quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Suicídio

Está Consumado
Paulo Polzonoff Jr




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"O suicídio é a publicidade do desespero." (Jayme Ovalle)

(Este texto não é recomendado para quem faz uso contínuo de antidepressivos).

Antes de mais nada é preciso dizer que o autor escreve este texto porque sobreviveu, mais uma vez, a si mesmo. Nenhum outro animal, creio, pode ser tão inimigo de si mesmo quanto o homem. Ontem, num estado quase catatônico, eu assistia a um desses documentários da National Geographic sobre a reintrodução de lobos num parque dos Estados Unidos. Vi aqueles animais lindos correndo atrás de suas presas e pensava na dor das presas e as invejava porque as presas dos lobos tinham-nos como seus únicos inimigos. O ser humano, apesar de ser o senhor dentre os animais, tem a disfunção de ser ele próprio inimigo seu. E não falo aqui de assassinato, a não ser que se considere o suicídio um modo de se matar todos os que o rodeiam.

Este ensaio (?!) nasceu de uma noite triste. Se quiserem, porém (e eu aconselho), podem achar outros motivos para lê-lo. Pode-se pensar que é mais uma investigação, só que nada pretensiosa, da proposta de Camus, segundo o qual o suicídio é o único problema filosófico pendente. Pode-se pensar ainda que se trata de uma individualização do ensaio de A. Álvarez sobre o suicídio, aliás livro altamente recomendado: O Deus Selvagem (Cia das Letras). Pode-se pensar ainda que se trata apenas de um depoimento tedioso, que se lê por falta de coisa melhor do que fazer. Honestamente, a mim pouco me importa: está consumado.

O ensaísta A. Álvarez, impulsionado pelo suicídio da poetisa Sílvia Plath, resolveu pesquisar o suicídio sem o ranço espiritual que o assunto sempre carrega. O resultado foi um livro simpático intitulado O Deus Selvagem, que em muitos bons momentos defende o ato de atentar contra a própria vida. Álvarez procura dar um sentido histórico ao suicídio, mostrando que, em algumas culturas, em determinado tempo, o suicídio era até estimulado. O que hoje temos por vergonhoso era honroso. A tradição judaico-cristã, de que somos filhos bastardos, nos legou o ódio aos suicidas. É bom pensarmos, contudo, que existe ainda certo glamour em torno das pessoas que ou se jogam de um prédio ou dão um tiro na cabeça. Sempre que ficamos sabendo de algo assim nos perguntamos, do fundo profundo e azul de nossa ignorância: mas como é que ele pôde?

Álvarez pensou em Silvia Plath. Diz ele que o suicídio da poetisa, que simplesmente colocou a cabeça num forno e aspirou o gás, foi uma tentativa de pedir socorro. Ora, o suicídio ou a tentativa de é sempre um pedido de socorro. Quem pode nos ouvir, contudo?

Silvia Plath não é a suicida que mais me coloca medo. Quando penso em Ernest Hemingway, aí sim eu tremo nas bases e tenho a certeza mais do que absoluta de que um dia posso muito bem me matar. Veja só: rico, charmoso (dizem), conquistador, corajoso: matou-se. O cara foi lutar voluntariamente na Primeira Guerra Mundial, admirava a violência das touradas e não perdia por nada no mundo o espetáculo sangrento de uma caçada. Era o que eu considero uma rocha emocional e, contudo, matou-se. Se ele pôde, por que não eu, por que não nós?

Outro que me dá medo: Pedro Nava. Quem quer que tenha lido a obra do memorialista mineiro tem a impressão de que Nava era um homem de grande espirituosidade. Acho seu Baú de Ossos um dos grandes romances que nossa literatura já produziu, um verdadeiro libelo à vida. Matou-se. Outro dia vi uma entrevista de Pedro Nava a Otto Lara Resende, cheia de entusiasmo pela vida, cheio de alegria, cheio de otimismo. Matou-se.

Por outro lado (sempre tem um outro lado), não poderia deixar de pensar em Emil Michel Cioran, o filósofo do niilismo, que morreu recentemente, sem ter se matado, para lá de velho. Se ele pôde sobreviver a este tormento que é a vida, eu também posso, ora.

Devo ter pensado em suicídio pela primeira vez aos doze anos de idade. Sim, precoce. Eu sempre fui destes meninos alegres e prestativos na sala de aula, mas era solitário em casa. Minha alegria, neste tempo, era o vício solitário. E meu sofrimento tinha nome, sobrenome e erregê: Simone. Pensei em morrer numa tarde, pouco antes do jantar. Amarrei uma corda em meu pescoço e testei para ver se agüentava. Não iria agüentar. Insisti e o pescoço sentido a corda me pediu que parasse. Talvez eu devesse ter morrido naquele dia, por um motivo tão banal quanto Simone.

Paulo Francis era quem dizia que quem nunca pensou em morrer é porque tem titica de galinha na cabeça. Concordo. Até mesmo Jesus, diante do suplício que se vislumbrava diante dele, questionou a validade da vida. Faz parte de qualquer ser humano que faça uso do cérebro questionar a existência. E às vezes negá-la.

