né?”

“Viver é muito dispendioso e trabalhoso, viver sai muito caro no fim. Afinal para onde irei amanhã?”

“...pois eu sou um Deus triste e melancólico, como todos os deuses velhos...”

“O homem para existir precisa ser gregário, ver-se no outro e constatar que de fato ele existe, é. Um homem solitário não existe, o Adão, por exemplo, passou a ser apenas com a chegada de Eva, que, existindo, tornou-o viável, pelo inevitável contraponto. Exatamente como um espelho (um espelho dentro do Nada refletiria talvez a si próprio?). Mas eu não necessito de reflexos, de ‘provas’ de minha factibilidade. Olho-me, vejo-me tão só. Tão só.”