Na minha família, antes que venham os geneticistas diagnosticar minha vontade de morrer como um subproduto químico causado por alguma cadeia de moléculas erradas, não há sequer um caso de suicídio. Há um assassinato remoto, por amor, que ostento com orgulho. Suicídio que é bom, nada. Na verdade, nem câncer há na minha família. Nem alcoolismo. Nem porra nenhuma. Somos descendentes de russos, saudáveis como poucos. A não ser, claro, pela depressão, que nos ataca a todos há gerações. No tempo de meu bisavô, contudo, não existia antidepressivos; existia a Primeira Guerra Mundial, na qual ele lutou.

Aqui entro em duas digressões distintas: uma sobre o tédio e outra sobre uma possível teoria determinista do meu suicídio.

Matar-se por puro tédio - a idéia lhe agrada? A mim também. Matar-me porque não há nada que se possa fazer de útil ou inútil nesta vida. Porque tudo já foi escrito. Porque tudo já foi dito. Porque ninguém ouviu. Matar-se porque tudo o que nos resta é esperar a morte iludindo-nos de estarmos vivos. Ninguém em sã consciência pode achar que está fazendo qualquer coisa de grandiosa ou minimamente útil hoje em dia. Tudo é vão e passageiro. Vivemos a era o do efêmero, da mais absurda transitoriedade. Por que, então, não acelerar este passo rumo ao precipício?

Sou um entediado crônico e acho que boa parte das vinte pessoas que me lêem também o são. Outro dia escutei uma piada à mesa do bar que me assustou, primeiro porque era piada, depois porque era uma coisa monstruosa de ser dita. Um amigo disse que queria ser um alcoólatra para entrar para o AA e aí ter um motivo para estar vivo, que seria parar de beber. Nada mais sintomático de nossos tempos. Dia destes recebi um email dizendo eu precisava era de putaria, bebedeira, rock'n'roll, etc. Era um bem-intencionado leitor. Putaria? Vasculhei minha memória e pensei na velha puta de um livro que eu lera, magra e doente, que o freguês paga mas não leva por pena. Pensei no post coitum triste, um dos piores sentimentos que podem se abater sobre um ser humano - quem já sentiu este vazio deve saber do que falo. Pensei nas mulheres que amei e me rejeitaram. Não, putaria não. Bebedeira? Bem, se eu entrar para o AA também vou ter um motivo para estar vivo, mas tornar-me um alcoólatra dá muito trabalho. Rock'n'roll? Você já escutou Ella Fitzgerald cantando They Can't Take That Away From Me? Então não me venha falar de rock'n'roll.

Desvio de minha digressão, contudo. Não há quem me tire do tédio. Ou quem tire o tédio de mim. Escrever este texto, por exemplo, me entedia, porque sei que os leitores serão poucos ou nenhum (se você chegou até aqui, sorria). Todos os dias eu saio de casa para o trabalho encharcado de tédio: escreverei textos que ninguém lerá. Textos sobre nada. Que não mudarão nada. E quando volto para casa durmo um sono que me torna mais velho sem nada ter feito. Pergunta nem-tão-a-esmo-assim: como se sentiam os jovens de 23 anos no início do século XIX sabendo que Goethe, com esta idade, causava uma onda de suicídio na Europa com seu Werther apaixonado?

Volto para casa, sou um velho entediado; durmo e sonho um sonho entediado, de ondas azuis demais e ondas fortes demais; acordo entediado demais para ler Freud e pensar no sonho; venho para o computador e há uma dezena de emails pedindo para não serem respondidos. Durmo, acordo. Acordo. Durmo. Morro.

Há muita gente que rejeita com veemência esta história de que vivemos dias tediosos. É gente que admiro como quem admira um burro que consegue carregar o dobro do seu peso no lombo. Porque trata-se de pessoas que, para usar um termo bem ao gosto dos sub-psicanalistas (como eu), ainda estão vivendo dias de dominação do superego. Em outras palavras: é gente inocente. Diz o velho e bom Freud que, no momento em que despertamos para a vida em toda a sua extensão (leia-se sofrimento), abandonamos este superego para nos dedicarmos ao cada vez mais combatido ego. Minha proposta para os entendidos no assunto é de que seja criado um novo termo, para classificar aqueles que já entenderam a vida em sua extensão e, mais, compreenderam, não sem um pouco de resignação, que não há nada há fazer se não morrer. Trata-se daqueles que vivem dias sob o domínio de seus sub-egos. Gente como eu. E talvez você - isto se você que me lê não for escoteiro, super-cristão (cristãos eu respeito, mas não super-cristãos) ou simplesmente burro demais.

E é entediado que entro na segunda digressão sobre a vontade de morrer que me ataca. Trata-se de uma idéia que me ocorreu hoje, entre a corda e a faca para cortar os pulsos. Ou, como disse a uma amiga, entre a fome (anorexia) e a asfixia - o que é mais doloroso? Trata-se de uma visão histórica desta idéia de morrer.

Disse já que em minha família não há um caso sequer de suicídio. Nem de loucura. Só de depressão e credito isto à "misteriosa alma russa". Por que então eu, terceira geração da família no Brasil, estou sofrendo tanto desta compulsão, afinal, foram, em vão, quatro psiquiatras nos últimos quatro anos? Simples: por que eu não deveria ser o que sou.

Pensemos: na Rússia fria e longínqua meus tataravós eram camponeses. Gente sem a mínima instrução. Sabiam lavrar a terra, temiam e amavam a Deus, morriam e se condiam pela morte alheia e viam o dia nascer novamente. Sem maiores dores que a labuta diária não curasse. Guerras rebentavam e acabavam sem que por isso eles resolvessem pendurar seus gordos corpos russos numa árvore. Nasceu meu bisavô e foi para a Primeira Guerra Mundial e viu os horrores da guerra de trincheiras e sobreviveu. Ironia: sobreviveu e ficou tão feliz com a sobrevida que resolveu abandonar tudo e mudar-se para os trópicos, onde viveria uma vida mais, como direi?, verde. Nasceu aqui meu avô, num sítio, e começou a viver sua vidinha verde e simples. Nada de elucubrações de qualquer tipo. Tudo o que o homem precisava saber, segundo ele, era como sobreviver. Nasceu meu pai no mesmo sítio, aprendendo as mesmas coisas, o que faz muito bem e eu admiro, por sinal. Só que meu pai resolveu que seu filho seria algo mais e este seu filho sou eu. Nasci longe do campo (não sei tirar leite de uma vaca nem montar a cavalo), estudei minha vida inteira para descobrir, hoje, agora há pouco, que mais valia ter continuado a ser um camponês na Rússia do que um pretenso qualquer-coisa aqui, sentado na frente desta máquina maldita. Ou seja, tudo acontece porque simplesmente eu não nasci para isso. Sou um camponês russo tirado à força da sua terra e que, por desespero, tenta de todas as maneiras se matar. É a força da hierarquia social se impondo sobre o indivíduo.

Claro, leitor querido e não-tão-querido-assim, que há muito exagero nisto. Gosto da frase de Ovalle que serve de epígrafe a este texto. O suicídio é mesmo a publicidade do desespero. Que não deve, diga-se de passagem, ser esquecido ou sublimado jamais.

Eu queria terminar este texto com uma frase de efeito, com um grande aforismo, mas tudo o que eu consigo sentir é, primeiro, asco pelo que escrevi, segundo, esperança de que me leiam e de que me demovam de todas as pequenas-verdades ou grandes-mentiras contidas nestes parágrafos escritos às pressas, sofregamente, enquanto ainda estou vivo; e, terceiro, uma raiva inexplicável por a vida ter me levado a ser este ser tão profundamente desgostoso de viver. Termino este texto, porém, com uma historinha, avisando, desde já, que nela ninguém morre.

Não morre mas tem vontade de morrer. É uma pessoa que se sofre desta angústia e que está à beira do suicídio. Já até escreveu um bilhete, um longo bilhete, por sinal, intitulado com uma frase cristã: está consumado. Teve o cuidado para não citar ninguém no bilhete e é este primeiro cuidado que o demoverá da idéia de se matar.

Abriu o gás e o gás fede. Ligou para um amigo que não estava e deixou um recado na secretária-eletrônica dizendo que, quando ouvisse o recado, viesse até sua casa, entrasse (a porta estaria aberta) e desligasse o gás, porque ele temia uma explosão. Não por ele, claro, que deveria estar morto àquela altura, mas por seus vizinhos, que nada têm a ver com esta história.

E abriu o gás e está lá aspirando aquilo e pensando em como será quando chegarem o amigo, seus pais, a irmã e verem o corpo dele. O amigo ficará estupefato mas, prático como é, chamará primeiro uma ambulância e depois ligará para os pais dele e para os outros amigos e, se preciso for, vai passar a noite tratando da papelada de morrer - que é a mesma de cometer suicídio. Pensou no trabalho que teria o amigo. E respirou um pouquinho mais de gás.

Depois pensou nos pais, na irmã, no choro. No grito. O grito doía-lhe. Lá do Inferno ele poderia escutar o grito. Perguntariam a si próprios qual a parcela de culpa deles nesta morte. E ele queria poder dizer-lhes que nenhuma, só para constar. Isto não evitaria o grito.

Com um esforço monstruoso (ficava fraco já), diminuiu o gás.

E os amigos, ex-namoradas, inimigos, colegas de serviço. Por mais entediado que estivesse, ainda assim sua vida tinha um ou outro momento bom junto a estes amigos. Morto, seria lembrado nas reuniões uma vez ou outra, até ser esquecido de vez, daqui a, no máximo, duas semanas.

A esta altura percebera um esquecimento imperdoável: não escrevera no bilhete que queria ser cremado. Tinha medo de ser enterrado vivo. Levantou-se e foi até a sala e olhou o bilhete e o rasgou. Ao dormir, nesta noite, lembrou na frase abençoada que ele não sabe a quem atribuir e que diz que se matar é matar a todos que o rodeiam.

Ele pode ser tudo, menos um assassino.

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